Lembranças de Cães e Cachorros


Por: Ferreira Moreno

No seu livro “Capitães dos Donatários”, Francisco de Athayde Machado de Faria e Maia (1876-1959) informa-nos que o Infante D. Henrique (1394-1460) havia enviado p’ra S. Miguel “caravelas prenhes de toda a sorte de animais”, que os navegadores foram distribuídos ao longo da ilha deserta.
Entre as diversas espécies de animais contavam-se porcos, bodes, cabras, carneiros, gado vacum, cavalos, éguas, jumento, coelhos, galinhas e pombos. É provável que nessa lista estivessem incluídos outros animais domésticos, de que não temos notícia presentemente, mas que certamente terão vindo quando se deu início ao povoamento humano.
Seria este o caso, por exemplo, dos cães e cachorros. De facto, a presença canina (salvo seja!) está devidamente confirmada nas páginas do Livro Quarto das “Saudades da Terra” de Gaspar Frutoso (1552 – 1591).
Folheando a edição de 1998, (a mais recente, luxuosa e dispendiosa), lê-se que havia tanta abundância de carne de vaca que os povoadores “a deitavam aos cães.” (Pág. 231).
Na página seguinte, Frutoso afirma que os cães usados na caça e recolha das pardelas, “eram destros neste ofício”, acrescentando que “cada cão trazia seu chocalho, para que os caçadores de noite fossem tomar a caça onde os ouvissem.” P’ra apanhar coelhos, os caçadores empregavam cães mais o furão. (Pág. 238).
Na página 248 temos a discrição minuciosa e pitoresca do energético Baltasar Vaz (morador no Telhal da Ribeira Grande) que, acompanhado dum cão de fila e um cachorro de rodeio e outros cães, “enfiou-se”p’la Lagoa Azul da Sete Cidades, e lá “tirou vingança”afogando o touro bravo que, semanas antes, o tinha mimoseado com umas valentes marradas.
Diz-nos a Bíblia (Juízes 15:15) que Sansão matou mil filisteus com a queixada dum jumento. Por seu turno, diz-nos Frutoso (Pág. 250) que um Baltasar Roriz de Sousa, morador em Santa Clara, vendo dois homens a gladiarem-se numa rua de Ponta Delgada, “arremeteu a um cão tomando-o por uma perna, esgrimindo com ele entre os que pelejavam, os apartou logo com esta arma.”
Temos ainda o caso de Rui Gonçalves da Câmara, terceiro capitão do donatário (1474-97), que “dava a volta”à ilha com frequência, indo sozinho no seu cavalo “e com um cão grande detrás de si, chamado Temido.” (Pág. 270) Este capitão tinha comprado a João Soares d’Albergaria a capitania de S. Miguel “por dois mil cruzados e quatro mil arroubas d’açúcar.”
O inglês Joseph Bullar, que visitou os Açores juntamente com o irmão Henry, (Dezembro 1838 – Abril 1839), deixou-nos esta informação: “Abundam em todas estas ilhas uma raça de cachorros que ladram constantemente, reunindo todas as más qualidades físicas e morais da família canina. Surgem de todas as casas e ladram, que às canelas de quem passa, quer às pernas dos burros.” (Um Inverno dos Açores & Um Verão no Vale das Furnas, Página 288, Terceira Edição, Ano 2001).
Diz o nosso povo “É S. Roque e o cão”, quando duas pessoas andam sempre juntas. Na ilha de S. Jorge usa-se a expressão “São como os cães do Manuel Afonso, um atrás, outro adiante”, sempre que vão separadas na rua duas pessoas que deviam ir juntas.
Eis umas ligeiras amostras duma curiosa lista de provérbios e adágios...
Com um pedaço de toucinho leva-se longe um cão; na boca do cão não busques o pão, nem do focinho da cadela e a manteiga; Guarda-te do frade e do cão que não sai da grade; Enquanto disputam os cães, come o lobo a ovelha; em manqueira de cão e lágrima de mulher não há que querer; Não são as pulgas dos cães que fazem miar os gatos; Nariz de cão e cu de gente nunca está quente; O cão fraco acode as moscas e a cão mordido todos os mordem.
A outro cão outro osso; A quem não sobeja pão não crie caso; À sombra do burro entra o cão no moinho; Cão de moleiro não come nem deixa comer; Bom cão de caça até a morte dá ao rabo; O cão no osso e a cadela no lombo; O cão e o gato comem o mal guardado; O cão e o gato são de que lhes faz o mimo; Cão que ladra, cão que me guarda; Homem que não fala e cão que não ladra é livrar deles; Quem tem medo compra cão, Quem não tem cão caça com gato; Se chegasse ao céu oração de cão choveriam ossos.
Guarda-te do cão que manqueja; melhor é fazer agastar um cão que uma velha; Não acordes o cão quando ele está dormindo; O cão velho, ladra, dá conselho; Quem com cães se deita, com pulgas se levanta; Segredo em boca de mulher é manteiga em focinho de cão.
Finalmente: Porque entra o cão na igreja? Por estar a porta aberta!

De passar na tua rua
Não me tenho arrependido;
Muitos cães me têm ladrado,
Nenhum cão me tem mordido.

Pelos atalhos da vinha
Não há senão vinhateiros,
Com as orelhas caídas,
Parecem cães sorrateiros.