VICTOR RUI DORES - Livros, leitores e leituras


Comunicação apresentada em 23 de Abril de 2003 - Dia Mundial do Livro - no Museu do Vinho, Ilha do Pico, Açores

"O livro é um mudo que fala, um surdo que responde,
um cego que guia, um morto que vive".
                                                Padre António Vieira


Tendo como pretexto a recente comemoração do Dia Mundial do Livro (23 de Abril), venho por este meio tecer algumas considerações sobre o assunto em epígrafe, num tempo especialmente marcado pela crescente importância das novas tecnologias da informação e da comunicação.

Com efeito, vivemos um tempo saturado de informação, comunicação e imagem. E isso tem custos e está já a marcar indelevelmente uma nova geração de leitores: os nossos jovens são hoje mais informados, mas menos eruditos; mais comunicativos, mas menos cultos.

A Internet, o Cd-Rom e a imagem virtual estarão a remeter o livro para um plano secundário? E numa altura em que o livro vai dando cada vez mais lugar e mais espaço à disquete, à cassete e ao micro-filme, estaremos nós a assistir ao fim do livro?

É óbvio que não. A fotografia não acabou com a pintura; o cinema não acabou com o teatro, tal como a televisão não acabou com o celulóide.

Nesta ordem de ideias, o computador não vai destronar o livro, porque não é contra o audio-visual que o livro deve esgrimir - ele terá que se impor como objecto "sui generis" até agora insubstituível, não só na esfera de transmissão de conhecimentos, mas, sobretudo, na fruição estética, na preservação da identidade linguística e no aprofundamento do eu.

Por outro lado, nada poderá substituir o prazer físico de manusear os livros. Falo por mim. Sou um viciado em livros. E é por isso que não fumo. Ler, é para mim, uma necessidade orgânica. A minha relação com os livros é física e intelectual. Gosto do cheiro do papel, do lustro ou do mate das capas, sobretudo gosto do cheiro da tinta… Depois há este dado inapelável: podemos ler os livros sentados, deitados, de bruços ou de cócoras, prazeres que o computador manifestamente não nos dá…

Um livro tem sempre dois autores: aquele que o escreveu e aquele que o lê. O autor propõe, o leitor dispõe. Não há livros sem leitores. Livros sem leitores são "papéis pintados com tinta", como diria Fernando Pessoa. O leitor é que faz o livro. E se os livros existem é para serem lidos, estimados e amados.

Para mim, a felicidade está em grande parte ligada aos livros, Os livros têm sido os meus amigos invisíveis e irresistíveis que leio e decifro e neles colho conhecimento, cultura, informação e descoberta, eu que pertenço a uma geração que não teve o amplo poder de escolha em matéria de leitura, de que hoje os mais novos beneficiam. A produção de livros não era então abundante, nem particularmente atraente do ponto de vista gráfico. Era o tempo dos livros "aprovados oficialmente" e patrioticamente visados pela censura do Estado Novo…

Livros houve que mudaram a minha vida: Olhai os lírios do campo, de Erico Veríssimo e Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, para dar apenas dois exemplos. De resto, Camões, Almeida Garrett, Antero de Quental, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa, bem como Dickens, Sterne, Stendhal, Dostoiewski, Flaubert, Balzac, Melville, Steinbeck, Poe, Hemingway, entre outros, são os meus mestres de cabeceira e o meu pão de cada dia… Leio sempre vários livros ao mesmo tempo. Tenho-os espalhados em minha casa por vários quartos, incluindo a casa de banho… Não gosto de ler jornais. Gosto de ler livros. Os jornais são o efémero. Há, de resto, uma máxima do jornalismo norte-americano que diz o seguinte: "A tua melhor notícia de hoje servirá para embrulhar peixe amanhã". Só o livro é perene e eterno.

Aliás, o mundo, tal como o conhecemos, tem sido feito pelos livros. Da Bíblia, do Corão ao Capital e a Freud, da Ilíada e da Odisseia a Voltaire e a Victor Hugo, de Hegel a Proust e aos nossos livros escolares, os homens vivem de ideias transportadas por livros, que nem sempre leram, mas dos quais eles são filhos.

A propósito, convirá fazer aqui uma destrinça entre leitores e compradores de livros. O leitor lê efectivamente os livros que compra; o comprador de livros limita-se a comprar livros e a colocá-los na estante (quase sempre para fins de ornamento) com a intenção de os vir a ler um dia…

Há mesmo quem diga que a cultura de um povo se detecta nos lugares públicos: nos aeroportos, nas salas de espera, nos cafés, nos transportes públicos. Em recente viagem que fiz à Alemanha deu para ver que os estrangeiros liam livros, ao passo que os portugueses liam jornais desportivos…

E, no entanto, assiste-se actualmente no nosso país a uma grande vitalidade editorial. Só que essa pujança editorial está muitas vezes aliada a gigantescas acções promocionais que nos levam a comprar livros como quem compra sabão ou batatas… Há por aí muita prostituição livresca encapotada de técnicas de "marketing". Nos nossos locais de trabalho somos, não raras vezes, assediados pelos vendilhões das grandes editoras e pelas pitonisas jeitosas e bem falantes que, de forma insinuante e insidiosa, nos levam a comprar livros, muitos dos quais jamais leremos. Cabe-nos saber separar o trigo do joio.

Hoje o bom escritor parece não ser aquele em cujas obras se vislumbra qualidade estética e literária; hoje o bom escritor é aquele que é publicado pelas grandes editoras, aparece na televisão e é mediático e pertence a capelinhas literárias de Lisboa…

Pergunto: que protecção se faz à edição do livro de qualidade em prejuízo do livro medíocre? O que se tem feito entre nós pela promoção da prática do mecenato cultural? Saberemos, acaso, que na maior parte dos países da Comunidade Europeia cada cidadão gasta em média 4 a 5 por cento do seu orçamento em bens culturais? E estaremos conscientes de que esse impacto é gerador de mais empregos e de mais vitalidade social?

Infelizmente vivemos num país que à Educação e à Cultura não dá verbas, mas gorjetas… Em Portugal, as políticas culturais vão sempre a reboque das políticas económicas, quando em muitos outros países é precisamente o contrário: é o Estado que se responsabiliza pelas despesas relativas a livros e materiais escolares dos alunos da escolaridade obrigatória. Em Portugal é o que se vê: os livros escolares são escandalosamente caros e de um regime de livro único, de má memória, assiste-se a uma impressionante catadupa de títulos que encarecem de ano para ano.

A solução passa obviamente por uma política que invista na Educação como sector prioritário. E passa por uma mudança de atitude cultural e educativa. Mais do que formar bons alunos, as Escolas terão que promover uma eficaz e eficiente aprendizagem para a cidadania, porque só com bons e melhores cidadãos é que poderemos ter mudanças na nossa sociedade. E o busílis da questão está aqui mesmo. O que é difícil não é aderirmos a ideias novas, o que é difícil é libertarmo-nos das ideias velhas…

É certo que temos em Portugal bons escritores, bons poetas, bons ficcionistas e bons livros, mas invariavelmente falham os circuitos de promoção e divulgação dos mesmos. É o marketing a fazer das suas e a trocar muitas vezes as voltas dos bons autores e favorecendo escritores menores da chamada literatura "light".

"Eu gostaria de viver num mundo em que todos fossem escritores e leitores", escreveu Jean Paul Sartre. Visão utópica e romântica. A realidade é bem diferente.

A ditadura que nos atormentou durante 48 anos causou abundantes estragos no nosso desenvolvimento cultural, social e económico. O resultado está à vista de todos: Portugal continua a possuir a mais baixa taxa de escolarização da Europa. E os que escrevem neste país batem-se contra 18% de analfabetos, 62% de portugueses que nunca leram um livro e 72% que não sabem interpretar um texto. Aqui nos Açores há um dado estatístico que seria cómico se não fosse trágico: a média de leitores açorianos em termos de consumo literário é de 2%... O que já levou o meu bom amigo Onésimo Teotónio de Almeida a escrever que "é mais difícil vender livros nos Açores do que frigoríficos no Alaska"…

Não obstante a nossa iletracia, possuímos uma das melhores produções literárias da Europa. José Saramago ganhou o Nobel da Literatura em 1998 e foi mais afortunado do que um Aquilino Ribeiro, um Miguel Torga, um Fernando Namora ou um Vergílio Ferreira que, na minha opinião, mereciam também ter ganho aquele galardão, mas tiveram o azar de serem os homens certos a viverem em épocas erradas… É caso para se dizer que, neste país, a adversidade aguça o engenho e a falta de meios estimula a criatividade, o que é uma verdade desde os tempos do desditoso Luís Vaz de Camões…

Aliás, Fernando Pessoa já havia escrito: "A primeira coisa em que a Lusitânia se tornou notável na atenção da Europa foi no fenómeno literário. O primeiro afloramento civilizacional deste país foi um fenómeno de cultura, isto é, de espírito. As Descobertas são um acto cultural". À luz dos nossos dias, isto quer dizer que só pela cultura é que poderemos efectivamente marcar alguma diferença numa Europa onde nunca teremos grande expressão económica, social e política.

O Nobel foi obviamente bom para Saramago, mas foi melhor ainda para a língua portuguesa. É que não nos esqueçamos que o português é a 6ª língua mais falada em todo o mundo, atrás do mandarim, do hindi, do castelhano, do inglês e do bengali. Segundo dados da Unesco, no ano 2000 o português era falado por 176 milhões de falantes. Temos, pois, a 6ª língua mais falada num universo de 6.700 línguas existentes no nosso planeta. Este é um património de que nos devemos orgulhar.

Há dados oficiais que provam que, nestes penhascos vulcânicos, há muito mais gente a escrever, a tocar música e a cantar do que propriamente a ler. Escreve-se muito aqui nos Açores, porque temos necessidade de quebrar silêncios e distâncias, e porque a influência do meio geográfico, juntamente com uma forte tradição oral e musical, nos levou à poesia, à literatura, ao canto, à música, mas também ao misticismo, à neurastenia, ao álcool…

Já acima falei na necessidade de uma mudança de mentalidades. Mas a mudança não se decreta, constrói-se gradualmente. E esse é um trabalho que forçosamente terá que começar no ensino básico. Há que incutir, o mais cedo possível, nos nossos jovens o gosto pela leitura, a fruição estética das palavras e isso é uma tarefa que cabe a todos nós. Estimular a imaginação aos nossos filhos implica leituras, implica que lhes contemos histórias. Sei de muitos casais que para não terem esse trabalho limitam-se a adormecer os seus filhos através de filmes e vídeos, impedindo que se estabeleça a respiração e a componente afectiva que deve existir na mensagem emissor-receptor.

Por mais que as tecnologias evoluam, o livro há-de no futuro continuar a ser o que sempre foi: um apelo à nossa inteligência, à nossa sensibilidade, à nossa imaginação, ao nosso espírito crítico e ao nosso desejo de aventura. Penso que já todos nós compreendemos que a Internet é uma ferramenta de trabalho, é um meio e não um fim. Vamos, pois, continuar a ler livros. Vamos continuar a fazer pesquisas nas bibliotecas, porque também já chegámos à conclusão de que as capacidades das tecnologias da comunicação e da informação são, afinal, bastante finitas.

Importa que as nossas bibliotecas deixem de ser celeiros públicos, ou armazéns de livros. E isto porque os livros devem circular, andar de mão e mão e chegar ao coração das pessoas.

Viva o livro!

Victor Rui Dores