Lembrança de Bodes


Por: Ferreira Moreno


Em Portugal, continental e insular, existem determinados vocábulos cuja pronúncia ou dicção oferecem curiosas variantes que, ao fim ao cabo, geralmente apontam o sotaque desta ou daquela região. Um caso em evidência é por exemplo, em cabras que em certas partes de São Miguel reveste-se aparentemente, com o som fonético de cobras.
Similares variantes encontram-se, igualmente por estas paragens da nossa emigração, mesmo sem atropelar a língua inglesa, como tenciono demonstrar nestas "lembranças" com uma narrativa, assaz anedótica, ocorrida na Península de Monterey.
Foi no já distante ano de 1771 que o famoso frade franciscano, Padre Junipero Serra, fundou a Mision San Carlos Borroméo del Carmelo, vulgarmente conhecida por Carmel Mission, onde repousam os seus restos mortais, e onde num jardim fronteiro estão as estátuas de S. Francisco de Assis e do nosso popular Santo António.
Carmel, actual nome da cidade deve a sua origem toponímica ao Rio Carmelo, que desagua no Oceano Pacífico, fica contíguo à igreja missão. O rio foi assim designado pelos padres Carmelitas, acompanhado a expedição de Sebástian Vizcaino em 1602. Embora os registos históricos sejam unânimes em creditar João Rodrigues Cabrillo como o primeiro europeu que avistou e delineou o mapa da Península de Monterey, o certo é que Cabrillo não desembarcou p´ra efectuar uma exploração da península em 1542.
Ora bem, retomando o fio à meada, quero recordar que, numa noite em data imprecisa, uns bodes (goats, em inglês) que pastavam nas vizinhanças da Missão, decidiram visitar aquele recinto à procura de forragem. Impelidos, certamente pela curiosidade que lhes é peculiar, os bodes subiram à torre e começaram a roer as cordas dos sinos.
Claro que, dali a pouco os sinos entraram a badalar e, consequentemente, os repicos acordaram os habitantes da localidade, causando um grande sobressalto. Pouco depois houve alguém que, ao verificar ser uma invasão dos bodes, entrou a gritar: Goats! Goats!
No entanto, o alarido e confusão resultaram em pânico quando muitas pessoas julgaram que estavam a ouvir GHOSTS (fantasmas, em português). E assim nasceu a lenda de que o tanger dos sinos foi obra dos espíritos e almas de outro mundo!
Esta narrativa fez-me lembrar aquela outra que Augusto Gomes (1921-2003) incluiu no seu livro "Filósofos da Rua" publicado em 1984. Trata-se neste caso, de um bode pertencente a um indivíduo chamado Tio António.
Ao tempo, esse bode era considerado o melhor reprodutor da ilha Terceira, o que ocasionava arrelias ao Dr. Melo Correia, veterinário da Junta Geral, em cujo Posto Zootécnico havia também um bode, mas destituído dos dotes extraordinários do cornúpeto D. Juan, que o tio António possuía.
E vai daí o Dr. Melo Correia decidiu comprar o tal bode e metê-lo no Posto Zootécnico. Mas, caso estranho, o bode tornou-se indiferente aos apelos amorosos das fêmeas. Algo intrigado, o veterinário chamou o tio António e pediu-lhe que examinasse, pessoalmente qual seria a causa de tão aberrante comportamento.
O tio António aproximou-se do bode e entrou a ciciar qualquer coisa ao ouvido do animal. Seguidamente, o tio António encostou-se À boca do bode, e este começou a mover os beiços numa atitude de quem está a falar. O veterinário, naturalmente, não se conteve e implorou ao tio António que lhe revelasse o teor de tão estranha conversa.
- Pois olhe, senhor doutor, que eu lhe disse que não estava certo o que estava a fazer e que estava a deixar-me ficar mal.
- E o que foi que ele respondeu?
- Pois saiba que o estupor me respondeu que não estava para se ralar, porque agora já era empregado do Governo.
Entre as muitas fajãs de S. Jorge, há uma chamada precisamente Fajã dos Bodes. Em S. Miguel, para as bandas do Faial da Terra, existiu antigamente a Rocha do Bode que, no dizer de Gaspar Frutuoso era altíssima rocha "direita ao prumo e talhada, que dizem ser a mais alta de toda a ilha, que se chama o Bode, por cair algum dela abaixo. (Saudades da Terra, Livro IV, Página 143, Edição 1998)
Na Califorlândia a ilha Yerba Buena (na Baía de San Francisco) foi durante muitos anos conhecida por Ilha dos Bodes, devido às centenas de bodes que povoaram a ilha ao tempo da exploração do ouro. Termino citando um provérbio antigo: Um bode, por ser velho e ter barba, nem sempre merece o nosso inteiro respeito.