A Respeito dos Ferreiros


Por Ferreira Moreno

O ano passado, baseando-me num artigo-reportagem publicado no jornal “A União”, escrevi uma crónica de lembranças acerca dos ferreiros, com especial referência ao artífice terceirense Raimundo Jorge Rocha da Silva, cuja actividade profissional constitui um autêntico legado de família, uma vez que tanto o avô como o pai exerceram o ofício de ferreiros.
De facto, foi na oficina destes parentes que o Raimundo, ainda jovem, cedo aprendeu a trabalhar, e presentemente o filhinho (embora criança) lá aparece a ajudar, alimentando assim a esperança de mais uma geração de ferreiros adentro da família.
Agora ao receber o “Diário Insular”, igualmente através dum artigo-reportagem, tive conhecimento que a oficina situada no cimo da Ladeira de São Bento continua de portas abertas, e que o Raimundo continua a dedicar-se à produção de varandas, portões ou miniaturas de utensílios usados em tempos antigos.
Tudo isto, e muito mais, é feito de forma artesanal, como manda a tradição. No entanto, a fim de tornar o negócio mais rentável, e independentemente da produtividade dispensada ao artesanato, esta oficina de ferreiro dispõe ainda de um soldador, de um serralheiro e de um torneiro.
Tem sido extraordinária a procura deste tipo de artefactos, de feição única, personalizados e garantidos por um perfeita execução artesanal. O ferro é trabalhado durante longas horas e ganha forma consoante o desejo do cliente.

A nossa arte é o ferro,
Com ela vimos dançar:
Sem trabalharmos primeiro,
Ninguém pode trabalhar.

Falando de ferreiros, caldeireiros, ferradores e ourives, o saudoso Dr. Urbano de Mendonça Dias (1878-1951), no oitavo volume da série “A vida de Nossos Avós”, recorda a situação criada por um certo caldeireiro, que em tempos houve em Vila Franca do Campo, o qual “por egoísmo, não queria ter consigo aprendiz algum, p’ra lhe não aprender o ofício.”
Os vereadores apresentaram queixa ao Corregedor, quando este visitou o Concelho em 1697. Este, por sua vez, deliberou que o caldeireiro entrasse a ensinar, imediatamente, dois ou três aprendizes, e se não fizesse seria preso, “donde não sairá sem fazer termo de ensinar os ditos ofícios, e se depois de solto não satisfazer e cumprir o dito termo, tornaria a ser preso, donde não sairia sem dar os ditos aprendizes ensinados.”
No entanto, o finório do caldeireiro não deu conta do recado e foi empatando o cumprimento do compromisso assumido. Em 1701, porém, viu-se obrigado a comparecer na Câmara Municipal, mas de nada lhe valeram as desculpas apresentadas, pois foi-lhe imposto que, “sem demora, abrisse a tenda e começasse a ensinar os sobreditos seus discípulos, assim o ofício de caldeireiro como de ferreiro, sem que houvesse interpolação de tempo e hora.”
Estou a lembra-me, neste momento, da Rua do Torninho na Ribeira Seca da “minha” Ribeira Grande: “Teve este nome, aquela rua, por ter existido um torno em que os serralheiros e os ferreiros apertavam as peças que queriam limar.” (Maria da Conceição Fernandes, Subsídios para a história da Freguesia da Ribeira Seca, Concelho da Ribeira Grande, 1997).

O meu amor é ferreiro,
Não é p’ra desprezar;
Tem o meu dote todo
E sabão p’ra o lavar.

O meu amor é ferreiro,
Trabalha na fundição
O dinheiro qu’ele ganha
Não lhe chega p’ra sabão.

Ferreirinho, guarda a filha,
Não a deixes à janela;
Senão vem o garotinho,
Que te quer fugir com ela.

Inda que meu pai me faça
Como o ferreiro ao ferro,
Não me pode retirar
De falar com quem eu quero.

Eu sou ferreirinho triste,
Que apenas um prego faço;
Tenho dentro da minha tenda
Trinta reis de ferro e aço.

Eu sou pedreirinho novo,
Inda não ganho dinheiro;
Boto barro à parede,
Levo os picos ao ferreiro.

Não quero amor ferreiro,
Que é caro pelo lavar;
Quero amor marinheiro,
Que vem lavado do mar.

Quem quiser ouvir mentiras,
Vá até ao lavadeiro;
Se não ficar satisfeito,
Vá p’rá frágua do ferreiro.

Eu hei-de mandar fazer
Altas varandas no mar,
P’ra ver o meu amor
Na ladeira a trabalhar.

Ferros d’el-rei são grilhões,
Inda o amor é mais forte.
P’ra ferros inda há limas,
P’ró amor só há a morte.

Minha mãe não quer eu’eu fale
Com o filho do serralheiro;
É um homem c’mos outros,
Trabalha, ganha dinheiro.

Se tu visses o que’eu vi,
Lá no Rio de Janeiro:
Uma pulga a bater ferro
Na testa dum torneiro.