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Com olhar atento e mão certeira, continua Cristóvão
de Aguiar a carregar a ilha perdida e mitificada e a escrever
a sua (e nossa) memória insular. E fá-lo com mestria
narrativa, imaginação verbal e ousadia sintáctica,
num discurso literário que mergulha fundo na raiz (comovida)
e no húmus da oralidade açoriana. É disso
exemplo o seu mais recente livro, Trasfega (Dom
Quixote, 2003), que recebeu o Prémio Literário Miguel
Torga/Cidade de Coimbra 2002 e foi recentemente lançado
entre nós.
A obra, que inclui treze contos, inscreve-se
e escreve-se no âmbito da literatura de significação
açoriana. Ainda e sempre, há um imaginário
ilhéu, há uma memória telúrica e há
uma capacidade evocativa que escreve Cristóvão de
Aguiar. Essa memória é o atlas do escritor que,
nos seus livros, continua a dar conta da sua identificação
com a ilha e consigo próprio. Porque a ilha deixa uma memória
indelével e retroactiva: nela está o paraíso
irremediavelmente perdido da infância e da adolescência.
Daí a revisitação que o narrador empreende
a toda a geografia sentimental, afectiva e humana à terra
que lhe deu berço: a ilha de S. Miguel.
Falar deste autor é falar da regionalização
de uma escrita vernácula e de uma efabulação
literária autêntica. Cristóvão de Aguiar
escreve o homem açoriano, descreve a paisagem açoriana,
exorciza a memória e capta o "espírito do lugar"
porque aprendeu - e bem - a lição de Miguel Torga:
"o universal é o local sem paredes". Ou seja,
quanto mais regional, mais universal.
De resto, Cristóvão de Aguiar nunca
pertenceu "à confraria dos anátomo-patologistas
das nossas Faculdades de Letras" (olá, Vasco Pereira
da Costa!), ou seja, o seu ofício nunca foi o de fazer
anatomia à literatura, e nunca embarcou em semióticas
da diegese do texto e às escritas barrocas e gongóricas
disse não. O que ele sempre gostou foi de narrar histórias
com princípio, meio e fim, de modo escorreito e original.
Por isso mesmo, a língua portuguesa sai sempre dignificada,
(re)vivificada nos seus livros. E também por isso não
tenho pejo nenhum em (re)afirmar que, mutatis mutandis,
Cristóvão de Aguiar está para os Açores
assim como Aquilino Ribeiro está para as Beiras. Ambos
são mestres na sintaxe rural (e coloquial) da narração.
Ambos exploram e recuperam, de forma notável, as potencialidades
do arcaísmo, da fraseologia popular e do vocabulário,
dando forma, conteúdo e riqueza à nossa língua.
Trasfega continua a saga da trilogia
romanesca Raiz Comovida (o livro mais emblemático
de Cristóvão de Aguiar, agora em nova versão
revista e remodelada, numa belíssima edição
da Dom Quixote, saída este ano) e vem acrescentar, à
galeria imensa de personagens populares deste autor, um José
Maiato (que recebeu uma Língua de Fogo que o pôs
a falar inglês, sem ele saber como), um Mestre Libório
(dado a estranhíssimas flatulências
), uma Tia
Escolástica das Dores (soberba beata), um Ti Burrica (velhote
castiço de grande recorte humano), entre outras.
Mas este livro não dá só
conta de gente rural, de inocências rústicas e de
acontecimentos pícaros. Há aqui dois registos, dois
investimentos semânticos: o popular e o literário.
Vejamos estes exemplos:
" a Ti Mariana das Quintas, mulher
de gadanho rijo e de pêlo na venta"... (pág.
50);
"Caminhava ligeiro galopando em seu dorso
nu. Das calhas do silêncio, alucinado de sirenes, escorria
um bafor de incêndio"
(pág. 96)
O narrador age e reage: comenta, analisa, denuncia,
renuncia, questiona o real, empreende viagens interiores. Narrativas
há em que ele se confronta com as suas próprias
memórias e vivências, havendo a salientar o conto
"Trasfega" em que uma voz narrativa se intromete para
fazer uma espécie de inquérito ao subconsciente.
Esta mesma situação verifica-se no conto "Domingo",
o que empresta a esta obra marcas de diferença e de originalidade.
A religiosidade açoriana é, por
outro lado, muitíssimo bem agarrada (e ironizada) nos contos
"Judas Iscariotes" e "O Sonho". Neste último,
há um soberbo retrato de padrice e beatice e há
a história de um seminarista (nunca a iniciação
sexual foi tão longe na literatura açoriana) de
ressonâncias queirozianas, que bem mereciam um filme. Custódio
(na pele de um outro Padre Amaro) e Tia Escolástica (no
papel de uma outra S. Joaneira) passarão, a partir de agora,
a emparceirar com as grandes personagens da melhor literatura
portuguesa de sempre. E a merecer, por isso mesmo, a melhor atenção
do realizador José Medeiros, que, à referida trilogia
romanesca, foi colher abundante campo de referências para
as celebradas séries televisivas "Xailes Negros"
e "O Barco e o Sonho"
Há um outro tema que é recorrente
na larga folha de serviços literários de Cristóvão
de Aguiar: a Guerra Colonial, ferida que ainda não cicatrizou
na sua memória, pois que, durante dois anos, conheceu uma
experiência traumatizante na Guiné. Há ecos
e memórias que ressoam no belíssimo conto "A
Noite e a Sombra", que, de forma onírica e fantástica,
dá conta do absurdo desse estúpido e inútil
conflito armado. Recorde-se que este romancista é autor
de uma das melhores ficções sobre a referida guerra:
O Braço Tatuado (Signo, 1990).
Trasfega remete-nos para um tempo
fascizante e salazarento em que os poderes absolutos (o governativo,
o clerical e o militar) corrompiam absolutamente. O cerco apertava-se
e, mesmo no microcosmo pacato da ilha, as personagens defrontam-se
e confrontam-se com os poderes instituídos e com os mecanismos
aleatórios e repressivos do Estado Novo. O regedor, o padre
e o professor primário simbolizavam (e exerciam) o poder
e policiavam os bons costumes
Apreciei ainda, neste livro, o enfocamento visual
na maneira de contar. Atente-se neste exemplo:
"Sentada no vão da janela, Maria
do Carmo fixa os olhos num ponto imaginário, deixa os lábios
esboçarem um sorriso de incerteza e pergunta para dentro
de si mesma se Custódio era de facto sincero. Duas lágrimas
quentes e teimosas deslizam como dois ribeirinhos pelas faces
abaixo e vão alojar-se-lhe na boca encarnada. São
salgadas. Como o sal que o padre António lhe colocara na
boca no dia do seu baptizado, havia mais de vinte e cinco anos
".
Estão aqui as técnicas cinematográficas
do "raccord" e do "flash back": as lágrimas
salgadas de Maria do Carmo (presente, a cores) e o sal que lhe
foi colocado na boca no dia do seu baptizado (passado, em sépia).
É de uma grande eficácia o traçado substantivo
da escrita e é deveras excelente a visualidade dos diálogos
(cf. "O Sonho").
Trasfega será porventura
a obra mais cinematográfica de Cristóvão
de Aguiar, mesmo sendo um livro de passagem. Se bem que, para
mim, Um Grito em Chamas (Salamandra, 1995) continue
a ser o seu melhor livro, aceito o sábio princípio
que diz que o melhor livro de um escritor é sempre aquele
que ainda não foi escrito
Horta, 28 de Agosto de 2003
Victor Rui Dores
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