VICTOR RUI DORES - Da condição humana
em Pedras Negras, de Dias de Melo


Vinde, vede e lede Dias de Melo, escritor, 78 anos de idade e 50 de vida literária, homem solidário, solitário e fraterno, viciado na escrita e no cachimbo, picaroto da Calheta de Nesquim, baleeiro da literatura açoriana.

Do recolhido silêncio do Alto da Rocha do Canto da Baía, continua este autor a aguentar o rumo da escrita, num percurso literário cujo universo temático consubstancia à sua volta a distância, a ausência, o tempo, a saudade, o afecto, a solidão, o amor, o ódio, o sonho, o pesadelo, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana.

Dias de Melo continua a escrever e a surpreender, ele que fez da ilha do Pico e dos picarotos a matéria prima dos 27 livros que até à data publicou, em diversos registos e diversificados géneros literários: a poesia, a narrativa, o conto, a novela, o romance, a crónica (e dentro desta, a crónica jornalística, a crónica romanceada e a crónica de viagem), a monografia, a dissertação didáctico-pedagógica e o estudo etnográfico. Em toda a sua obra, este escritor, sem nunca fazer concessões a modas literárias ou a modismos narrativos, conta-nos histórias dos homens do mar e da terra - gente de grande riqueza psicológica e funda expressão humana e universal. Está precisamente aqui, na minha opinião, a grandeza deste escritor.

Não é impunemente que os Açores assistiram a 150 anos de baleação nos seus mares. A baleia é por isso mesmo um pedaço da cultura, da memória e da história destas ilhas e faz parte do imaginário destas gentes.

Conhecendo de perto a actividade baleeira e olhando-a e sentindo-a como coisa sua, Dias de Melo (ele próprio baleeiro esporadicamente) fez de grande parte da sua escrita um painel dessa mesma actividade, muito particularmente da que se reporta ao concelho das Lajes. Pessoalmente tenho uma preferência especial pelo livro Vida vivida em terra de baleeiros (1983), em que o autor articula a evocação com a documentação e a pesquisa e fornece-nos elementos valiosos para o historial da baleação no Pico entre 1876 e 1983, isto é, no período que vai da fundação da primeira armação baleeira até à fase de reconhecido declínio e desaparecimento da caça à baleia.

Já muitos têm catalogado Dias de Melo como um autor de temáticas baleeiras. Nada mais injusto e redutor. É que também ele escreveu, com igual mestria, sobre camponeses, pescadores, operários, vaqueiros e muitas outras classes sociais. É certo que este escritor deu já à literatura portuguesa um testemunho empolgante e vigoroso sobre a história anónima e colectiva dos baleeiros da ilha do Pico. Com efeito, ninguém melhor do que Dias de Melo soube captar a verdadeira dimensão humana, social e dramática da saga baleeira, sobretudo nos livros (de ficção narrativa) que constituem aquilo a que Santos Barros chamou "trilogia da baleia" (1) e João de Melo considerou "o ciclo da baleia" (2): Mar Rubro (1958), Pedras Negras (1964) e Mar pela Proa (1976). Mas convirá não esquecer que, fechado este "ciclo", Dias de Melo publicou entretanto 20 livros de inegável importância e riqueza literária, anunciando-se para já a saída de outros dois.

Os rótulos em literatura são sempre perigosos e, bem vistas as coisas, o melhor livro de um escritor é sempre aquele que ainda não foi escrito.

Apesar de tudo, Pedras Negras passa por ser (e é) o livro mais emblemático de Dias de Melo, cuja 3ª edição acaba de ser dada à estampa (Salamandra, 2003). Recorde-se que a primeira edição data de 1964 (Portugália Editora) e a segunda de 1985 (Editorial Vega), havendo desta obra uma edição em inglês: Dark Stones (Providence, Gávea-Brown Publications, 1988), com notável tradução de Gregory McNab.

Quando, há 40 anos, estava esta obra a ser escrita, Portugal vivia um tempo de opressão, censura e policiamento generalizado. Contrariamente ao que muitos afirmam, Dias de Melo nunca alinhou pela corrente literária do neo-realismo, mas emprestava à sua ficção um carácter semi-documental e ensaiava uma tímida literatura de denúncia e combate. E dava testemunho a uma classe, instituindo-a como sujeito colectivo das suas narrativas: os baleeiros da ilha do Pico, que labutam no mar e em terra, mas são objecto de exploração da sua força de trabalho.

Isto explica o contencioso social patente nos livros do já mencionado ciclo da baleia, em que se verifica um conflito aberto entre baleeiros (que não sendo os donos dos botes em que trabalham, acabam por não ver a força do seu trabalho suficientemente bem remunerado) e armadores (que, a pretexto de dificuldades na venda do óleo, exercem grande exploração sobre aqueles). Aliás, não será de todo descabido falar-se aqui num processo de luta de classes e até mesmo numa perspectiva marxista de exploradores (os donos das companhias baleeiras) versus explorados (os baleeiros), porque são antagónicos os interesses de uns e de outros.

Este tipo de conflitualidade não terá apenas causas sócio-económicas, pois há que contar com algo de mais vasto, como o factor da insularidade ligado ao fenómeno da religiosidade que, ao longo dos tempos, moldaram (para o melhor e para o pior) o homem açoriano, tornando-o resignado, propenso ao imobilismo e à "canga da servidão", numa expressão muito feliz de Dias de Melo. É contra estas adversidades e é contra estas marés que os seus baleeiros remam e lutam. Lutam para que se faça justiça. E sonham com um mundo melhor.

A problemática da separação entre a força do trabalho e os meios de produção será equacionada, no livro Mar pela Proa, da seguinte maneira: os baleeiros, conscientes do seu papel de vítimas, associam-se em cooperativa e acabam por adquirir a sua própria companhia baleeira, numa atitude progressiva de revolta e de afirmação. Este acontecimento representa a vitória dos baleeiros sobre as arbitrariedades dos armadores. A partir daí já não são estes os adversários dos baleeiros, mas a fúria do mar que leva consigo botes e homens.

E é chegada a altura de lançar alguns breves olhares sobre Pedras Negras.

Já muito se escreveu sobre o impacto produzido pela caça à baleia na vida açoriana, sobretudo nas ilhas do grupo central, as suas incidências no tecido social e a sua importância económica. Mas convirá não esquecer que, antes de a caça à baleia se tornar uma actividade industrial radicada nos Açores, as baleeiras norte-americanas tinham funcionado como um recurso para a mão-de-obra açoriana e, principalmente, o veículo privilegiado para se atingir o território do Novo Mundo, em fuga ao recrutamento militar e à fome - e desse modo são inseparáveis os rumos que a emigração açoriana tomou no século XIX, com reflexos na própria linguagem, em que a palavra baleeiro se tornou equivalente a emigrante. (3)

Ora, Pedras Negras, cuja acção decorre entre os princípios do século XX até finais da 2ª Guerra Mundial, tem a baleia como pano de fundo, mas é fundamentalmente um romance sobre a viagem da vida, a condição humana e a memória dos tempos. Arquitectado sobre a problemática da emigração, o livro é percorrido por uma profunda açorianidade, onde terras e gentes nos transmitem uma impressão de vida áspera, de solidão insulada, onde a luta pela dignidade é uma constante e a sobrevivência se ganha a pulso. As pedras negras que cobrem o chão da ilha simbolizam bem a força telúrica que marcou e moldou o picaroto em séculos de "fome, secas, ciclones, fogo de vulcões, terramotos".

A personagem central é Francisco Marroco que, aos 16 anos de idade, desafia a ilha e, com o seu amigo João Peixe-Rei, embarca de salto na baleeira "Queen of the Seas", com os olhos postos na América… Só lá chegará três anos depois, tendo percorrido os mares de todo o mundo à caça da baleia: Cabo Verde, Ascenção, Santa Helena, Cabo da Boa Esperança, o Índico e o Pacífico…

Francisco Marroco e João Peixe-Rei, que encontraram na errância a sua forma de perseguir a felicidade e o sonho, tipificam - e bem - os baleeiros da ilha do Pico: inconformistas, corajosos e destemidos, sempre prontos ao risco e à solidariedade, um sentido muito apurado de dignidade e um sentimento de liberdade que se aprende nas rotas marítimas. Por outro lado, e porque "a ilha escorraça a gente", ambos simbolizam o sonho da viagem, no desejo de quebrar amarras e de ultrapassar horizontes. E são, ao mesmo tempo, duas personagens trágicas, dois heróis vencidos: João Peixe-Rei morre no mar em plena baleação, nas lonjuras do Cabo Horn, naquele que constitui um dos momentos de maior sentimento da narrativa.

Francisco Marroco conhece a vida dura em terras americanas: aniquilado pela disciplina rígida da vida a bordo, e explorado pelos capitães, deixa o mar e a baleação e vai trabalhar para o Vale de S. Joaquim, no rancho de Albano Passarinho, açoriano da ilha de S. Jorge, mas acaba também explorado e despedido por este. Sem emprego, passa fome e mendiga nas estradas da Califórnia, e acaba por encontrar abrigo e trabalho na leitaria do casal Parreira, ele Miguel, natural da ilha Terceira; ela, Elisa, da Graciosa.

Reunindo algumas economias, e após trabalhar para os Parreiras durante mais de uma dúzia de anos, Francisco Marroco decide regressar à ilha, numa altura em que já ultrapassara os 30 anos de idade. Regressado à sua terra natal, é esmagado por essa mesma terra, após o fugaz intervalo de uma felicidade passageira e ilusória, em que conheceu o estatuto de "senhor americano", construiu casa nova, casou com Maria do Roque, que lhe deu dois filhos (António e Ludovina) e depositou dinheiro no Banco de Nossa Senhora da Vida…

Livro sobre a condição humana, Pedras Negras poderá também ser estudado à luz de uma perspectiva maniqueísta do bem e do mal, em que os bons (Francisco Marroco, Idalina, viúva de João Peixe-Rei e Joaquim, o filho destes, e ainda Miguel e Elisa Parreira) se confrontam com os maus, tipificados em Albano Passarinho, Augusto Bóia e Chico Gaudêncio, gente arrogante e hipócrita, dada a hostilidades, invejas, rancores, malquerenças, ganâncias e falta de solidariedade. A estratificação social ordena-se do seguinte modo. Os pobres são ofendidos e humilhados. Os ricos (o capitão Grilo e o capitão Silvestre, no Pico; a família Crown, no Faial) exercem o poder absoluto sobre os pobres. Para garantir o status quo e manter a autoridade do sistema, temos o regedor, o padre, o professor primário, o guarda fiscal e o cabo do mar.

Como contraponto a tudo isto, Pedras Negras é atravessado por danças e folguedos, "festas e comezainas". E, sobretudo, por música. É que, nos momentos mais significativos do romance, há a referência a um instrumento que, para o ilhéu, funcionou sempre como uma forma de quebrar a solidão, o silêncio e a distância: a viola. (4)

A viola que o pai de Francisco Marroco harpejou quando conheceu a namorada, é a mesma que ficará "dependurada na sala de fora" enquanto o filho se encontra ausente, e será ela que alegrará mais tarde, no regresso, o seu casamento: "…não podendo o velho conter mais tanta alegria a estoirar-lhe no peito, entrou em casa, dependurou a viola do prego do canto do relógio, sacudiu-lhe o pó e as teias de aranha, mandou que fossem comprar cordas novinhas - e, como ele ressuscitava, ali ressuscitou a viola antiga que parecia morta desde a noite em que o filho dera o salto. E de olhos em brasa, rasgava estridente a chamarrita…" (p.120). Simbolicamente o velho morrerá no Domingo do Espírito Santo, precisamente numa altura em que, pela rua, se ouvia música a ser tocada…

Aliás, este é um livro bastante cinematográfico e que bem merecia que José Medeiros o adaptasse e realizasse para série televisiva. É que Dias de Melo recorre ao "flash back" e a sua técnica narrativa é absolutamente compatível com a técnica cinematográfica. Vejamos um exemplo: na lonjura da Califórnia, Francisco Marroco recebe duas cartas, uma dos pais e outra de Maria, sua noiva. A leitura cruzada e paralela que delas sofregamente faz é de uma extrema modernidade. E veja-se estes espantosos momentos visuais que constituem a morte de uma baleia:

"E foi então que Francisco Marroco viu. Enlouquecida com a surpresa do ferro que se lhe espetara na carne, a baleia estrebuchava lá adiante, e era coisa pavorosa aquela montanha negra a atirar-se fora do mar, a levantar a cauda, a varejá-la à esquerda e à direita, a deixá-la tombar na inferneira das espumas altas como torres. (…) nada existia para Francisco Marroco senão o deslumbramento do espectáculo, que ultrapassava quanto ouvira e quanto se pudesse imaginar. De súbito, sentiu-se arrancado à imobilidade do assombro: um dos companheiros, olhos arregalados de pavor, acabava de o salvar da linha, que lhe passava a menos de uma polegada das pernas" (p. 52).

(…) "- Já bufa sangue. Está aqui, está morta - disse o piloto.

E o bote afastou-se, afastou-se muito, e ficou ao largo, a companha olhando a baleia, que vomitava restos de lulas e pedaços das entranhas esfaceladas. E que vomitava, cuspia, escarrava, esguichava sangue - e à volta enchia todo o mar de sangue. Até que estremeceu, sacudiu a cabeça, atirou o rabo com violência maior do que nunca, pulou completamente fora do mar - e caiu desamparada. Estava morta. Seriam quatro horas da tarde. Fora arpoada às oito da manhã". (p. 54)

Finalmente há a assinalar, nesta obra, a recriação da fala do homem do Pico, através de uma linguagem popular "que não faz concessões à facilidade e ao regionalismo folclórico" (5). Alguns exemplos:

"Vá! Mais feijão! Não vamos estar com lijunjas - insistia Elisa" (cerimónias, p. 85); "Não te açodes, Frank, não tenhas medo!" (não te preocupes, p. 48); "Esse Caim!" (patife); "Corram vocês o mar todo com os binóculos! Fartaram-se de vento, essas cains", e podem sair longe". (referente às baleias, p. 50); "vento esfola-vacas" (o vento da montanha do Pico que traz o frio); "quero d´ir contigo"; "E p´ra onde é que queres d´ir trabalhar?" (p. 69); "Vá-se com diabos, diabo! Aguenta-me esse bote! E tu, cabeça de maçaroca (um sueco esgrouviado), passa-me aquele cabo" (p. 55); "Não estamos para ir todos p´ró maneta por tua causa" (morrer, p. 53); "Tenho p´ra mim que ele há-de ter bagalhoiço" (dinheiro, p.118); "-Por mim, nunca era o filho de meu pai. Lá quem tenha dinheiro a barlavento, como o senhor Francisco, que chegou de Calafona…" (muito dinheiro, p. 115).

Há ainda a considerar algumas expressões arcaicas: "Obei, home, isso nem é p´rá gente. Leve as cavalas, e quando precisar… Nunca passe falta! Mestre Bendito cá está" (interjeição de espanto, p. 116); "Mandou-o procurar vida para outra beirada" (despediu-o, p. 78); "O que fizeres, p´ra ti é. Eu mai-la tua mãe não contamos já (mais, p. 122); "Custa-nos os olhos da cara, mas não te vamos quitar um futuro que nunca poderás ter aqui" (deixar, p. 37); "Resmungavam as mulheres (…) Invejosas punham-se de lado, a bispar de olhos torcidos que tudo viam e interpretavam lá a seu jeito" (mexericar, p. 111); "E não se açarelasse: alceirado o povo com a história do Banco, não faltaria quem quisesse vender (açarelar: preocupar; alceirado: incomodado, p. 121); tresandar (cheirar mal); ganhoa (gaivota); casquinada (brincadeira, piada); andaço (epidemia; mal contagioso); esfalfado (exausto); estâmego (estômago); botequim (mercearia), entre outras.

Apresentando-se, ainda e sempre, com grande rigor formal e apetecível frescura narrativa, dando conta de uma história bem contada, escrita que está com sóbria mestria discursiva, Pedras Negras não envelheceu nem um bocadinho e continua a emocionar e a surpreender. Por isso mesmo é um livro de todos os tempos e lugares. E por isso mesmo Dias de Melo continua a ser universal a partir da ilha do Pico.

Horta, 19 de Setembro de 2003

Victor Rui Dores               

Notas

(1) J.H. Santos Barros, 1957-1977 - 20 anos de Literatura e Arte nos Açores. Lisboa, Garajau, 1977 (edição policopiada).
(2) "Um olhar sobre a literatura açoriana dos últimos vinte anos (1960-1980), in Toda e Qualquer Escrita (estudos, ensaios e críticas de literatura), Editorial Veja (Lisboa, 1982).
(3) Recomenda-se, a propósito, a leitura de dois (excelentes) ensaios de Urbano Bettencourt: "Emigração e Literatura - alguns fios da meada" (Câmara Municipal da Horta, 1989); e "A baleação na narrativa açoriana (e duas ou três "fugas")", in O Gosto das palavras II (Jornal da Cultura, Ponta Delgada, 1995).
(4) Esta ocorrência é também referida por Tibério Silva, no ensaio "O Ciclo da Baleia", na revista Memória da Água-Viva nº 5 (Dezembro de 1979).
(5) Assim opina acertadamente Luís Fagundes Duarte, no Prefácio que para esta edição escreveu.