Bonecas de Trapos e Registos do Santo Cristo


Por Ferreira Moreno

Já me servi da oportunidade p'ra recordar, ainda que ligeiramente, uma curiosa faceta do nosso artesanato de há um século atrás, fazendo parte do chamado comércio rural e caseiro, e que consistia basicamente no trabalho, arte e engenho de mulheres do campo, produzindo bonecas de trapos, de cujas vendas angariavam algum rendimento p'ró sustento das suas famílias. Regra geral, as vendas tinham lugar na praça pública, - daí a popular alcunha de bonecas da praça.

Quando abalei p'rá Califorlândia nos anos 50, esta modalidade (tão querida da nossa gente) encontrava-se em declínio, devido ao largo comércio que se ia alastrando com um novo tipo de bonecas "vindas de fora da ilha" através da importação.

No entanto, a tradição secular mantinha-se ainda nos meios rurais, onde as tais bonecas de trapos eram muito estimadas e sempre moldadas e vestidas à semelhança das antigas bonecas da praça. Mas aparentemente esta tarefa restringia-se quer às avós, que faziam e alindavam essas bonecas p'rás netas, quer às mães, que as armavam e as retocavam p'rás filhas.

Porém, nos anos 60, julgo ter havido um ressurgimento na confecção das tradicionais bonecas de trapos, conforme este testemunho do saudoso "Mestre" Carreiro da Costa: "Ultimamente, nos escaparates das casas de artigos regionais, voltam a aparecer bonecas de trapos, mas não já com aquela ingenuidade e aquele ar caricatural de outrora, porque todas agora se confeccionam segundo acentuadas preocupações artísticas e folclóricas, procurando reproduzir através de felizes estilizações os mais diversos trajes populares, como mulheres de capote-e-capelo, de xaile-e-lenço; como pastores com carapuço, tocadores de viola, vendedores de leite, etc." (Tradições, Costumes & Turismo, Maio 1967).

Creio significativo e inteiramente justificado recordar agora uma outra curiosa manifestação da arte rústica micaelense, muito comum e usada nos meus tempos juvenis. Refiro-me evidentemente aos chamados REGISTOS do Senhor Santo Cristo, feitos num quadro covo e com vidro, dentro do qual se vê, ao centro, a reprodução da gravura da imagem milagrosa assente num pequeno altar baldaquinado, tendo a acompanhá-la a figura ajoelhada da Madre Tereza da Anunciada.

Vê-se igualmente uma profusão de flores e outros detalhes, que seria longo enumerar. Mas p'ra quem estiver deveras interessado, aconselho a leitura do primeiro volume "Etnografia, Arte & Vida Antiga dos Açores" do Dr. Luís Bernardo Leite de Ataíde (1883-1955), informando-nos também que a gravura da imagem (no registo) foi feita pelo gravador G. F. de Queiroz em 1827, a pedido do Dr. José Vicente Ferreira Cardoso da Costa e sua esposa D. Helena Victória Machado de Faria e Maia.

E a provar a intensa devoção pelo Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Dr. Luís Bernardo acrescenta que "o povo micaelense, mesmo quando emigra, lançando-se na vida tumultuosa e agitada das grandes cidades americanas, não esquece o Santo Cristo, fazendo-se acompanhar do respectivo registo."

Quero, agora e aqui, revelar uma curiosidade que há longos anos me persegue. Trata-se do exemplar dum destes antigos registos patente em exposição no Museu da histórica Missão de Carmel, nas imediações de Monterey desta minha amada Califorlândia.

Confesso abertamente que de há muito ando a investigar a origem deste registo, mas sem sucesso. Por isso, é com a maior modéstia da minha parte que ora deixo à vossa consideração a seguinte série de informações...

Cristiano Leonardo Machado, filho legítimo de Manuel Leonardo Machado e de Antónia Cândida, nasceu aos 14 de Julho de 1838 na paróquia de S. Sebastião (Matriz) de Ponta Delgada, S. Miguel dos Açores, tendo embarcado p'rós Estados Unidos a bordo do "ER Sawyer", juntamente com o irmão António Leonardo Machado, (Nascido aos 6 de Fevereiro de 1883), desembarcando em Boston aos 29 d'Agosto de 1855.

Não encontrei ainda a data exacta da chegada dos dois irmãos à Califorlândia, mas em 1867 já eles estavam envolvidos na pesca local da baleia, juntamente com baleeiros portugueses, (na sua maioria açorianos), estacionados na "Carmelo Whaling Company", situada em Point Lobos (Carmelo Cove), a pouca distância da Missão de Carmel. Esta companhia baleeira funcionou de 1862 a 1879, enquanto a de Monterey alongou-se até ao ano de 1900.

Entrementes, o nosso Cristiano havia regressado a S. Miguel a fim de consorciar-se com Maria José Sousa de Ramos; o casamento realizou-se aos 12 de Julho de 1865 na igreja paroquial de S. Pedro de Ponta Delgada em S. Miguel. De volta a Carmel, e através dos anos de vida conjugal, o casal foi abençoado com o nascimento de 14 crianças, das quais 10 atingiram a maioridade, (seis raparigas e quatro rapazes).

Possivelmente em 1877 Cristiano Leonardo Machado abandonou a faina de baleeiro, trocando-a pela agricultura em Carmel, arrendando uma propriedade com nove alqueires de terra junto à Missão, e trabalhando como caretaker (sacristão?) na mesma Missão, vindo a falecer aos 28 de Junho de 1924, contando 86 anos d'idade e 24 netos!

Outros pormenores, colhidos em longas horas de consulta em diversas bibliotecas, indicam que o nosso Cristiano não só cultivou os terrenos a seu cuidado, mas também demonstrou um extraordinário interesse pela Missa em ruínas, e por cuja reconstrução muito se empenhou e dedicou o melhor do seu tempo e talento. Foi ele igualmente o mais directo responsável pelo estabelecimento da primeira escola no Vale de Carmel.

Agora, a fechar, lanço no ar a pergunta: - Teria sido o casal Cristiano e Maria Machado quem ofereceu à Missão de Carmel o Registo do Santo Cristo?!

À sua memória dedico este soneto do meu conterrâneo Dr. Oliveira San-Bento:

Registos do Senhor! Quantos carinhos
A piedade neles derramou!
De saudade o tempo os desbotou,
Mas assim me comovem mais velhinhos.

Latões e canutilhos, pobrezinhos,
São brilho humilde que os iluminou
E muita flor de pena os exornou,
Numa carícia maternal de ninhos!

Legenda de Ecce Homo, e quanto amor
Na Madre de joelhos, no Senhor,
E até velinhas ideais do altar!

Oh, meu registo antigo! Noite fria,
O vento a uivar, o mar na penedia...
E a longa voz de meus avós a orar!