Lembranças de Barbeiros


Por: Ferreira Moreno

Embora, em crónicas anteriores, eu tenha já rabiscado umas ligeiras "lembranças" àcerca de barbeiros, acudiram-me à mente outras recordações após a leitura do artigo-reportagem, que o jornal "A União" publicou na sua edição de 17 de Março do ano corrente, àcerca de Pedro Inácio Oliveira, terceirense de 75 anos natural da Ribeirinha, "hoje o barbeiro mais antigo da cidade d'Angra em actividade permanente."

Vem já do "tempo da tropa" o seu mister ou profissão de barbeiro, e desde 1967 é proprietário da sua barbearia, localizada na Rua da Palha, onde igualmente trabalhava o filho David, de 42 anos d'idade.

Recuando ao período inicial do povoamento humano das ilhas, quero destacar um par de casos, deveras curiosos, que Gaspar Frutuoso nos transmite no livro IV das "Saudades da Terra", (edição de luxo publicada em 1998 pelo Instituto Cultural de Ponta Delgada).

Assim, na página 143, Frutuoso menciona a Ribeira do Tosquiado, lá p'rás bandas do Nordeste da ilha de S. Miguel, desta maneira referida por aí residir um indivíduo alcunhado Tosquiado, "porque se tosquiava sempre e não deixava crescer o cabelo." Isto equivale a dizer que o homem certamente causava sensação com a sua debonair aparência, pois não creio que ele modelasse o corte do cabelo no estilo da tribo dos Índios Mohawks.

Sirvo-me desta observação apenas p'ra acentuar que, em S. Miguel no século XVI, não era costume vigente cortar-se a barba e cabelo. Por outro lado, ou seja na página 288, Frutuoso menciona o Pico do Barbeiro no lugar da Maia. Podemos deduzir, consequentemente, a existência de barbeiros na ilha. Tanto que eu saiba, havia ou houve dois cujos nomes o próprio Frutuoso identifica, respectivamente, nas páginas 230 e 263. Trata-se de João de Abrantes, "que andava a pedir pelas portas", e João Lourenço, que residia em Ponta Delgada.

Antigamente o barbeiro também sangrava, aplicando sanguessugas que guardava em casa p'ra esse fim. O barbeiro, igualmente, dava o seu conselho sobre muitos casos de doenças. Daqui, julgo eu, o sentido atribuído ás seguintes quadras continentais, recolhidas em Celorico da Beira e Pampilhosa da Serra:

Lá abaixo vem o barbeiro,
Com a lanceta na mão,
Que vem sangrar a menina,
Na veia do corar a menina,
Na veia do coração.

Quem me dera a liberdade
Que tem o mestre barbeiro:
Vai ver as moças à cama,
Encosta-se ao travesseiro.

Por causa das sangrias, veio-me agora à lembrança o episódio narrado por Frutuoso (páginas 314-316), àcerca de D. Hierónyma de Mendonça, filha segunda do Capitão Manuel da Câmara e sua mulher D. Joana de Mendonça…

Hierónyma era uma solteirona extremamente piedosa, que nunca se quiz casar, e tinha preferência em ser chamada Hierónyma das Chagas, por pertencer a muitas confrarias de que era "confrade ou irmã." Aparentemente, ela sofria do fígado, "que lhe causava muitas quenturas, por cujo respeito era costumada a ser sangrada muitas vezes."

Quando ela adoeceu gravemente, e houve necessidade urgente de sangrá-la novamente, "foram chamar o barbeiro que havia em costume sangrá-la." Mas desta vez, por infelicidade, no pique que o barbeiro lhe deu, "lhe cortou a artéria e de improviso lhe inchou o braço em demasia, sem lhe poder tomar o sangue, fazendo-lhe muitos remédios."

De nada lhe valeu a vinda dos médicos de Lisboa, nem tão pouco lhe aproveitaram os remédios humanos. Finalmente desenganada de uns e outros, Hierónyma "como pessoa prudente a amiga de Deus, acudiu ao mais necessário, que era a sua alma como jóia mais principal, mandando logo chamar um frade franciscano para a confessar."

Foi-lhe, então, enviado um teólogo de nome Frei Anjo, que não só lhe administrou os devidos sacramentos, bem como a assistíu na redacção dum testamento deveras fabuloso!

Já não quero casar,
Agora vou p'ra freira;
P'rá semana que vem
Vou cortar a cabeleira.

O João foi preso,
Não por roubar dinheiro;
Foi por dar um beijo
Na filha do barbeiro.

É do meu irmão-emigrante António de Medeiros Silva, de New Bedford, mais popularmente conhecido por Zé da Chica, o seguinte par de quadras a encerrar estas lembranças:

Ouço ás vezes perguntar
A gente mais entendida:
Que nome se deve dar
A uma barba crescida?

Se não estou muito errado
A barba de quantidade
Seria mais acertado
Chamar-lhe barbaridade!