Os três amigos


Por: Dr. Tomás Ferreira


Um hospital igual para todos

É possível que o leitor nem sequer saiba quem é este sujeito, mas na semana passada ele deu uma contribuição grande para a introdução no Canadá da medicina com duas classes, o chamado “two tiers system”.

Ralph Klein é o Primeiro-ministro da província mais rica do Canadá, Alberta e tanto fisicamente, como no comportamento é muito parecido com o presidente da região autónoma da Madeira, Dr. João Jardim. Tanto um como o outro, dominam completamente a província ou região que governam, são muito populares, têm uma ideologia populista e gostam de fazer e dizer coisas que deixam as pessoas espantadas, especialmente os que vivem no resto do país.
Ambos, João Jardim e Ralph Klein, continuam a ganhar todas as eleições e pelo visto só irão para a reforma quando estiverem ou muito velhos ou visitarem S. Pedro.
Infelizmente para o canadiano, neste duo de políticos com o domínio total da região que governam, o Sr. Klein dada a tradição canadiana dos políticos se retirarem voluntariamente ao fim de algum tempo, parece estar no seu último mandato, embora pelo visto queira acabar com uma “bomba”que irá abalar toda a nação.

Sensação em todo o Canadá

A Sra. Iris Evans, Ministro da Saúde da Província da Alberta acaba de publicar em nome do seu governo um chamado “white paper”(livro branco) em que preconiza várias mudanças no sistema de saúde da sua província. O documento em questão, embora nas suas dezoito páginas tenha várias sugestões razoáveis, conclui com uma proposta para a introdução no Alberta dum “two tiers system” (um sistema de saúde com duas classes) em que o doente poderia escolher ser tratado no sistema público custeado pelo Estado ou no privado, pagando da sua algibeira.
Mais grave ainda, como demonstrarei mais adiante, os médicos poderão à semelhança do que sucede em Portugal, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, trabalhar nos dois sistemas, seguindo o famoso princípio em que o médico oferece ao seu doente, duas opções, pagar e ser tratado imediatamente ou usar o sistema público como o nosso OHIP e esperar meses ou anos, para ser atendido.
É óbvio que o sector privado irá pagar mais aos médicos, o que leva muitos clínicos a serem atraídos a este sistema. Não é por acaso que o Dr. Brian Day, também conhecido por “Dr. Profit” (Doutor Lucro), um ortopedista da British Columbia, que já montou na sua província um negócio médico, a Clínica Cirúrgica de Cambie, tenha ganho a eleição para futuro presidente da CMA (Associação Médica Canadiana).

Consequências da medicina privada

Quando eu trabalhava em Inglaterra existia nesse país um sistema semelhante ao canadiano chamado o National Health Service e um minúsculo sector privado. Depois de ter vindo para o Canadá, tendo mantido contacto com o país onde viera quatro anos, fui seguindo o que se passou em Inglaterra, hoje os médicos oferecem aos seus doentes dois tipos de serviços, um que é rápido o privado e outro o pago pelo Estado que leva meses de espera.
No dia em que estou a escrever este artigo O Globe and Mail publicou uma carta ao editor duma pessoa que viveu em Inglaterra a qual levou o filho ao médico de família porque tinha uma terrível erupção na pele.
Dada a seriedade e desconforto das lesões, a opinião dum dermatologista foi sugerida. Este especialista de doenças de pele, informou aos pais que estava disposto a ver a pobre criança no dia seguinte pela quantia de 65 libras (130 dólares) ou gratuitamente no serviço do Estado em três semanas. Outros artigos que tenho lido, mostram que no Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia a discrepância para tempo de espera para outros serviços como próteses da anca e dos joelhos, é de duas ou três semanas no serviço do Estado. Nesses três países, aonde até há pouco anos não existia praticamente medicina privada, assim que se introduziu a medicina lucrativa as listas de espera aumentaram.
Não é preciso ser nenhum génio para chegar à conclusão que a introdução da medicina privada, vai aumentar o tamanho da lista de espera dos que são pagos pelo Estado.
Suponhamos que existem 30 cirurgiões na área urbana de Toronto, que operam aos joelhos. No momento presente aos pessoas que necessitam dos serviços destes médicos esperam a sua vez até que chega altura de serem operados por esses médicos. A não ser que se trate de uma urgência, a situação é como duma bicha para um serviço numa loja ou num banco. É óbvio que se uma minoria pagar, estes privilégios serão tratados primeiro pelos tais cirurgiões, que estarão ocupados com eles e terão menos tempos para tratar dos doentes que são custeados pelo Estado, no caso do Ontário OHIP, isto é em vez de serem 30 é como se fossem 20.
Voltando à imagem da tal bicha, é como se um pequeno grupo se colocasse à frente da maioria que obviamente iria esperar mais tempo.
O Ministro da Saúde do Ontário chamou a atenção para o facto de que segundo a Ontario Medical Association, cada médico de família em média toma conta de 1.300 doentes. Uma vez que nas clínicas particulares, que estão a tentar estabelecer-se nesta província, cada médico terá apenas 500 doentes. Por cada médico que vai para a medicina privada ficam 800 doentes sem médico. Com a falta que existe neste momento de médicos a família quantos mais forem para a medicina privada, menos restarão para o público em geral.

Segundo um estudo feito pela professora Collen Flood da Universidade de Toronto citado no Globe and Mail se apenas 10% dos especialistas do Canadá passarem para a medicina privada, a média de espera para uma operação, à articulação da anca, para substituí-la por uma prótese, aumentará de 126 dias para 146, enquanto que a mesma intervenção no joelho, passaria de 177 dias para 205. Quanto às operações às cataratas, que hoje tem uma média de espera de 80 dias subiria para 93.
Estes números, são a média para o país e não se referem apenas a Toronto, mas servem para ilustrar como a maioria do público que não poderá pagar para o tratamento privado, terá de esperar mais tempos num sistema em que existe medicina privada.
Também a professora Flood, chama a atenção no seu estudo, que uma vez que os médicos irão ser melhor pagos no sistema privado, é natural que muitos sejam tentados a arranjar maneira de tornar maiores a lista de espera, afim de atrair mais “fregueses”para as suas clínicas privadas, aonde receberão mais pelos seus serviços.
Nós vivemos no Ontário
Talvez o leitor esteja a pensar que o que o Sr. Klein diz, no Alberta a mais de 2.000 quilómetros de distância, uma província com um saldo positivo de 7 biliões de dólares, devido ao aumento do custo da gasolina, não nos atinge no Ontário ou no resto do país, porém este “white paper” pode ser o princípio do fim para o sistema de saúde em que vivemos o qual trata todos os doentes ricos ou pobres da mesma maneira e não dá possiblidades a ninguém de comprar um lugar à frente na bicha, ou lista de espera para qualquer serviço médico.
Como é sabido, existe uma lei no país chamada o Canada Health Act, criada em 1968 e modificada em 1984 (lei da saúde do Canadá), que proíbe cobrar dinheiro por qualquer acto ou serviço médico que seja necessário e obriga o governo a custear os preços, de forma que o tratamento seja igual para todos os canadianos. O sistema que o Sr. Klein preconiza é sem dúvida ilegal, de acordo com o “Canada Health Act”, porém a província de Alberta com uma população relativamente pequena, menos de 10% do Canadá, o Sr. Stephen Harper, conservador como o Sr. Ralph Klein, não parece ser a pessoa indicada para defender o nosso sistema de saúde. Em 2001, Stephen Harper, pessoa de ideologia bem conservadora e portanto a favor da medicina privada escreveu uma carta aberta ao Primeiro Ministro do Alberta Ralph Klein, a dizer-lhe que tomasse o controle do sistema de saúde da prvíncia e ao mesmo tempo criticando o nosso sistema de saúde canadiano e instigando o seu correligionário a lutar contra o Canada Health Act (Lei da Saúde do Canadá). O Sr. Harper nesta carta, aconselha Ralph Klein a construir uma muralha à volta da Província de Alberta e lutar contra as leis do governo do Canadá, como aquela que regula o nosso sistema de saúde.
Entretanto, para ver ser conseguia ganhar a última eleição, Stephen Harper, virou o bico ao prego e começou a dizer, embora com muito pouco entusiasmo que agora já era a favor do nosso sistema médico e da lei que o protege o “Canada Health Act”. Neste momento, o Primeiro Ministro do Canadá Stephen Harper, pessoa de ideologia muito conservadora e um entusiasta da medicina privada, esta evitar criticar directamente o seu correligionário Ralph Klein ao mesmo tempo que não suporta publicamente as suas ideias, tanto mais que ele tem um governo de minoria. É caso para dizer, traduzindo um ditado inglês, a raposa está a tomar conta da capoeira. Coitado do nosso sistema de saúde, se quem o vai defender é o actual primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper.
Quanto a nós no Ontário temos neste momento um governo que é contrário à introdução do tal “Two Tiers System” (duas classes de medicina, uma pública e outra privada)
O Ministro da Saúde de Ontário, George Smitherman em que tenho bastante confiança, cujo secretário parlamentar é o deputado Peter Fonseca, tem manifestado claramente que é contra a existência de uma medicina dividida em duas classes, uma para o público em geral e outra para os que tem mais dinheiro. Enfim doentes de primeira classe e o de segunda.
Embora Alberta esteja distante, não há dúvida que há muitos inimigos do nosso sistema, que aproveitarão o exemplo do Sr. Klein para lentamente introduzirem subvertidamente a medicina privada. Além dos muitos médicos que atraídos pelo lucro estão dispostos a dividir os seus doentes em duas classes, os que pagam e os que são custeados pelo governo, existem dezenas de empresas, especialmente americanas, que desejam investir num mercado de mais de 30 milhões de pessoas que é o Canadá. Não devemos esquecer que um dos três maiores sectores da economia americana, além da indústria de automóvel e o material de guerra, é a saúde.
Uma aliança de conservadores ideologicamente a favor da medicina privada, médicos interessados em ganhar mais dinheiro e empresários que querem investir naquilo que para eles é um negócio como qualquer outro, estão a lutar pela introdução da medicina privada neste país.
Como utentes do sistema, deveremos lutar para o defender, quer com o nosso voto quer usando outros meios, como falando com nossos deputados e participando em reunião públicas e apoiando qualquer medida que suporte o Canada Health Act (Lei da Saúde do Canadá), que assegura que todos neste país tenham a mesma qualidade de serviços médicos e não exista uma medicina de primeira classe para os que pagam e uma de segunda para a maioria da população. Ao menos que na saúde, à semelhança do que se passa no nascimento e na morte sejamos todos iguais.