VICTOR RUI DORES - Das Memórias do Cabo Submarino


Acabo de ler um livro que é um contributo valiosíssimo para a história sócio-económica da cidade da Horta. Trata-se de O Cabo Submarino e outras crónicas faialenses (edição do Núcleo Cultural da Horta, 2002), da autoria de Carlos Ramos da Silveira.

Apresentando-se com apetecível aspecto gráfico e contendo abundante e preciosa iconografia, a obra dá conta de factos, acontecimentos e vivências directamente relacionados com as companhias telegráficas estrangeiras que, durante mais de seis décadas, permaneceram na cidade da Horta. A influência de ingleses, americanos, alemães e italianos foi decisiva no meio faialense e a diversos níveis: do social ao económico, do cultural ao desportivo. E tudo isto nos é apresentado numa perspectiva que sendo histórica, é também do âmbito da sociologia.

Bem documentado e informado, Carlos Ramos da Silveira aborda, por um lado, o Cabo Submarino e sua evolução no tempo e no espaço e, por outro, dá um vivo testemunho da cidade da Horta ao longo das épocas, ele que durante cinco anos foi empregado da Western Union Telegraph Company, tendo vivido (ainda que numa fase posterior) esses acontecimentos por dentro e, por conseguinte, sabe do que fala.

Avisadamente este autor parte do geral para o particular, isto é, a abordagem do livro começa por ser feita de fora para dentro: primeiro são-nos narrados acontecimentos ligados às comunicações a nível mundial (havendo a preocupação de, nesta matéria, se definir processos, perspectivas, políticas e estratégias), e só depois o autor se detém nas implicações de tais eventos no contexto da cidade da Horta.

Deste modo, Carlos Ramos da Silveira, após lançar olhares aos tempos anteriores à telegrafia eléctrica, fazendo incursões retroactivas às atalaias, vigias, fachos, semáforos, faróis e postos meteorológicos do Faial (e outras ilhas), entra na "matéria": e fala-nos de um tempo único e irrepetível, de gente de grande riqueza humana e técnica, de estruturas físicas que nos foram legadas e que constituem hoje valioso património arquitectónico. Ou seja, o autor capta a geografia humana, geográfica e afectiva da cidade da Horta a viver os resquícios de uma prosperidade económica iniciada em meados do século XIX, pela família Dabney, com as riquezas que provinham da laranja, do vinho, da baleia e do carvão. Possuindo um comércio marítimo intenso e uma impressionante animação, a cidade era então porto de escalas obrigatório, local de reabastecimento de frotas e de repouso da marinhagem. As suas ruas fervilhavam de gente de todas as nacionalidades e raças e o seu porto acolhia navios de todos pavilhões, o que levou Pedro da Silveira a escrever os conhecidos versos do poema Horta: quase réquiem:

            "E isto era o rosto ancorado da civilização!
             Era a mais alegre, a maior cidade pequena do mundo".

É desta Horta "carvoeira, telegráfica e inglesada, convertida num nó de comunicações mundiais" (assim a viu e descreveu Vitorino Nemésio em Corsário das Ilhas); é desta Horta cosmopolitizada por estrangeiros que, juntamente com faialenses, asseguravam o funcionamento do Cabo Submarino; é desse convívio, dessa mundividência e desse estilo de vida que nos fala o autor deste livro.

Da cidade da Horta capta Carlos Ramos da Silveira o "espírito do lugar" e lança olhares a acontecimentos que, no seu pacato viver, foram surgindo paralelamente com o evoluir das "companhias": o aparecimento da luz eléctrica, da água canalizada e do cinema, o surto da peste bubónica (1), a memória da baleação, a lembrança de antigos navios e outras embarcações, a telegrafia sem fios, a recordação dos primeiros aviões e "zeppelins" sobrevoando a Horta (está, no livro, a primeira imagem fotográfica aérea da Horta colhida precisamente a bordo de um Zeppelin), a oportunidade que constituiu a visita de D. Carlos ao Faial, o trabalho pioneiro dos radioamadores, etc.

Num outro registo, há as "estórias do cabo e crónicas do sorriso", de grande poder evocativo e apetecível frescura narrativa. (Em Carlos Ramos da Silveira coexistem o historiador, o cronista e o escritor).

O livro fecha com a apresentação de importantes documentos, sendo que dois são merecedores de especial destaque: o projecto de construção do Farol dos Capelinhos (que data de 1894) e um relatório dos prejuízos causados pelo Vulcão dos Capelinhos, documentos esses (até agora inéditos entre nós) que foram recolhidos pelo autor do livro em análise no Arquivo da Direcção dos Faróis.

Escrito com clareza e elegância expositiva, O Cabo Submarino e outras crónicas faialenses passa a constituir uma referência e um marco incontornável no âmbito da pesquisa histórica faialense e açoriana. E a merecer, por isso mesmo, a nossa melhor atenção.


Horta, 8 de Outubro de 2002

Victor Rui Dores


(1) Interrogo-me se não será desse tempo o (estranho e curioso) aforismo micaelense: "Da Terceira e do Faial não nos vem senão mal". E isto porque, devido à peste, Ponta Delgada mantinha a sua intransigência relativamente às medidas cautelares (a famigerada "quarentena") contra possíveis contágios, fechando o seu porto às embarcações que viessem das (outras) ilhas…