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Por: Ferreira Moreno
No jornal angrense “A União”
(24/Julho/04), a Sandra Garcia Bessa escreveu, e muito bem, acerca
de “as chaves e o poder.” Movido apenas por curiosidade,
decidi embrenhar-me pelas páginas da história, da
etnografia e do folclore, à procura de materiais p’ra
esta crónica a respeito de chaves.
Quando se trata de chaves, regra geral estamos a falar das chaves
de porte acessível, que se podem trazer no bolso. No entanto,
aqui e agora quero recordar as velhas quintas muradas e os seus
monumentais portões, cujas fechaduras reclamavam o uso
de chaves enormes.
Ainda me lembro daquelas casas antigas em cujas portas, quer interiores
que exteriores, as fechaduras intimidavam-nos com a sua robustez.
Acerca dessas “relíquias”dum passado já
distante, Carreiro da Costa deixou-nos alguns apontamentos na
série “Tradições, Costumes & Turismo”
em Julho de 1968, e que ora me apraz transcrever:
“Chaves, machas, pesadonas como tranquetas; chaves fêmeas,
com suas longas ranhaduras; chaves de ferro moldadas nas bigornas
dos nossos ferreiros; chaves barulhentas no bater dos molhos em
que se agrupavam e no rodar das fechaduras em que se introduziam.
Chaves de quintas e de casas, de cómodas e de escrivaninhas,
de cofres e de dispensas, de lojas e de adegas, e também
de relógios. Cómodas ode as senhoras guardavam o
mais íntimo dos seus haveres e dos seus segredos. Escrivaninhas
onde cavalheiros conservavam a sua correspondência. Dispensas
onde as donas de casa acautelavam frutas e compotas, enchidos
e salgados. Cofres onde os senhores proprietários arrumavam
os documentos e escrituras das suas propriedades, juntamente com
os produtos das suas rendas. Lojas e adegas onde se arrecadavam
os cereais, os legumes e os vinhos.”
Carreiro da Costa legou-nos, igualmente, um curioso rol de expressões
populares. Temos assim aquela da “Senhora de chaves”,
indicando quem muito possui e orgulhosamente exibe as chaves do
que lhe pertence. “Fechar a sete chaves”, ou seja,
guardar qualquer coisa com todas as cautelas. “Fechar com
chave de oiro”. Isto é, acabar com qualquer tarefa
o melhor possível. Com sentido histórico, remontamos
aos velhos burgos acastelados, ficou-nos a expressão “chaves
da cidade”ou “chaves da vila.”
Numa localidade açoriana, cujo nome não revelo,
existiu em tempos uma expressão bastante curiosa. Refiro-me
ao “Perder as chaves”, quando alguém andava
com diarreia. Algures no Continente, a chave esteve intercalada
numa prática supersticiosa. Trata-se do caso em que se
pretende saber se alguém chega ou não a casar. P
‘ra tal, cobrem-se os olhos dessa pessoa, e colocam-se numa
mesa uma chave, um livro e um rosário. Se a pessoa (de
olhos vendados) toca na chave, casará; se for no livro,
não casará; e se tocar no rosário, irá
p’ró convento.
Visto que a chave tem o condão de abrir e fechar, o nosso
cancioneiro transformou magicamente a chave num símbolo
amoroso, com acesso ao cofre de segredos que é o coração:
Aqui tens meu coração
E a chave p’ra abrir:
Não tenho mais que te dar,
Nem tu que me pedir.
Aqui tens meu coração
E uma chave dolorosa;
Vai abrindo, que verás
Um lindo botão de rosa.
Aqui tens meu coração
E a chave p’ra o abrir,
E o laço p’ra o prender
Se te algum dia fugir.
Aqui te entrego as chaves
P’ra abrir este meu peito:
Vai abrindo, que verás
Um tão lindo amor-perfeito.
Cupido te deu a chave
Com que abriste o meu peito,
Prendeste o meu coração
C’um ramo de amor-perfeito.
Dá-me as chaves do teu peito,
Qu’eu nele quero entrar,
Quero ver se tu já tens
Outro amor em meu lugar.
Só tu, meu amor, só tu,
Só tu tens a liberdade,
D’entrares neste meu peito,
Sem fechadura nem chave.
Eu fui ao teu coração,
Bem pudera lá não ir;
A chave deu uma volta,
De lá não pude sair.
Eu pintei o teu retrato,
E fechei-o no meu peito;
Agora não quer sair,
Nem com chave, nem com jeito.
Abre este meu coração
C’uma chavinha ou duas;
Dentro dele has-de encontrar
Coisinhas minhas e tuas.
Abre-me lá esta porta,
Tira as chaves d’algibeira
Qu’eu já estou molhado
Das pingas da tua beira.
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