Gatos e Missionários


Por Ferreira Moreno

A história assinala que, ao abrigo da clandestinidade (passe a expressão), os ratos chegaram à Califorlândia em navios provenientes do continente europeu, tornando-se num imediato e destrutivo perigo, quer p’rós indígenas quer p’rós colonizadores. A fim de neutralizar a devastadora actividade dos ratos, os missionários recorreram ao patrocínio (salvo seja) dos gatos através da urgente “importação” de felinos.
Numa das minhas “excursões” ao sul da Califorlândia, ao visitar a Missão San Fernando Rey da España, lembro-me de ter escutado a seguinte narrativa relacionada com os gatos de antanho. Num ano em que os ratos, em grande número, haviam “invadido” a Missão, os padres pediram socorro aos seus colegas da Missão San Gabriel, e estes corresponderam com o envio de dois gatos.
Perante a curiosidade dos índios, indagando como seria possível aos gatos entrar e sair da Missão, no combate aos ratos, um missionário retorquiu; “A gente faz uns buracos nos cantos das portas da Missão!
E, de facto, a provar a existência de gatos nas Missões, ainda hoje encontramos os tais buracos nas portas originais de San Fernando, San Gabriel, San Juan Bautista e Santa Ines.
Mais recentemente,depois de visitar a Missão San Buenaventura, recolhi informações acerca doutro caso associado com gatos nesta Missão. Trata-se dum episódio antigo envolvendo o Padre Francisco Xavier Uria e os seus quatro gatos. O missionário e os felinos comiam à mesma mesa, passeavam juntos e dormiam na mesma cama.
Quando o frade franciscano Uria faleceu, em 1834, os quatro gatos entraram solenemente na igreja, anunciando a morte do padre. Tive conhecimento que persiste rumor de que, em noites de tempestade, é possível ouvir-se ainda o miar dos quatro gatos.
Na investigação, que levei a cabo, encontrei documentos registrando a estadia temporária de Uria em San Buenaventura. No entanto, os mesmos documentos apontam que ele faleceu na vizinha Missão Santa Barbara. Este detalhe informativo é bastante relevante p’ra “clarificar” a nova narrativa, que passo a transcrever.
Agnes repplier, com mais de duas dúzias de livros já publicados, no livro intitulado “Junipero Serra, Pioneeer Colonist of California”, (new York 1947), apresenta-nos uma historieta bastante curiosa e diferente acerca dos gatos. Repplier escreveu que um frade (em San Buenaventura) vivia num estado de depressão física e mental, causando desgostos e preocupação ao índio, que o ajudava na celebração da missa. P’ra remediar a situação o índio arranjou quatro gatinhos e deitou-os na cama do frade que, ao encontrá-los, recuperou imediatamente da enfermidade que o atormentava.
P’ra embelezar ainda mais a sua historieta, Repplier acrescenta que os gatinhos eram tão mimosos que “não só acordavam o frade à hora marcada p’rás orações matinais, bem como punham as mãos postas (as patas) durante a recitação das orações.”
Repplier ajunta ainda a extraordinária historieta “doutro missionário de San Buenaventura, Frei Francisco Uria, um indivíduo de coração bondoso mas de índole irascível, que tinha três lindos gatos como companheiros. Os gatos sentavam-se ao pé do frade, quando este trabalhava e comia, apaziguando com a sua serenidade a pachorra e irritabilidade do franciscano.”

Agora, a fechar, quadras do Cancioneiro Geral dos Açores...

Eu ouvi uma conversa,
Escutei eram dois ratos
Dizendo um p’ró outro:
Nesta casa não há gatos.

O diabo leve os ratos
Mais os dentes das formigas,
Que me roeram os livros
Onde estudava as cantigas.

Ó minha mãe, que é aquilo
Qu’está debaixo da lenha?
É o gato da vizinha
Á espera que a gata venha.

Por aquele mar abaixo
Vai um gato mio, mio,
Que lhe cortaram o rabo
P’ra amara dum navio.

Sape gato, sape, sape,
Não me dês mais arranhões,
O amor é gato-bravo
Que arranha corações.

Chamaste-me olhos de gata,
Todas as gatas os têm;
Não fui roubar os meus olhos
Ás gatinhas de ninguém.

É do Cancioneiro Popular Algarvio o seguinte par de quadras:

Cá em Portugal
Há uma quadrilha de ratos;
Já se andam exercitando
P’ra fazer guerra aos gatos.

Eu já vi lavrar dois gatos
Através duma ladeira;
Eram pequenos e fracos
Mais deitaram boa jeira.