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Comunicação apresentada em
23 de Abril de 2003 - Dia Mundial do Livro - no Museu do Vinho,
Ilha do Pico, Açores
"O livro é um mudo que fala, um
surdo que responde,
um cego que guia, um morto que vive".
Padre
António Vieira
Tendo como pretexto a recente comemoração do Dia
Mundial do Livro (23 de Abril), venho por este meio tecer algumas
considerações sobre o assunto em epígrafe,
num tempo especialmente marcado pela crescente importância
das novas tecnologias da informação e da comunicação.
Com efeito, vivemos um tempo saturado de informação,
comunicação e imagem. E isso tem custos e está
já a marcar indelevelmente uma nova geração
de leitores: os nossos jovens são hoje mais informados,
mas menos eruditos; mais comunicativos, mas menos cultos.
A Internet, o Cd-Rom e a imagem virtual estarão a remeter
o livro para um plano secundário? E numa altura em que
o livro vai dando cada vez mais lugar e mais espaço à
disquete, à cassete e ao micro-filme, estaremos nós
a assistir ao fim do livro?
É óbvio que não. A fotografia não
acabou com a pintura; o cinema não acabou com o teatro,
tal como a televisão não acabou com o celulóide.
Nesta ordem de ideias, o computador não vai destronar
o livro, porque não é contra o audio-visual que
o livro deve esgrimir - ele terá que se impor como objecto
"sui generis" até agora insubstituível,
não só na esfera de transmissão de conhecimentos,
mas, sobretudo, na fruição estética, na preservação
da identidade linguística e no aprofundamento do eu.
Por outro lado, nada poderá substituir o prazer físico
de manusear os livros. Falo por mim. Sou um viciado em livros.
E é por isso que não fumo. Ler, é para mim,
uma necessidade orgânica. A minha relação
com os livros é física e intelectual. Gosto do cheiro
do papel, do lustro ou do mate das capas, sobretudo gosto do cheiro
da tinta
Depois há este dado inapelável: podemos
ler os livros sentados, deitados, de bruços ou de cócoras,
prazeres que o computador manifestamente não nos dá
Um livro tem sempre dois autores: aquele que o escreveu e aquele
que o lê. O autor propõe, o leitor dispõe.
Não há livros sem leitores. Livros sem leitores
são "papéis pintados com tinta", como
diria Fernando Pessoa. O leitor é que faz o livro. E se
os livros existem é para serem lidos, estimados e amados.
Para mim, a felicidade está em grande parte ligada aos
livros, Os livros têm sido os meus amigos invisíveis
e irresistíveis que leio e decifro e neles colho conhecimento,
cultura, informação e descoberta, eu que pertenço
a uma geração que não teve o amplo poder
de escolha em matéria de leitura, de que hoje os mais novos
beneficiam. A produção de livros não era
então abundante, nem particularmente atraente do ponto
de vista gráfico. Era o tempo dos livros "aprovados
oficialmente" e patrioticamente visados pela censura do Estado
Novo
Livros houve que mudaram a minha vida: Olhai
os lírios do campo, de Erico Veríssimo e
Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio,
para dar apenas dois exemplos. De resto, Camões, Almeida
Garrett, Antero de Quental, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa,
bem como Dickens, Sterne, Stendhal, Dostoiewski, Flaubert, Balzac,
Melville, Steinbeck, Poe, Hemingway, entre outros, são
os meus mestres de cabeceira e o meu pão de cada dia
Leio sempre vários livros ao mesmo tempo. Tenho-os espalhados
em minha casa por vários quartos, incluindo a casa de banho
Não gosto de ler jornais. Gosto de ler livros. Os jornais
são o efémero. Há, de resto, uma máxima
do jornalismo norte-americano que diz o seguinte: "A tua
melhor notícia de hoje servirá para embrulhar peixe
amanhã". Só o livro é perene e eterno.
Aliás, o mundo, tal como o conhecemos,
tem sido feito pelos livros. Da Bíblia, do
Corão ao Capital e a Freud,
da Ilíada e da Odisseia a Voltaire
e a Victor Hugo, de Hegel a Proust e aos nossos livros escolares,
os homens vivem de ideias transportadas por livros, que nem sempre
leram, mas dos quais eles são filhos.
A propósito, convirá fazer aqui
uma destrinça entre leitores e compradores de livros. O
leitor lê efectivamente os
livros que compra; o comprador de livros
limita-se a comprar livros e a colocá-los na estante (quase
sempre para fins de ornamento) com a intenção de
os vir a ler um dia
Há mesmo quem diga que a cultura de um povo se detecta
nos lugares públicos: nos aeroportos, nas salas de espera,
nos cafés, nos transportes públicos. Em recente
viagem que fiz à Alemanha deu para ver que os estrangeiros
liam livros, ao passo que os portugueses liam jornais desportivos
E, no entanto, assiste-se actualmente no nosso país a
uma grande vitalidade editorial. Só que essa pujança
editorial está muitas vezes aliada a gigantescas acções
promocionais que nos levam a comprar livros como quem compra sabão
ou batatas
Há por aí muita prostituição
livresca encapotada de técnicas de "marketing".
Nos nossos locais de trabalho somos, não raras vezes, assediados
pelos vendilhões das grandes editoras e pelas pitonisas
jeitosas e bem falantes que, de forma insinuante e insidiosa,
nos levam a comprar livros, muitos dos quais jamais leremos. Cabe-nos
saber separar o trigo do joio.
Hoje o bom escritor parece não ser aquele em cujas obras
se vislumbra qualidade estética e literária; hoje
o bom escritor é aquele que é publicado pelas grandes
editoras, aparece na televisão e é mediático
e pertence a capelinhas literárias de Lisboa
Pergunto: que protecção se faz à edição
do livro de qualidade em prejuízo do livro medíocre?
O que se tem feito entre nós pela promoção
da prática do mecenato cultural? Saberemos, acaso, que
na maior parte dos países da Comunidade Europeia cada cidadão
gasta em média 4 a 5 por cento do seu orçamento
em bens culturais? E estaremos conscientes de que esse impacto
é gerador de mais empregos e de mais vitalidade social?
Infelizmente vivemos num país que à Educação
e à Cultura não dá verbas, mas gorjetas
Em Portugal, as políticas culturais vão sempre a
reboque das políticas económicas, quando em muitos
outros países é precisamente o contrário:
é o Estado que se responsabiliza pelas despesas relativas
a livros e materiais escolares dos alunos da escolaridade obrigatória.
Em Portugal é o que se vê: os livros escolares são
escandalosamente caros e de um regime de livro único, de
má memória, assiste-se a uma impressionante catadupa
de títulos que encarecem de ano para ano.
A solução passa obviamente por uma política
que invista na Educação como sector prioritário.
E passa por uma mudança de atitude cultural e educativa.
Mais do que formar bons alunos, as Escolas terão que promover
uma eficaz e eficiente aprendizagem para a cidadania, porque só
com bons e melhores cidadãos é que poderemos ter
mudanças na nossa sociedade. E o busílis da questão
está aqui mesmo. O que é difícil não
é aderirmos a ideias novas, o que é difícil
é libertarmo-nos das ideias velhas
É certo que temos em Portugal bons escritores, bons poetas,
bons ficcionistas e bons livros, mas invariavelmente falham os
circuitos de promoção e divulgação
dos mesmos. É o marketing a fazer das suas e a trocar muitas
vezes as voltas dos bons autores e favorecendo escritores menores
da chamada literatura "light".
"Eu gostaria de viver num mundo em que todos fossem escritores
e leitores", escreveu Jean Paul Sartre. Visão utópica
e romântica. A realidade é bem diferente.
A ditadura que nos atormentou durante 48 anos causou abundantes
estragos no nosso desenvolvimento cultural, social e económico.
O resultado está à vista de todos: Portugal continua
a possuir a mais baixa taxa de escolarização da
Europa. E os que escrevem neste país batem-se contra 18%
de analfabetos, 62% de portugueses que nunca leram um livro e
72% que não sabem interpretar um texto. Aqui nos Açores
há um dado estatístico que seria cómico se
não fosse trágico: a média de leitores açorianos
em termos de consumo literário é de 2%... O que
já levou o meu bom amigo Onésimo Teotónio
de Almeida a escrever que "é mais difícil vender
livros nos Açores do que frigoríficos no Alaska"
Não obstante a nossa iletracia, possuímos uma
das melhores produções literárias da Europa.
José Saramago ganhou o Nobel da Literatura em 1998 e foi
mais afortunado do que um Aquilino Ribeiro, um Miguel Torga, um
Fernando Namora ou um Vergílio Ferreira que, na minha opinião,
mereciam também ter ganho aquele galardão, mas tiveram
o azar de serem os homens certos a viverem em épocas erradas
É caso para se dizer que, neste país, a adversidade
aguça o engenho e a falta de meios estimula a criatividade,
o que é uma verdade desde os tempos do desditoso Luís
Vaz de Camões
Aliás, Fernando Pessoa já havia escrito: "A
primeira coisa em que a Lusitânia se tornou notável
na atenção da Europa foi no fenómeno literário.
O primeiro afloramento civilizacional deste país foi um
fenómeno de cultura, isto é, de espírito.
As Descobertas são um acto cultural". À luz
dos nossos dias, isto quer dizer que só pela cultura é
que poderemos efectivamente marcar alguma diferença numa
Europa onde nunca teremos grande expressão económica,
social e política.
O Nobel foi obviamente bom para Saramago, mas foi melhor ainda
para a língua portuguesa. É que não nos esqueçamos
que o português é a 6ª língua mais falada
em todo o mundo, atrás do mandarim, do hindi, do castelhano,
do inglês e do bengali. Segundo dados da Unesco, no ano
2000 o português era falado por 176 milhões de falantes.
Temos, pois, a 6ª língua mais falada num universo
de 6.700 línguas existentes no nosso planeta. Este é
um património de que nos devemos orgulhar.
Há dados oficiais que provam que, nestes penhascos vulcânicos,
há muito mais gente a escrever, a tocar música e
a cantar do que propriamente a ler. Escreve-se muito aqui nos
Açores, porque temos necessidade de quebrar silêncios
e distâncias, e porque a influência do meio geográfico,
juntamente com uma forte tradição oral e musical,
nos levou à poesia, à literatura, ao canto, à
música, mas também ao misticismo, à neurastenia,
ao álcool
Já acima falei na necessidade de uma mudança de
mentalidades. Mas a mudança não se decreta, constrói-se
gradualmente. E esse é um trabalho que forçosamente
terá que começar no ensino básico. Há
que incutir, o mais cedo possível, nos nossos jovens o
gosto pela leitura, a fruição estética das
palavras e isso é uma tarefa que cabe a todos nós.
Estimular a imaginação aos nossos filhos implica
leituras, implica que lhes contemos histórias. Sei de muitos
casais que para não terem esse trabalho limitam-se a adormecer
os seus filhos através de filmes e vídeos, impedindo
que se estabeleça a respiração e a componente
afectiva que deve existir na mensagem emissor-receptor.
Por mais que as tecnologias evoluam, o livro há-de no
futuro continuar a ser o que sempre foi: um apelo à nossa
inteligência, à nossa sensibilidade, à nossa
imaginação, ao nosso espírito crítico
e ao nosso desejo de aventura. Penso que já todos nós
compreendemos que a Internet é uma ferramenta de trabalho,
é um meio e não um fim. Vamos, pois, continuar a
ler livros. Vamos continuar a fazer pesquisas nas bibliotecas,
porque também já chegámos à conclusão
de que as capacidades das tecnologias da comunicação
e da informação são, afinal, bastante finitas.
Importa que as nossas bibliotecas deixem de ser celeiros públicos,
ou armazéns de livros. E isto porque os livros devem circular,
andar de mão e mão e chegar ao coração
das pessoas.
Viva o livro!
Victor Rui Dores
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