Lembranças de Cadeiras


Por: Ferreira Moreno

Toda a gente sabe muitíssimo bem o que é uma cadeira, e certamente não terá dificuldade alguma em reconhecer a sua função específica. Por conseguinte, longe de mim a pretensão de enveredar por um faustoso ensaio pedagógico acerca da antiguidade e simbologia da cadeira. Tenciono simplesmente fazer correr a tinta, e trazer à lembrança algumas curiosidades relacionadas com a cadeira, em número suficiente p’ra preencher esta crónica.
Recordo-me, por exemplo, da visível atrapalhação duma antiga vizinha minha nas ilhas, quando lhe disseram que o filho do senhor morgado, que andava a estudar numa Universidade continental, não vinha p’ra férias por ter perdido umas cadeiras.
A santa mulherzinha, evidentemente, ignorava que a esse tempo aplicava-se o termo “cadeira”a determinados cursos de ensino superior...
Tenho ainda uma estória mais picaresca, ocorrida já na Califorlândia. Trata-se dum casal, cuja esposa adorava usar na cozinha os mais modernos acessórios eléctricos que, em inglês agrupam-se sob o nome genérico de “appliances”. P’ra satisfazer a consorte, o marido ia-lhe comprando “electric knives”(facas de trinchar), “can openers” (abre-latas), “blenders & mixers”(batedeiras & misturadeiras), até que um dia, finalmente ofereceu-lhe uma cadeira eléctrica!
Por dever de consciência, p’ra acalmar algum leitor desprevenido, cumpre-me informar que o episódio, acima narrado, é puramente anedótico. Portanto, nada de desmaios!
Diz-nos o Dicionário da Língua portuguesa que “cadeiras”aplicam-se vulgarmente aos quadris e ancas, talvez por isso, na gíria popular, emprega-se a expressão “queixar-se das cadeiras”, quando estamos muito cansados. Usa-se igualmente a expressão “ter um cadeirame”, quando se vê uma mulher com respeitosas ancas largas.
Em pé de igualdade (salvo seja!) com as cadeiras, existiram antigamente, sobretudo nos quartos de pessoas idosas ou doentes, umas cadeiras perfuradas que, além de se revestirem de certa curiosidade, eram duma indefectível utilidade em caso de necessidade.
Aqui à volta recebem o nome de “comodes”, ou seja, latrinas ou sanitárias em português.
Tais cadeiras, algumas delas pesadas, de braços, com suas tampas e portinholas (p’ra ocultar o que se colocava lá dentro), não constituem motivo de escárnio ou escândalo pelo facto de guardarem bacias ou penicos. Devemos apelar sobremaneira p’ró bom senso de todos nós, visto que essas cadeiras podem servir de remédio e alívio em situações de emergência e aflição, de que ninguém está livre.
Aparentemente, deste tipo de cadeiras surgiu a curiosa expressão “ir à cadeira”, equivalente àquela outra expressão “ir lá fora”, comummente usadas nas ilhas.
Havia quem possuía, também, uma cadeira de baloiço ou balanço, que ia pelo nome de “embaladeira”, e que inglês vai pelo nome de “rocking-chair”, ou simplesmente “rocker”
Carreiro da Costa, na série “Tradicões, Costumes & Turismo” ( Outubro 1969), registrou a existência daquelas “pequenas e graciosas cadeiras-de- costura, anãs e convidativas, com sua gaveta sob o assento, e ainda as cadeiras e pequenos sofás de vimes descascados e depois envernizados ou pintados de cores claras.”
Foi igualmente Carreiro da Costa que nos informou acerca dum velho balho popular micaelense “A Fôfa”, cujo estribilho consistia na seguinte quadra de paródia aos marienses:
“Cadeiras quebradas / Quem as quebraria? Fomos os cagarros / De Santa Maria.”
Desconhece-se o motivo de tal alusão. Por seu turno, o Tenente Francisco José Dias (1907 – 1980), no seu precioso livro “Cantigas do Povo dos Açores”, refere-se a este balho antigo usando a quadra: “Quem quiser balhar a fôfa / Olhe bem como balha / Que u’a mulher da Terceira / Foi balhar, caiu-lhe a saia.”
No 3º volume do “Cancioneiro Geral dos Açores”, Cortes Rodrigues incluiu uma variante da mesma; “Quem quiser balhar a Fôfa / Veja lá como a balha / Que uma moça da Terceira / Foi balhar, caiu-lhe a saia.”
Seria remisso, da minha parte, olvidar a expressão latina “ex cathedra”(do alto da cadeira), dogmaticamente referente ao Papa quando define um ponto de doutrina, mas ironicamente empregada a propósito de qualquer pessoa de paleio extravagante e presunção de infalibilidade nos seus conceitos.
E a respeito de cadeiras, confesso que muito ficou por dizer. Mas como acima prometi, foi minha intenção proceder tão somente à recolha dalgumas curiosidades a fim de rabiscar esta crónica de lembranças, a que adjunto um par de quadras de Moreira das Neves:

Debaixo do figueiral
Pôs-se a saudade a bordar,
Gastou agulha e dedal
Sem a tarefa acabar.
Toda a Saudade-Menina
Vai crescendo, até ficar
Como avó que nos ensina
Contos de fadas, ao luar.