Lembranças De Chicharrinhos


Por Ferreira Moreno

É certo que não se ouve agora, como era habitual nos meus tempos de vivência nas ilhas, aquele típico pregão " Ei chicharro fresco" dos populares vendilhões, com os cestos carregadinhos de chicharros " vivos", a que se seguia um tal abrir de portas e cancelas, com gente " armada " de pratos, tigelas e alguidares, comprando chicharrinhos " um cento" por uma "pataca."

Depois de devidamente " governados" (limpos), vinham eles p'rá mesa magicamente transformados em fritos ou assados, em açordas ou caldeiradas. Tinham um sabor especial aqueles chicharrinhos assados na brasa, na grelha ou na sertã, e que se comiam não com garfos, mas sim à ponta dos dedos. Era em regalo vê-los quentes e fofos,
" baptizado" com molho verde ou molho de vilão.

Inesquecíveis sobremaneira os chicharrinhos fritos, sequinhos e torradinhos, a quebrarem-se na boca, acompanhados de batata cozida e por vezes " disfarçados" em vinha d'alhos. Inesquecíveis igualmente as caldeiradas feitas à base do chicharrinho miúdo, com rodelas de cebola e batata, tomate e bagos de uva verde.

Tínhamos ainda aquelas açordas., cheirosas e gostosas, com o amarelo da açafroa, com cebola e salsa, servidas em tigelas ou pratos fundos, de mistura com sopas e batatas, e que a gente entrava a "atacar" com a colher, mas acabava sempre com os dedos a " pescar" os lombinhos dos chicharros limpos de espinhas.

Apraz-me confessar, nestes Repiques da Saudade, que um pouco de tudo isto me foi possível saborear na minha recente passagem por S. Miguel, onde fui assistir às Cavalhadas de S. Pedro e às festas comemorativas dos 21 anos de CIDADE da "minha" Ribeira Grande!
E é com a mais profunda gratidão que, neste momento e desta longínqua Califorlândia, quero saudar o grupo de amigos que, tão generosamente, se prontificou a satisfazer esta minha insaciável predilecção por chicharrinhos...mas sem pimenta, claro!

Eu fui à Ribeira Grande
Botar chicharros de molho;
Vi raparigas à janela
E rapazes fechando o olho.
Quem vai ao mar sempre apanha
Ou lapas ou chicharrinhos;
Quem namora sempre alcança
Ou abraços ou beijinhos.
 

Moro à beira do mar
Sou filho dum pescador;
Tiro peixinhos à cana
P'ra dar ao meu amor.
Pescar por pescar,
Nunca no mar pesquei;
Pescaram os meus olhos
Quando eu p'ra ti olhei.
 

Como acima anunciei, o vendilhão ambulante dos meus tempos de "menino e moço" já desapareceu, presentemente, do quotidiano cenário das nossas ilhas. Da minha imaginação, porém, não há desaparecido ainda figura característica desses vendilhões que, descalços e pobremente vestidos, percorriam as ruas dos nossos povoados, transportando aos ombros um carregamento de peixe... carregamento esse que era distribuído em dois cestos elípticos suspensos nas extremidades dum pau.

O pau (cerca dum metro e tal de comprimento) não dispunha de qualquer almofada
(chinguiço), mas tinha uma forma curvada p'ra melhor " assentar" ao ombro, e apresentava dois ou quatro toros de madeira, nas pontas do pau, sustentando os cestos pelas asas.

Trago ainda gravada na minha memória aquela típica cena do vendilhão com um dos braços apoiando-se no cesto da frente, ou então com ambos os braços estendidos p'ra um e outro cesto, quando levava o pau dependurado atrás do pescoço e firmado nos dois ombros.

E agora, à distância, esta cena recorta-se na minha fantasia como se tal fosse e seja a própria imagem de Cristo com a Cruz às costas!

Arrostando vento e chuva, sol e frio, calcorreando ruas e caminhos, sob o peso oscilante dos cestos carregados de peixe, lá seguia o vendilhão naquele passo miúdo e picado, de cabeça tombada pela canseira, beiços ressequidos e rosto talhado pela miséria duma existência torturada.

Um autêntico Calvário, que o vendilhão perfazia "à conta de Deus" e de permeio com o ranger dos bamboleantes cestos de vimes, procurando equilibrar aquele balancé estonteante, muitas vezes espicaçado pela fome que o mordia sem aparente lenitivo!

Fui ao mar pescar de cana,
Apanhei uma garoupa.
Esta é pr'ó meu prato,
Não sei se pescarei outra.
Menina, que sabeis ler,
Também sabereis contar;
Dizei-me por algarismos
Quantos peixes têm o mar.
 

Já pesquei ao linguado,
Já pesquei ao camarão,
Só não pesquei os teus olhos
E estavas mais de feição.
O mar, quer bravo quer manso,
Deita chicharros na poça;
P'ra amar e querer bem,
É bom ter jeito e não força.
 

Se fores ao mar pescar,
Que a fortuna te não deixe;
Fazes-te tolo de todo:
Quanto mais tolo, mais peixe.
Eu fui ao fundo do mar
Buscar pimenta moída,
Pr'a dá-la às chocalheiras
Que falam da minha vida.