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Por Ferreira Moreno
Nas ilhas, hoje em dia, quando alguém suspira por uns
chicharrinhos, vê-se obrigado a correr p'ras lojas onde
eles estão à venda...ao quilo e por preços
exorbitantes! Mas antigamente, ou seja, há meio século
atrás, lembro-me que o chicharro era vendido ao cento ou
à dúzia, muito baratinho, e eram os vendilhões
quem, calcorreando as ruas da freguesia, a passo bamboleante,
traziam-nos até à porta peixe fresquinho adentro
duns cestos suspensos nas extremidades dum pau.
O mar
pediu a Deus peixes,
Os peixes a Deus altura,
Os homens a liberdade,
As mulheres a formosura. |
Se fores ao mar
pescar,
Pesca ao nascer da Lua,
S'eu cair na tua rede,
Pesca-me, que serei tua. |
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De há muito que, pelos caminhos, não se avista
a presença do nosso tão típico vendilhão
de peixe. E agora em retrospectiva, especialmente após
a minha recente passagem p'las ilhas, cheguei à conclusão
que os vendilhões do meu tempo eram verdadeiros artistas.
P'ra tal bastará recordar, ainda que ligeiramente, as cenas
que tantas vezes testemunhei ao vê-los vendendo peixe lá
na minha rua.
Francamente, aquilo era mesmo uma arte " sui generis"
e deveras inconfundível, frequentemente vivida com carradas
de emoção e por vezes acompanhada de grande alarido!
Se fores ao mar pescar,
Deita a rede com jeitinho;
Pesca lá bem p'ró fundo,
Qu'eu serei o teu peixinho. |
Não quero nada do mundo,
O mundo não tem que dar;
O mundo dá tanta volta,
Como peixinho no mar. |
O saudoso Dr. Luís Bernardo Leite de Ataíde (
1883-1955), no terceiro volume da série.
" Etnografia, Arte & Vida Antiga dos Açores",
legou-nos uma curiosa entrevista com o tio Braboleta,
" um vendilhão assim chamado por haver levado a vida
a voar por toda a ilha." Foi ele quem, no seu sotaque característico,
explicou o segredo e técnica do negócio na venda
do peixe, e que ora passo a narrar de forma abreviada.
O tio Braboleta tinha por hábito fazer-se mouco sempre
que ouvia alguém gritar põe ele (Ó
do peixe!), e lá continuava a apregoar EIPXEFRÊ
( Ei peixe fresco), abrandando o passo e arrodeando p'ra traz
apenas quando o chamavam p'la segunda ou terceira vez. Fazia isto
com a intenção de instilar temor nos fregueses de
ficarem sem peixe, uma vez que só um atoleimado vai ás
primeiras. " Nesta coisa de mercar e vender não há
nada pior do que dar logo o beiço à sujeição."
De seguida, e inevitavelmente, tinha início a altercação
entre a freguesa procurando
(com muita artimanha e subtileza feminina) apanhar o peixe a um
preço mais barato, e o vendilhão que se vai aguentando
manhosamente, " mas também nada de apertar muito co'a
imbroxa, porque quim muito aperta pouco arrocha."
E era assim, uma p'ra cá e duas para lá, que o
nosso vendilhão ia tenteando a linha com jeito p'ró
peixe aferrar bem...
No caso da freguesa ser daquelas mais teimosas, o vendilhão
recorria a novo subterfúgio largando p'lo caminho e gritando
com toda a força EICHÓRROFRÊ (Ei chicharro
fresco), até ouvir a freguesa a chamá-lo novamente:
"Ó do peixe!"
Frente a frente, era então o diabo que ficava á
solta quando a freguesa, de beiço arrebitado e mão
na ilharga, atrevia-se a queixar-se ao vendilhão acusando-o
que o peixe estava mole...
Foi numa situação desta natureza que o tio Braboleta
reagiu da seguinte maneira:
" Inda o outro dia tomei braveza e disse: Ó corisca,
a modos que não tens olhos na lapareira dessa cara. E metende-lhe
um chicharro p'los narizes adentre, arrematei: Ême intances
este raio nã stá aqui tezo c'ma'um virote apanhado
há um instintinho? Mole stás tu mas é desses
miolos e nã és tu nim outra co'os teus beiços
que há de fazer mangaçã cá comigo!"
No entanto, esquecia a confrontação, o vendilhão
entrava a contar os chicharros passando-os do cesto p'ra tigela
da freguesa, e " aos despois" prosseguia na sua caminhada
a resmungar, " Isse é que fou memo uma conciença!
Pous a levá!"
Se o mar se tornasse em tinta
E os peixes em escrivães,
Não dava p'ra escrever
A maldade que tu tens.
O pescador cheira a peixe,
O serrador a madeira;
Cada qual no seu ofício,
É raro botar asneira.
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Ó minha caninha verde,
Ó minha sanjoaneira!
O peixinho vai vendido,
O ganho vai na algibeira.
Ó minha caninha verde,
Ó meu ramo de flores;
Minha Senhora d'Ajuda
Ajudai os pescadores.
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