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No filme de Robert Zemeckis Cast Away - O Náufrago, em
português - há um momento em que Chuck Noland, o
protagonista (sobrevivente de um acidente aéreo sobre o
Pacífico e atirado para uma ilha de que se torna o único
habitante), olha para as manchas de sangue por ele próprio
deixadas numa bola de vólei e consegue ler nelas os traços
que, de modo grosseiro, configuram um rosto humano. Depois disso,
a bola (ou o rosto) receberá o nome de baptismo de Wilson
e tornar-se-á o interlocutor, melhor dizendo, o confidente
do protagonista nesse demorado processo de luta pela sobrevivência
física e psicológica e de procura de caminhos que
lhe permitam o regresso à civilização.
É certo que a história de Chuck Noland, engenheiro
e funcionário de uma empresa norte-americana e encarregado
de "acudir" aos problemas da sua área profissional
nos mais diferentes pontos do planeta, não deixa de ostentar
como forte componente ideológica um optimismo hoje historicamente
datado, de quando ninguém ousaria sequer admitir como hipótese
que a globalização, enquanto expressão eufemística
da dominação tecnológica e da livre circulação
de um capitalismo desenfreado, pudesse por arrastamento conduzir
também à pura irracionalidade do terror global,
como o 11 de Setembro veio demonstrar de forma tão brutalmente
eficaz. Mas nesta transposição de Robinson Crusoé
para os tempos modernos (subsidiária talvez da vaga ecológica
e de algum impropriamente chamado "reality show" televisivo)
o que se detecta ainda é o rasto do lugar que as ilhas
têm ocupado no pensamento mítico ocidental, desde
as mediterrânicas que pontuam o percurso errático
de Ulisses até àquelas com que o imaginário
medieval pretendeu povoar o Atlântico, adensando o seu mistério
e segredos quando, pelo contrário, julgava esclarecê-los.
E projecta-se do mesmo modo essa outra imagem cultural e literária,
marcada por uma forte nostalgia das origens, que vê na ilha
o reduto último da humanidade, o espaço onde se
poderá reviver ilusoriamente o tempo fabuloso dos começos;
enquanto modelo reduzido de um mundo de que é, ao mesmo
tempo, a imagem afastada e diferente, a ilha tem-se constituído,
de facto, uma espécie de espaço experimental em
que o homem pode ser posto à prova nas suas capacidades
e limitações, em situações de isolamento
que, simultaneamente, propiciam o contacto perdido com a Natureza
e simulam o regresso a um mundo primordial anterior à história
e aos seus traumas (ou então, em sentido inverso, concretizam
o modelo ideal de realização histórica, como
acontece em A Utopia, de Thomas More).
Ora, de Robinson Crusoé a Chuck Noland, o que as diferentes
modalidades narrativas põem em evidência é
a necessidade imperiosa da presença do outro como factor
de comunicação e diálogo: chame-se ele Sexta-Feira
ou Wilson, em qualquer dos casos se afirma que a sobrevivência
do homem é também resultante da sua capacidade de
projectar-se para além de si através da actividade
simbólica em que a linguagem se inscreve. Actividade duplamente
simbólica, aliás, no caso de Noland, pelo expediente
a que lança mão para vencer a solidão e o
isolamento, termos que consubstanciam, afinal, a expressão
da experiência humana em ilhas: "tomo aqui a palavra
"isolamento" no seu sentido etimológico: solidão
de ilha. Um homem numa rocha e em volta o mar" - escreveu
Vitorino Nemésio , um escritor que neste ano de centenário
do nascimento deveria merecer por parte do Pico e das suas instituições
culturais e educativas um pouco de atenção e, ao
menos, um aceno de evocação, pelo lugar que lhe
cabe como escritor maior da Língua Portuguesa e, mais particularmente,
pelo modo afectuoso como o Pico e os picarotos ficaram para sempre
registados na sua obra, desde O Açoriano e os Açores
(1928) até Sapateia Açoriana (1976), passando por
Mau Tempo no Canal (1944) e por Corsário das Ilhas (1956).
A necessidade desse outro que assinala a fronteira do silêncio
e do isolamento, já a deixara expressa Frei Diogo das Chagas
no seu Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores, num
fragmento que constitui a proto-narrativa do Pico, texto fundador
da história humana da Ilha e por isso das Lajes também:
"O primeiro homem, que se pratica por certo auer entrado
nesta Ilha pera a pouoar foi hum Fernando Áluerez Euangelho,
o qual uindo a buscar a tomou polla parte do Sul, e uindo no barco
busca la costa (sic) saltou em terra aonde se diz o penedo negro,
e com elle hum cão que trazia, e o mar se leuantou de modo
que não deu lugar a ninguem mais saltar em terra, e aquella
noite se leuantou uento, do modo, que a carauella ao outro dia
não appareceo, e elle se ficou na Ilha com o seu Companheiro
o Cão; e nella esteue hum anno sostentando se das carnes
dos porcos, e outros gados brabos, que com o cão tomaua
(que como o Infante quando as descobrio em todas mandou botar
gados, auia nellas, quando depois se pouoarão muita multiplicação
delles). No cabo do anno tornarão os Companheiros a buscar
a Ilha polla mesma parte, e uindo com milhor maré, e como
elle já estaua pratico na Costa emcaminhou os pera o porto,
aonde agora he a freguezia das ribeiras em que saltarão,
e se festejarão como conuinha tratando de sua pouoação
logo por esta parte, sen (sic)"
Nesse ponto difuso em que o facto histórico se cruza com
a lenda, o discurso do cronista convoca em seu auxílio
os ingredientes necessários à mitificação
do herói-fundador, à construção de
um ambiente de obstáculos e aventura, de desafio à
capacidade humana e, finalmente, a afirmação de
um triunfo que é também a expressão da pertença
a um novo território e do início de uma outra história.
Alguns desses elementos efabulatórios, enquadráveis
nalguma ficção narrativa do século XVII,
não escaparam a Lacerda Machado que assinalava a função
de intensificação dramática desempenhada
pela referência ao tempo (um ano) passado por Fernando Álvares
Evangelho sozinho na Ilha . A mim, interessa-me sobretudo a presença
desse cão a que poderia caber o simples papel de caçador
ao serviço do desbravador de espaços e segredos,
mas que o cronista preferiu designar por "companheiro",
num registo mais afectuoso, mais humano também: aí
estará, creio eu, o outro de que Fernando Álvares
Evangelho precisou para enfrentar os mistérios da Ilha
e os anjos perversos da solidão (e, convenhamos, um cão
será sempre um interlocutor muito mais afectuoso do que
uma bola de vólei).
Se nesta deriva recuei até ao texto do século XVII,
fi-lo também por me parecer que a imagem de um homem com
o seu cão sobre o espaço intocado de uma ilha traduz
a realidade mais profunda daquilo que constitui o objecto da tarefa
que me foi proposta: a escrita e os escritores de algum modo vinculados
ao espaço geográfico, cultural do Concelho das Lajes.
No modo como cada escritor enfrenta o mundo e o organiza verbalmente,
há, na verdade, qualquer coisa de momento originário,
de desafio e aventura, de afrontamento do incerto, em que o deslumbramento
da criação e do novo não chega para anular
o sentimento de solidão e desamparo: em cada acto de escrever
há um Fernando Álvares Evangelho isolado do mundo,
abandonado pelos outros sobre uma ilha desconhecida e na única
companhia do cão da escrita - desse lugar nos fala ele
de ilhas que são mundos e de continentes que são
ilhas, umas e outros presentes na ilha em que cada texto se torna
e sobre a qual nós, leitores, nos afastamos voluntariamente
do mundo para o podermos descobrir nas palavras que no-lo dizem
e revelam. Por isso, falar de escritores, e particularmente neste
caso concreto, é tentar detectar o modo como cada um deles
estabeleceu a sua relação com a escrita e nesse
acto de dizer-se acabou por inscrever na sua fala o registo do
seu olhar sobre si e sobre o mundo.
***
Essa voz que na escrita se constrói como forma de romper
o silêncio é o que nos revela o poema inaugural do
Livro da Alma, de Bernardo Maciel (S. João, 1874-1917).
Dotado de uma função programática e explicativa
habitualmente atribuída ao paratexto prefacial, esse poema,
do qual o livro recebe o título, torna evidente a íntima
relação entre texto e vida, num continuado jogo
metafórico que estabelece a analogia entre esses dois pólos,
ou seja, a obra como projecção concreta (ainda que
transfigurada) do universo dos afectos e vivências. Ao mesmo
tempo, acentuando a natureza de um diálogo íntimo
e exclusivo entre autor e texto, o poema acaba por fornecer ao
leitor uma concepção do poeta como "eleito",
o único capaz de aceder ao conhecimento das coisas para
lá das suas evidências de superfície - concepção
que interessa sobremaneira para situar Bernardo Maciel no devido
contexto literário.
Pesa sobre a obra de Bernardo Maciel a força de qualquer
mau olhado que impediu que até hoje fossem publicadas os
seis livros que em 1916, no Livro da Alma, o autor anunciava como
"concluídos e prontos a imprimir", entre eles
quatro livros de poemas. Por isso, as minhas anotações
não são mais do que o resultado do meu contacto
com os textos desse único livro vindo a público
e ainda com alguns inéditos (cerca de doze) dados a conhecer
em 1938 por Ruy Galvão de Carvalho num artigo em que abordava
a obra do poeta picoense.
Há nestes "versos da mocidade" -subtítulo
dado por Bernardo Maciel ao seu livro- uma difusa tonalidade romântica
que bebe nas fontes populares algumas das suas imagens e representações,
num tom de singeleza que faz pensar em Augusto Gil, mas tocado,
noutros casos, por um evidente pessimismo de fim-de-século
e passando de raspão pela sombra de Antero de Quental ("Só",
pp. 43-45):
Árvore nua, dorida,
Morres só, meu coração.
Folhas verdes -esperanças-
Arrancou-as o tufão...
E nos ramos desolados
D'onde cairam as flores,
De um céu d'além mudo e triste
Vêm poisar bandos de dores.
(...)
Porque não te encontra nunca
O meu coração errante,
Ó palácio da Ventura
Encantado e distante!
Nos teus jardins, junto aos lagos,
À luz do entardecer,
Queria amar e sonhar....
Sonhar sempre até morrer...
E do mesmo modo que nos deparamos com pequenos e realistas quadros
rústicos ("No Mato", por exemplo), também
detectamos já os sinais de um simbolismo ainda incipiente,
mas que dá mostras de grande maturidade nos poemas revelados
por Ruy Galvão de Carvalho e que, a confirmar-se como a
dominante estética de Bernardo Maciel, fará do poeta
o elo que faltava para fechar o arco simbolista que vai de Roberto
de Mesquita, nas Flores, até Humberto de Bettencourt e
Duarte Bruno, em S. Miguel.
Poeta de um livro só e que a Filosofia viria a monopolizar
em definitivo, José Enes (Silveira, 1924) reuniu em Água
do céu e do mar (1960) uma colectânea de poemas escritos
entre 1946 e 1960, distribuídos por duas secções
que correspondem a dois grandes núcleos temáticos,
indiciados até pelos respectivos títulos: "Incomparável
amor" e "Sempre o mar e a mesma terra".
Na primeira delas, o discurso poético constitui-se o registo
de uma voz inquieta que se interroga e questiona a sua relação,
talvez antes, a sua resposta a um apelo divino; voz dramática
num diálogo com o Outro/Deus em que a cada passo o homem
reconhece a sua condição humilde de pecador: a poesia
torna-se por isso, e não raras vezes, a expressão
de um desejo de purificação e ascese, ou então,
noutros casos, o testemunho do encontro com Deus através
do mundo e das coisas, num tom a que não será alheia
uma vaga inspiração franciscana (veja-se "Presença",
p. 18-19).
Já na segunda parte, "Sempre o mar e a mesma terra",
reduz-se essa ostensiva exposição do sujeito poético,
digamos que o "eu" da enunciação apaga
consideravelmente a sua presença ao nível do discurso
para deixar-nos o registo de uma vivência do espaço-tempo
ilhéu que, sem anular a sua vinculação subjectiva,
pretende constituir-se, mesmo assim, na sua formulação
abstracta e tendencialmente objectiva, a expressão da insularidade
açoriana nos seus condicionalismos geo-históricos:
tópicos como o tempo suspenso ou a imobilidade física
traduzem o modo de apreensão e percepção
estéticas da realidade da ilha enquanto espaço bloqueado
e bloqueador também dos anseios individuais.
A insatisfação e a consciência dos limites,
exprimindo-se em simultâneo com um anseio de libertação
que o ilimitado dos horizontes propicia e intensifica (e constituem
o sinal de uma forte consciência insular), marcam a última
parte do livro de José Enes e enquadram-no perfeitamente
nas tendências poéticas dominantes na literatura
açoriana dos anos cinquenta, onde é detectável
a lição dos modernismos portugueses, filtrados em
parte pela óptica do modernismo cabo-verdiano. No caso
de José Enes, acresce ainda a adopção de
um rigor expressivo de natureza "clássica" que
de modo natural convive com os modelos da poesia popular, numa
adequação de processos e tom que permite situá-lo
com toda a justiça entre a Festa Redonda (1950), de Vitorino
Nemésio (descontando-se, é óbvio, a "deturpação
prosódica" do terceirense), e Eu fui ao Pico piquei-me
(1980) do também poeta terceirense Álamo Oliveira.
A poesia de José Enes é hoje, felizmente, mais conhecida,
graças ao poema que por aí circula depois de em
oportuna e felicíssima hora ter sido musicado por Emílio
Porto - "Montanha do meu destino", um texto não
incluído no livro e que me surpreende pela frescura e originalidade
com que aí se escreve a marca que a Ilha imprime no mais
íntimo de nós como traço indelével;
mas não resisto a transcrever aqui algumas quadras das
"Cantigas a Nossa Senhora da Guia" que encerram o livro
de José Enes e onde manifestamente se revela o modo sábio
como o autor aproveita a lição da tradição
oral, numa proximidade de tom e de afectividade que não
esconde, em qualquer caso, o trabalho de re-elaboração
autoral na busca de uma imagética original e particular:
Nossa Senhora da Guia,
a quem menino rezei,
Vossos olhos são as uvas
da videira que plantei.
(...)
Nossa Senhora da Guia,
que gostais de vinho mosto,
quero dar-Vos a alegria
de viver a Vosso gosto.
Nossa Senhora da Guia,
lisinha como os calhaus,
o Vosso manto é mais fino
que as penas dos garajaus.
Expressão poética de uma relação
do homem com Deus, em pública afirmação de
um compromisso aceite em resposta a um chamamento divino, é
o que igualmente encontramos em Salmos da minha Saudade, do P.e
J. Pereira da Silva (S. João, 1892-1974), e em Hora de
Tércia, de José Carlos, nome literário do
Pe. José Carlos Vieira Simplício (Almagreira, 1937),
embora diferentes pressupostos e circunstâncias enformem
os dois livros, publicados ambos em 1965.
No caso de J. Pereira da Silva, trata-se de uma intromissão
única no campo da poesia, a pretexto da celebração
de meio século de sacerdócio, o que ajuda a compreender,
por um lado, o tom celebrativo e a envolvência religiosa,
íntima dos seus textos e, por outro lado, a presença
indelével do tempo com as marcas deixadas pelo seu curso
imparável. A escolha do soneto como género poético
exclusivo, com os seus processos formais rigorosos, favorece a
solenidade deste canto jubilatório, uma solenidade que
não andará afastada das suas reconhecidas qualidades
de orador sacro; por aí se situarão também
as alusões e as epígrafes de proveniência
bíblica, os títulos colhidos no campo religioso,
a recuperação de tópicos da cultura hebraica,
que constituem os sinais de um lastro de erudição
e, mais do que isso, configuram uma visão do mundo moldada
pela presença do divino, mesmo até na "construção
autobiográfica" como projecção pessoal
de situações evangélicas ( veja-se o poema
"Paternidade Fraternal", p. 19). E se o livro constitui
um canto jubilatório, de acção de graças,
acto de partilha também com amigos e familiares, que as
dedicatórias tornam mais expressivo, essa presença
do divino permite ao poeta evocar o passado, a ilha da infância
com uma tranquila nostalgia, mesmo quando nesse olhar retrospectivo
se perfilam as sombras e os desgostos acumulados ao longo do caminho
percorrido.
Hora de Tércia, de José Carlos, vem na sequência
de Murmúrios dos meus quinze anos (1953) e é nitidamente
um livro matinal, naquilo mesmo que o próprio título
simbolicamente já anuncia através da referência
temporal de notação canónica (nove horas
da manhã). Aquilo que em J. Pereira da Silva era retrospectiva
e balanço, torna-se aqui canto de começo e de promessa:
afirmação luminosa de resposta a um chamamento e
de entrega a uma missão livremente aceite, como tão
bem o exprime o poema "Sim" (p. 17):
Passaste, Senhor...
E o teu olhar
longo e suave
a luz em mim
fez despertar.
Passaste, Senhor,
para dizer
de tanto amor...
Palavra assim
não sei de haver!
Passaste, Senhor,
e eu lá segui
tangendo a harpa
do coração
atrás de Ti.
Mas esta entrega, que supõe sempre a purificação
e o despojamento interiores, não impede o poeta de olhar
para o mundo exterior nem de fruir esteticamente o espaço
e os pequenos momentos e objectos do quotidiano, sejam eles o
"caminho da minha aldeia" ou uma ermida abandonada,
numa atitude de des-velamento dos seus mistérios e sentidos
invisíveis-como ocorre no poema "Momento" (p.
41).
É um livro matinal também na liberdade criativa
com que aí se perseguem as formas e os modos expressivos
mais adequados à construção de uma voz poética
individualizada: da irregularidade métrica, estabelecendo
súbitos contrastes de movimentos lentos e bruscos, ao alongamento
discursivo associado ao verso livre de pendor descritivo e reflexivo;
da diversidade estrófica à adopção
de modelos fixos cuja normatividade se atenua e dilui, por vezes,
na leveza rítmica do texto (vejam-se, por exemplo, os poemas
"Sim" e "Convite"), passando ainda pela procura
de repertório de imagens próprias - eis alguns dos
traços que em Hora de Tércia assinalam uma nítida
intenção estética e a busca da modernidade
literária.
Por meados dos anos cinquenta, iniciava Dias de Melo (Calheta
de Nesquim, 1925) uma obra que, pela pluralidade de perspectivas
e de modos de aproximação, constitui hoje a mais
complexa abordagem do universo baleeiro picoense, mais particularmente
do que se reporta à Calheta de Nesquim. Estreando-se no
campo da poesia com Toadas do Mar e da Terra (1954), Dias de Melo
deslocar-se-ia depois para o domínio narrativo com um livro
de "crónicas romanceadas", Mar Rubro (1958),
em que a vertente testemunhal, informativa era já atravessada
por um forte pendor narrativo que se assumiria plenamente em Pedras
Negras (1964) e em Mar pela Proa (1976). Com eles começava
a erguer-se um universo ficcional que, salvo raras excepções
pontuais como, por exemplo, as de Cidade Cinzenta (1971) ou mesmo
O Autógrafo (1999), se tem pautado por uma fidelidade ao
mundo rural e marítimo picoense, fidelidade detectável
não apenas na permanência de uma temática
dominante, mas também no modo como o narrador, mesmo quando
afastado dos acontecimentos, não deixa de manifestar a
sua empatia, mais do que isso, a simpatia para com as personagens
socialmente desprotegidas, vítimas da prepotência
dos poderes dominantes, da insensibilidade de outros e das forças
incontroláveis da natureza insular.
Dentro desta perspectiva, Pedras Negras (que ano após ano
continuo a trabalhar com os meus alunos de Literatura Açoriana)
constitui uma narrativa nuclear e de síntese na obra de
Dias de Melo, pelo modo como configura esse mundo de conflitos
vários em que a experiência presente e o medo do
futuro antevisto na memória do passado expulsam o homem
da ilha, lançando-o em demanda do paraíso americano,
que só conhecerá depois de provar o seu inferno:
representação da vida no final insular no final
do séc. XIX, a baleação e o seu papel desencadeador
da imigração para a América do Norte, a aprendizagem
do mundo entre a competição feroz, a desumanidade
e a solidariedade também, o sucesso material, enfim, proporcionado
pelas "califórnias perdidas de abundância"
, com um regresso que será a confirmação
desse mesmo sucesso e um ajuste de contas final em que a ilha
de novo imporá a sua vontade inexorável e destrutiva
- tudo isto se polariza na personagem de Francisco Marroco, através
de quem se manifesta uma visão trágica da vida insular,
ao mesmo tempo que, e numa perspectiva mais abrangente, se congregam
em Pedras Negras os grandes elementos da Narrativa Açoriana,
os seus fluxos humanos e as representações de um
imaginário colectivo, reconhecidamente muito mais voltado
para oeste, por razões que a história terá
dado a conhecer ao coração ... e ao estômago
também.
Dias de Melo, porém, não esgota o assunto na sua
ficção literária: retoma-o sob outra perspectiva
em Vida vivida em terra de baleeiros (1983): aqui, articulando
a evocação com a documentação, a pesquisa
e o testemunho, deixa-nos um conjunto de informações
valiosas para o historial da baleação no Pico durante
cerca de um século, isto é, o período que
vai da fundação da primeira armação
até à fase de reconhecido declínio e posterior
e desaparecimento final da actividade. E acabaria por voltar a
ele, inevitavelmente, nessa inestimável obra que é
Na Memória das Gentes, em cujos seis volumes um quotidiano
picoense ainda não demasiado distante é trazido
ao nosso conhecimento pela viva voz dos seus próprios artífices,
as gentes do mar e as da terra, compondo um painel riquíssimo
de informações e vivências, numa espécie
de história emotiva e fragmentária de que o poder
político da altura atempadamente reconheceu a importância,
ao incumbir o escritor de realizar esse trabalho de recolha e
registo e ao proporcionar-lhe condições para levá-lo
a cabo. Histórias da baleação, da construção
naval também , memórias de um tempo de abandono,
de penúrias em terra e perigos no mar, cruzam-se nesta
obra que consigna ainda um acervo de matéria etno-antropológica
e o registo linguístico de uma fluência oral bem
como, no último dos livros, um repertório de narrativas
populares, contos e episódios integrantes desse universo
de efabulação e mistério que o imaginário
popular foi construindo e transmitindo ao longo do tempo.
É também no âmbito desse imaginário
e da sua preservação que se enquadra o livro Açores-lendas
e outras histórias (2.ª ed., 1999) organizado por
Ângela Furtado-Brum (Calheta de Nesquim, 1952), embora com
um propósito muito mais abrangente, dado que o registo
efectuado se reporta às nove ilhas do arquipélago.
São duzentas e quarenta "lendas e outras histórias",
vinte e oito delas referentes ao Pico, e que constituem o lastro
de uma narrativa oral em vias de desaparecimento, mas parte integrante
de um património simbólico, também ele construído
pelos séculos fora, embora menos visível que o outro,
de pedra e cal. Essas histórias traduzem a necessidade
de tudo explicar, de a tudo dar um sentido, desde os nomes de
lugares aos templos, aos fenómenos naturais e práticas
sociais, e dizem-nos que, afinal, tudo tem uma origem e se liga
a uma história cujo sentido ou valor de exemplaridade se
projectam transtemporalmente; no fundo, e como alguém já
disse, a lenda "pensa e informa o espaço, satura-o
de tempo e incorpora-lhe a história" e deste modo
contribui para uma "intensificação da percepção
da terra natal".
Num outro domínio do imaginário se situam algumas
obras de Conceição Maciel (S. João, 1946),
como A Uva Mágica (1999) e A Ilha Mágica (2000),
que integram o campo da literatura infanto-juvenil, sem grande
tradição nos Açores, embora me ocorram, por
exemplo as Munhecas de Florêncio Terra e, mais recentemente
As Histórias da Lita, de Natália Almeida.
Aproveitando as virtualidades e as dinâmicas processuais
do conto maravilhoso, mas introduzindo-lhes já os sinais
de alguma modernidade, Conceição Maciel configura
nesses dois livros um quotidiano rural ainda próximo e
familiar no qual o maravilhoso irrompe de forma absolutamente
natural (como é regra, aliás) e vem dizer-nos que
qualquer ilha pode ser mágica, desde que acreditemos no
poder criador da palavra e na necessidade de sonhar ("é
preciso regar os sonhos", escreve-se num dos contos). Embora,
é certo, talvez haja (há mesmo de certeza) ilhas
mais mágicas do que outras, particularmente aquelas que
se tornaram o nosso forro íntimo e a que se regressa pela
palavra para recuperar um tempo de que nos distanciamos: mas estes
são contos de outras escritas, as de O casaco de baeta
(2001), por exemplo, ou então as de Maregeia (1999), em
que a contista envereda pelo lirismo para exprimir a verdade sentida
de uma ilha já ao longe e cujos sons repercutem ainda na
diversidade rítmica de uma poesia seduzida pelo andamento
do velho romanceiro e nisso inscrevendo a complexa teia de aspirações
e anseios, libertação final ("Sonho",
p 61):
O meu sonho era tão lindo
Nascera à beira do mar
Tinha pássaros tinha lua
E tinha gaivotas no ar
Tinha ondas tinha praias
Salpicadas de luar
Uma menina de tranças
Dançava ali com o mar
Tinha rochas muitas rochas
Cantarolando a chorar
Ou talvez fossem as ondas
No seu lento marulhar
Quis agarrar a menina
Não se fosse ela afogar
Apanhei uma gaivota
Que se escapou a voar.
À distância fala também a figura feminina
que se ergue no interior de Permanências (1992), de Judite
Jorge (Pontas Negras, 1965), para, a partir das margens de um
Tejo tacanho e já sem naus, recuperar o tempo insular da
infância e adolescência: contraponto ao presente fechado
de Lisboa, a ilha permanece, impõe-se a Júlia como
o centro da sua vida, embora o afastamento não apague de
todo os traços de um tempo amargo e ácido (início
dos anos setenta), marcado pela circularidade dos dias, mas cujas
arestas se diluíam de algum modo na imensidão do
mar aberto. Retrospectiva em que Júlia vê passar
a sua história de amores e desencontros, expectativas e
desencantos, é ainda o retrato de um quadro picoense de
forte ruralidade, vivida num ambiente de proximidade humana e
social. Como o é também, e por maioria de razão,
o desse universo em que se move Maria Jorge (Afectos de Alma,
2001), num tempo em que a América ainda lhe não
dera o nome de Maria Polley, além de afectos e decepções
várias. Recuperando à realidade histórica
alguns dados e a figura de mulher que ocupa o centro da acção,
esta narrativa de Judite Jorge investe no tema da emigração
para a América e recobre ficcionalmente um período
de tempo que vai de finais do século dezanove até
aos anos setenta do século seguinte: refiguração
do microcosmos rural das Pontas Negras e da experiência
californiana posterior, aí se inscreve o vaivém
ou a circulação entre a ilha e a América,
ao nível da realidade narrativa , mas também no
plano de um imaginário colectivo que obsessivamente se
alimenta da imagem dessa terra da abundância como contraponto
a um quotidiano de pobreza, coisa que, numa outra metodologia
de aproximação, vem confirmada pelo trabalho de
Manuel Armando Oliveira
E se em Afectos de Alma o investimento temático se afigura
como um dos mais recorrentes da literatura açoriana, merecem
aqui destaque, entre outras coisas, a centralidade da personagem
feminina, num lugar usualmente ocupado pelo homem, e ainda o seu
perfil positivo que contrasta com os estereótipos negativos
e com o olhar enviesado que algumas obras lançam não
apenas sobre a "americana", mas sobre a mulher em geral.
E é disto que, numa perspectiva já analítica,
nos dá conta o livro Imagens de Mulheres (2000), de Maria
de Jesus Maciel (S. João, 1946): estudando um corpo de
adágios açorianos e os contos de Dinis da Luz, a
autora centra a sua observação na problemática
da construção e modelagem da figura feminina e detecta
aí um núcleo ideológico comum, a questão
do amor, perspectivado sob diferentes ângulos, mais abertos
uns, outros mais condicionados por pressupostos de natureza ético-religiosa,
e em que não é difícil detectar as marcas
sócio-espaciais e temporais.
Neste contexto de escritas femininas, de referir ainda Cisaltina
Martins Cardoso, picoense que o acaso fez nascer no Faial (1942)
e autora até agora de um único livro, Poemas de
basalto e solidão (1989). Se há nos seus poemas
uma voz que irrompe de modo afirmativo (e não apenas na
secção intitulada "Mãe-Mulher")
para enunciar a sua condição de mulher, num tom
de "ufanismo" que é ao mesmo tempo o sinal de
uma liberdade assumida perante o mundo, também é
certo que, por vezes, dessa voz se desprende um fio de solidão
e um sentimento de abandono; e mesmo quando os poemas deixam à
evidência os traços circunstanciais da sua génese,
como nas sequências "Do basalto e de outros lugares"
e "In memoriam", é igualmente possível
detectar aí a oscilação entre o pólo
diurno, solar da primeira delas e o tom pungente da segunda, onde
o belo e tenso poema dedicado à memória de António
Duarte é, para além de manifestação
de amizade dorida, o testemunho das marcas irreparáveis
do tempo.
De tempo, mas daquele que vai fluindo e desaparecendo nas margens
da vida e que a palavra tenta suspender, nos falam as crónicas-evocações
reunidas em Viver o Pico (2000), de Geraldo Soares (Piedade, 1927)
e também as narrativas de O Trevo de Quatro Folhas (1983),
de Helder Melo (Santa Cruz das Ribeiras, 1932) e de Fragmentos
da Memória (1993), de Fernando Melo (S. João, 1932).
No primeiro caso, o registo descritivo serve a composição
de uma diversificada galeria de figuras picoenses, pontuada por
alguns apontamentos de natureza factual, umas e outros muito próximos
ainda pela afectividade com que são evocados na prosa do
cronista. Nos outros dois casos, a memória alimenta a dinâmica
narrativa, entre o puro evocado e o refigurado ficcionalmente,
numa propensão mais extensiva em Helder Melo e a que não
falta a deriva de algum léxico precioso em demasia, e bastante
mais sóbria e contida nas narrativas de Fernando Melo que,
na sua aparente fragmentação e autonomia de superfície,
compõem um percurso de vivência(s) no Pico até
ao salto para a ilha vizinha, um salto que marca ao mesmo tempo
a passagem a uma nova etapa da vida. Cruzam-se nestas obras as
vozes e os perfis de gentes e ainda os sinais de um tempo que,
para o melhor e para o pior também, os dias presentes vão
diluindo e a memória envolve num afectuoso tom de melancolia
e cumplicidade.
O mesmo tom de cumplicidade pode ser detectado em Deserto de todas
as chuvas (2001), de Sidónio Bettencourt (S. Miguel, 1955),
picoense por razões de escrita e reivindicação
de raízes familiares. Ao instituir a rua de baixo como
o seu microcosmo de referência (não é necessário
que todos os "condados" tenham a dimensão do
de Faulkner), o autor faz convergir nele os traços de um
universo lajense (e, por extensão, insular) de relacionamentos
humanos que a precariedade e as contingências da vida tornam
ainda mais íntimos, na festa e no luto, no medo e na euforia
- num discurso marcado pela enumeração e a acumulação
e tendendo à representação global desse mundo
e à sua revelação. Noutros casos, porém,
as imagens aí colhidas esbatem o seu valor referencial,
desviadas já para um processo em que a voz lírica
se faz ouvir perante o silêncio para dar-nos a conhecer
um mundo interior tumultuoso, dividido entre as vivências
do passado e as do presente, num discurso marcado pela força
transfiguradora da subjectividade e de um manuseamento verbal
que transformam o real evocado em pura matéria poética.
***
Aqui chegados, é tempo de dizer aquilo que restaria ainda
fazer: em primeiro lugar, colmatar as lacunas, obviamente, e alargar
a análise a autores cuja obra se quedou pelo simples registo
jornalístico, sem recolha em livro. Seria caso para indagar
dos poemas de Fernando de Castro (nascido nas Lajes e por acaso
aqui falecido em 1923), alguns perdidos por revistas de Lisboa,
onde se fixara depois dos estudos e onde foi um dos do círculo
de Fernando Pessoa, com quem traduziu livros espíritas
para uma editora da capital (como refere Pedro da Silveira); seria
caso também para inquirir da importância e qualidade
literárias da sátira que Manuel de Ávila
Coelho , sob o pseudónimo de Frei Pedro, publicou durante
anos no jornal O Telégrafo e ver, por exemplo, até
que ponto aí se prolonga (ou não) a lição
do grande poeta satírico do século XIX, Manuel Garcia
Monteiro, também ele com ascendência familiar no
Concelho das Lajes.
E poderíamos mesmo avançar até ao campo da
escrita emigrante para detectar o modo como de Artur Ávila
e Manuel Macedo a Frank Gaspar se equaciona literariamente a relação
com a Ilha e como a visão que dela se tem é ainda
função de uma proximidade física e temporal
ou, então, já traz em si os sinais de uma memória
diferida, atravessada pelos sinais de outras aprendizagens e vivências
culturais.
Estas seriam propostas para desenvolver talvez noutra ocasião,
aprofundando até o sentido e o conteúdo daquilo
que agora aqui se deixa registado, na convicção
de que tão importante como o reconhecimento público
é a partilha e a divulgação deste património
cultural e simbólico que pela escrita nos foi legado.
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