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Figura incontornável da ilha das Flores, João Gomes
Vieira é um cavalheiresco homem de cultura(s), conversador
nato dotado de miúda e graúda erudição,
inquieto e irrequieto, lapa da ilha mas animado por uma curiosidade
universal, sentencioso e humanista, possuidor de uma consciência
crítica e de um finíssimo sentido de humor, voz
rouca e olhos encharcados de luz marítima
Vivendo ao ritmo cadenciado de ondas e marés,
este florentino dividiu a sua vida entre a carreira administrativa
e o fascínio pelas coisas do mar. Ele é herdeiro
de marítimas aventuras: quando menino foi tocado pelas
histórias que ouviu da boca de velhos marinheiros da baleação
americana; desde muito cedo aprendeu o sonho da viagem, e da família
herdou uma tradição embarcadiça, revendo-se
na figura modelar de seu pai que foi marinheiro e oficial baleeiro.
Por conseguinte, existindo e resistindo, agindo
e reagindo no microcosmo da sua ilha (espaço de muitas
partidas e de poucos regressos), João Gomes Vieira sentiu
sempre o apelo do mar, traduzido no desejo de evasão e
na necessidade indomável de quebrar silêncios e distâncias.
E precisamente por ser portador de um imaginário telúrico
e de uma memória marinheira, começou a escrever
O Homem e o Mar - embarcações dos Açores
(edição de autor, Intermezzo-Audiovisuais, Lda.,
2002), que daria por concluído 50 anos depois.
Apresentando-se em edição bilingue
(português e inglês, sendo que as traduções
são excelentes), com esplendoroso aspecto gráfico,
este não é um livro de circunstância, mas
sim a obra de uma vida. De uma vida de trabalho e de contínua
e continuada pesquisa nos domínios da historiografia e
da antropologia marítima.
Com apetecível Prefácio do escritor
João de Melo, a que se segue avisada Nota Explicativa do
autor, o livro arranca com a descrição de uma viagem
"rumo ao alto mar", que João Vieira Gomes efectuou
na corveta General Pereira d´Eça, viagem essa
(d)escrita em escorreita prosa diarística. A viajar nessa
"fortaleza de aço", o autor dá conta das
actividades a bordo e reflecte sobre o mar e a epopeia marítima
de um povo que, através da errância, buscou caminhos
de felicidade e sonho. Simples pretexto, afinal, para escrever
sobre as embarcações primitivas dos Açores
(recorrendo a informações de autores que vão
de Gaspar Fructuoso, António Cordeiro, Frei Diogo das Chagas,
passando por Padre Manuel de Azevedo da Cunha e José Cândido
da Silveira Avelar até a estudiosos e pessoas da actualidade),
seguindo rotas por outros portos e outras memórias.
João Gomes Vieira sabe que os barcos
de que fala fazem parte da nossa memória afectiva e têm
alma (1). Por isso mesmo, em plena era da fibra de vidro, lança
olhares retroactivos (e fascinados) às embarcações
que existiram e/ou existem nas nove ilhas dos Açores nos
últimos 100 anos. E isto numa altura em que, dada a imparável
marcha do progresso, a construção naval em madeira
tem os dias contados. Procede o autor à inventariação
de todo um património marítimo, escrevendo sobre
embarcações tradicionais e contando histórias
de homens do mar e da terra - gente de grande riqueza psicológica
e funda expressão humana.
Convirá não esquecer que esses
homens e esses barcos não são apenas homens e barcos
- são pedaços da nossa cultura, da nossa memória
e da nossa história.
Bem documentado e informado, e através
de uma muito bem conseguida fluência narrativa, João
Gomes Vieira capta esse "espírito do lugar" (que
compreende as 900 milhas náuticas quadradas do universo
marítimo açoriano) e fala do tráfego local
e cabotagem; recorda baleias, botes e baleeiros; analisa a pesca
do alto e a recolha de algas marinhas; evoca embarcações
de recreio e de aventura; não esquece os artistas que no
mar buscaram inspiração; comenta aspectos ligados
à construção naval; através de textos
que lhe foram fornecidos pelo padre José Idalmiro Ferreira,
traz à lembrança devoções marítimas
e, a fechar o livro, apresenta-nos um preciosíssimo glossário
baleeiro por ele recolhido na ilha das Flores.
Por outro lado há este dado inapelável:
mais do que para ser lido, este é um livro para ser visto,
tocado e contemplado. Tal é a impressionante e riquíssima
iconografia nele contida. Importantes arquivos fotográficos
(os de Coronel Afonso Chaves e de Cônsul Dabney, por exemplo),
recolhidos junto dos Arquivos Públicos dos Açores
e nos contactos pessoais com fotógrafos e particulares,
aqui se apresentam à fruição do nosso olhar.
Porque esta é uma obra que também deve ser entendida
como objecto de prazer visual.
Atravessado pela memória do vivido e
do sentido, e escrito com grande poder evocativo, O Homem
e o Mar - Embarcações dos Açores
resulta da relação apaixonada e apaixonante que
João Gomes Vieira, ilhéu com sede de infinito, sempre
teve para com as coisas do mar e da terra. Um livro que, a partir
de agora, passa a constituir uma referência e um marco incontornável
no âmbito da etnografia marítima.
Horta, 1 de Agosto de 2002
Victor Rui Dores
(1) Na minha qualidade de professor de línguas
anglo-saxónicas, quero também crer que os barcos
têm sexo: feminino. Por alguma razão os barcos ostentam,
quase sempre, nomes de mulheres. Por algum motivo são femininas
as figuras de proa. De igual modo não será em vão
que, na língua inglesa, "boat" (barco), "ship"
(navio) e "plane" (avião) são substantivos
femininos, pelo que são precedidos do pronome pessoal "she".
Exemplo: She´s a beautiful boat.
Recordo, aqui, o poema Os
barcos, do meu amigo Mário Machado Fraião: "os
barcos levam nomes de mulheres/ por elas nos consumimos/ e nos
perdemos/ e nos reencontramos" (
).
Julgo ainda que a associação
barcos / mulheres ultrapassa os domínios do linguístico
e do poético. E isto porque pessoalmente conheço
mulheres que apetecem como barcos. E barcos que têm a sensualidade
e a elegância de mulheres (é o caso das canoas baleeiras)
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