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Nascido do Magma,
de Ruben Rodrigues
“Era uma ilha brotada do vulcão, provindo das profundezas do oceano, e os seus habitantes, hercúleos e telúricos lutadores, traziam nas veias a força indomável do magma, constitutivo do solo que lhes fora dado por berço. Pode dizer-se, com toda a propriedade, que, pelo seu ancestral espírito de sacrifício, rija têmpera e apego desmesurado ao trabalho, aquelas gentes eram, virtualmente, nascidas das entranhas convulsivas da Terra”. (pág. 84) Ruben Rodrigues tem o seu nome indissoluvelmente ligado ao ensino, ao jornalismo, à crónica, ao ensaio histórico, à recensão, à ficção narrativa, à palestra, entre outras actividades. Referência indelével e figura incontornável, atento observador das realidades visíveis e invisíveis, dotado de uma consciência literária e histórica, este faialense tem feito da sua vida um acto cívico, ele que vem na linha de uma geração de professores primários que não se limitaram a ensinar a ler, a escrever e a contar – foram, juntamente com alguns padres, verdadeiros agentes culturais, já que fomentaram o gosto por actividades várias e variadas: a literatura, a música, a pintura, o teatro e o artesanato, a criação de ranchos folclóricos, grupos corais, tunas e outros agrupamentos musicais e deram incentivo à actividade desportiva.
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Desde que, há já alguns anos deixou os jornais, sentia-se a presença invisível de Ruben Rodrigues nas suas deambulações entre o Faial e o Pico. Alguns julgavam que ele estaria a fazer uma longa travessia no deserto. Enganaram-se. Afinal, Ruben Rodrigues vinha escrevendo-se e escrevendo-nos. Subitamente, sem qualquer aviso de divulgação ou data de lançamento, surge, nos escaparates da livraria “O Telégrafo”, o seu romance Nascido do Magma (edição de autor, Horta, 2008). Era uma vez um povo temente a Deus e uma freguesia que foi atingida por um terramoto…É mais ou menos assim que o romance arranca. E mais não digo para manter o suspense e para que seja o leitor a completar o que o autor escreveu. Digo apenas que gostei incondicionalmente do livro. Antes de mais, porque está bem escrito: há, aqui, o domínio da língua portuguesa, a capacidade descritiva e a efabulação narrativa. Ruben Rodrigues cultiva, com esmero, a língua de Camões e sabe bem o que é a vernaculidade. Por outro lado, este livro faz-nos reencontrar o prazer de ler – o de nos deixarmos captar e envolver por essa voz que conta, que simplesmente conta, sem nos impor caprichos semióticos, hermetismos inócuos e originalidades de estilo, como agora parece estar na moda. Num discurso literário que mergulha fundo na raiz e no húmus da vivência açoriana, Nascido do Magma perfilha uma concepção de romance que não dispensa nem a vertigem narrativa, nem o prazer bem sucedido de quem,
arriscando-se a lê-lo, acabe afinal por vivê-lo como verdade emotiva ou coisa sua. Este é um romance de personagens que dando conta de uma saga familiar e social, implica, por isso mesmo, uma ideia de proximidade entre a literatura e a vida. Porque, bem vistas as coisas, é na vida onde a literatura vai colher a sua natureza e a sua substância. Através de um modo de narrar profundamente telúrico, Ruben Rodrigues capta aspectos da expressão da realidade geográfica, afectiva, social e humana do Pico e do Faial (ilhas que nunca são nomeadas) dos anos 40 do século XX, sendo nesta ambiência impregnada de insularidade que decorre a acção do romance, em plena Segunda Guerra Mundial. São nestes dois mundos matriciais e míticos (a vivência picarota e a vivência faialense), e é na distância próxima destas duas ilhas que reside o universo temático de Ruben Rodrigues que, (de forma autobiográfica?) através de Manuel, figura central do romance, convoca e invoca a infância e a adolescência, o percurso da aprendizagem da vida, a distância e a ausência, a saudade e a solidão, os amores inconfessados e desencontrados, sonhos e
desejos, alegrias e dúvidas, afectos e nostalgias, esperanças e decepções, o bem e o mal, a luta pela sobrevivência, o tempo e o porvir, a vida e a morte, o desejo de largar amarras, a emigração… Manuel, espírito inquieto e irrequieto, na sua tenacidade e luta pela sobrevivência, sentindo o enclausuramento interior, é bem o símbolo da ilha, na sua força cósmica e telúrica. É ele que, levado pelo desejo da viagem, da aventura e da evasão, embarca, clandestinamente e de surpresa, num cargueiro rumo à América. Porque a viagem é a sua forma de perseguir o sonho e a ânsia de “singrar na vida”. E, trabalhando arduamente num “farm” do Vale de São Joaquim, na Califórnia, dispõe-se a arranjar pecúlio, lutando, assim, por um futuro melhor para si e para Felicidade, a amada que, qual outra Penélope, ficou na ilha… Este romance lança uma visão açoriana a uma Europa em guerra e a um Portugal de misérias e repressões, nesse tempo (sépia) do Estado Novo da pobreza, do subdesenvolvimento, da intolerância…Tempo de aquietações e perplexidades (José Alves não compreende a razão que leva o padre Silva Nunes a afirmar que os sismos são castigos divinos…), mas também de fraternidade e solidariedade, vividas no microcosmo de uma comunidade rural de pastores e lenhadores, gente trabalhadora e com um grande sentido de dignidade e humanidade, tipificada na família Rodrigues: o pai, Manuel Rodrigues, a mãe, Amélia, e os filhos Manuel, Boa Nova e Conceição. Nessa sociedade patriarcal (numa freguesia que então vivia sem energia eléctrica), conservadora, fechada sobre si mesma e profundamente religiosa, o professor Tavares tipifica uma visão outra do mundo, em clara oposição ideológica ao padre Nunes. E isto num tempo em que os poderes absolutos (o do governador civil, por exemplo) eram exercidos absolutamente… Ruben Rodrigues constrói, com espantosa coerência e um obstinado desejo moral de entender a vida, uma ficção sobre a busca de uma harmonia, de uma felicidade possíveis. Mas também aqui se fala do remorso, da culpa e da mágoa. Cremilde, (cujo namorado, José da Rosa, é uma das vítimas mortais do mencionado terramoto), personagem de grande riqueza psicológica e funda expressão humana, soçobrando ao infortúnio, é o retracto vivo dessa mágoa profunda. O autor transfigura o real numa realidade plausível, fixando os seus mitos, sublimando-os e interrogando-os, ou não fosse a literatura questionadora. O resultado é este romance, cuja ficção se desprende do interior da ilha e, tal como o magma de um vulcão, fica a escorrer-nos quente, devagar, na pele da nossa inquietação. Aliás, o livro tem um fim em aberto, deixando-nos a impressão de que o autor quererá enveredar por uma sequela… Com 260 páginas, e significativa capa feita a partir de uma foto de Ana Esquível, Nascido do Magma é um romance muito vivo e envolvente sobre nós, ilhéus de muitas ilhas, as verdadeiras e as inventadas, as geográficas e as afectivas. Um romance de leitura empolgante, dotado de personagens bem modeladas e de uma escrita desembaraçada. E que nos fala, essencialmente, desse mito do regresso aos tempos e aos lugares de onde nem sempre se partiu.
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