(Toronto, Agosto 2003)
Por Adiaspora.com
Nunca de tal houve lembrança. Talvez só
nos anais dos nossos pioneiros. As luzes apagaram-se na Dundas
e Ossington, o quarteirão mais antigo e afamado na história
da imigração portuguesa nesta metrópole.
Por volta das 16.15 da tarde de Quinta-feira, estávamos
a bater diligentemente mais uns textos para a nossa Adiaspora.com,
quando as letras misteriosamente desapareceram do ecrã
do nosso computador. Algum fenómeno poltergeist? Não,
as luzes tinham-se apagado por toda esta imensa cidade de Toronto.
Saímos à rua em busca de respostas. Dobrámos
a esquina e dirigimo-nos à Caldense Bakery, um dos mais
conhecidos e populares estabelecimentos onde toda a nossa malta
se congrega para tomar uma bica e dar dois dedos de conversa,
e eis a escuridão e da bica nem cheirinho!
O rádio do automóvel balbuciava notícias
vagas sobre a uma falha de energia maciça atingindo toda
a Província do Ontário e partes dos EUA. O povo
saiu a rua, a consternação e surpresa estampados
em seus rostos acalorados, pois o calor da época estival
por estas paragens é deveras impiedoso, e esse dia não
foi excepção.
Ao longo de toda a tarde os transeuntes que pela nossa esquina
passavam iam nos dando notícias frescas. Logo se soube
que a falha atingira o enclave à volta do Lago Erie, afectando
nos EUA o enorme e populado estado de Nova Iorque, e os estados
de Ohio, Pensilvânia, entre outros. O Canadá a norte
viu a sua capital Otáva, e as cidades de Toronto, Mississauga,
Brampton, Hamilton e a região de Waterloo sem qualquer
energia eléctrica.
Logo nos lembrámos das pessoas que se
encontravam nos meios de transporte subterrâneos, nos comboios
e nos elevadores que abundam e permitem o funcionamento dos arranha-céus
que distinguem a linha do horizonte da América do Norte;
e dos idosos e os doentes cujas vidas dependem de sobremaneira
da energia eléctrica nos muitos aparelhos médicos
que lhes sustentam a vida.
A noite escura assim caiu sobre a cidade de Toronto.
Nos cruzamentos de mais intenso trânsito, saíam
cidadãos dos seus automóveis para se transformarem
em sinaleiros. Nos túneis do metro urbano, a tranquilidade,
a calma e o civismo logrou trazer os passageiros à superfície,
enquanto os táxis da cidade se apressavam às estações
para transportar muitos a quem não lhes restava outro meio
de transporte. Muitos socorrerem-se das suas bicicletas, um meio
de transporte cada vez mais popular nos hábitos das gentes
torontinas. Os eléctricos vermelhos da TTC (empresa de
transportes públicos de Toronto) foram abandonados nas
ruas pelos seus condutores como naus náufragas num mar
tempestuoso.
Os amigos que traziam nos bolsos alguns trocos os partilhavam
com aqueles que não chegaram às caixas Multibanco
a tempo, pois como é do conhecimento geral os cartões
Multibanco e de crédito têm vindo gradativamente
a substituir o dinheiro vivo no quotidiano das populações
norte americanas.
Algumas redes telefónicas móveis continuaram a
funcionar no escuro que entretanto abraçava as ruas, enquanto
outras remeteram-se ao silêncio. Formavam-se longíssimas
filas nas cabines telefónicas públicas com gentes
ansiosas de comunicar com os seus familiares.
Ficámos pela esquina de Dundas e Ossington, observando
as figuras fantasmagóricas que emergiam da escuridão
ao serem alumiadas pelos faróis dos automóveis que
iam passando pelo cruzamento. Ouvíamos o burburinho de
vozes bem portuguesas a comentar que nunca antes viram semelhante
coisa.
Com o decorrer das horas, encerraram-se as portas das padarias,
e os nossos compatriotas mais noctívagos não tiveram
outro remédio se não aglomerarem-se à luz
da vela num barzinho chinês que nunca até ali conhecera
tamanha freguesia portuguesa.
O negrume intenso das ruas salpicadas pelos raios fulgurantes
dos faróis mais parecia o pano de fundo de um sinistro
quadro de algum pintor surrealista mais obscuro.
Sexta-feira amanheceu... e nada.
Para a grande maioria dos habitantes da cidade, habituada ao
fogão eléctrico, não houve o café
da manhã, nem torradas, nem os papo-secos quentinhos da
fornalha. Saímos da casa desanimados, pois começar
o dia sem a nossa pinguinha de café é algo insólito.
Dirigimo-nos a Dundas e Ossington para obtermos mais novas, onde,
mais uma vez, o talento português para a improvisação
nos facultou na padaria um cafezinho consolador, embora instantâneo
e descafeinado, feito à pressa num fogareiro desmontável.
Esclareceram os amigos, que logo pela a manhã, o primeiro-ministro
canadiano recebera um telefonema do Sr. George W. Bush, remetendo
as culpas da falha, com já é habitual, para o Canadá.
Este, e mui correctamente, o elucidou que não fora o caso.
Mais tarde, vir-se-ia a responsabilizar uma falha ocorrida numa
sub estação de Cleveland, Ohio que fora, aparentemente,
atingido por um raio, segundo nos dizem os americanos, o que não
impediu que se propagasse a especulação que teria
sido obra terrorista. A cintura do Lago Erie partilha a mesma
rede, e o incidente na dita sub estação despoletou
a reversão da corrente, provocando o caos por todo o circuito.
Mais adiante, já próximo da Dundas
e Gladstone, os talhos portugueses ora transferiam a sua mercadoria
para carros frigoríficos alugados ora ligavam os seus circuitos
eléctricos a geradores de aluguer numa tentativa desesperada
de minimizar as avultadas perdas económicas.
Ao cair da noite de Sexta-feira, já as luzes se acendiam
em muitas zonas de Toronto e das cidades periféricas.
Mas, todo o bairro português entre a Bloor e a Dundas permaneceu
às escuras, como se não fossemos também filhos
de Deus. Mas, entre queixumes e gargalhadas, lá nos arranjámos
até Sábado de manhã, quando finalmente as
luzes se acenderam na nossa bem amada Dundas.
Segundo os anais da história contemporânea, só
em 9 de Novembro de 1965 é que o continente norte-americano
esteve imerso em tamanha escuridão!
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