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Por Ferreira Moreno
Na crónica de lembranças àcerca das telhas
nas ilhas apontei, ainda que ligeiramente, o fabrico da sertã
no Bandejo como "uma curiosidade digna de apreço."
Agora, antes de passar a descrever o que entendemos por sertã,
uma breve referência àcerca do Bandejo.
O Bandejo era e continua a ser uma zona habitada na orla marítima
da costa nortenha da ilha de S. Miguel, pertencente à paróquia
de S. Pedro, freguesia da Ribeira Seca do concelho e cidade da
Ribeira Grande. Antigamente foi conhecido pela vivência
dispersa de famílias pobres, mas ainda assim era o Bandejo
igualmente famoso em toda a ilha, devido aos fornos ali localizados
p'ra produção de telhas, tijolos e sertãs.
O ano passado, aquando das tradicionais Cavalhadas
de S. Pedro, foi-me proporcionado o ensejo de visitar o Bandejo.
É certo que não deparei com os tais fornos, mas
fiquei agradavelmente surpreendido em verificar que a zona do
Bandejo encontra-se actualmente bastante ampliada, extraordinariamente
asseada, repleta de risonhas moradias, trânsito desimpedido
e com mais gente
feliz sem lágrimas!
No que diz respeito à sertã, trata-se dum curioso
disco de barro grosseiro, de pouca espessura, com um bordo na
periferia não ultrapassando uns três centímetros
de altura. O disco pode variar no respectivo diâmetro, mas
geralmente apresenta apenas duas dimensões. Visto que o
barro empregado é de inferior qualidade, o aspecto da sertã
revela-se algo grosseiro, o que fracamente não lhe desmerece
em utilidade. P'ra favorecer uma melhor liga, os oleiros recorrem
ao emprego de areia. A face inferior denota sempre uma aparência
demasiado áspera e irregular, enquanto a face superior
não se mostra, igualmente, muito lisa.
Talvez seja este precisamente o sortilégio emanado da
sertã, tornando-a uma das coisas mais estimadas das populações
rurais p'ra determinados fins culinários. Quer nas cozinhas
de gente pobre, quer nessas de gente remediada, a sertã
salienta-se regalada e mimosamente entre os rudimentares utensílios
caseiros. Com o lume feito sobre pedras e sobre trempes de ferro,
a sertã presta-se magnificamente p'ra assar peixe, que
é uma autêntica delícia, bem como p'ra torrar
favas e milho, e ainda o célebre bolo de sertã.
Ignoro, presentemente, a situação do fabrico e
venda da sertã, visto que embarquei p'ra Califórnia
em 1955. Mas numa evocação dos tempos antigos, apraz-me
transcrever a seguinte passagem da série "Tradições,
Costumes & Turismo", escrita por Carreiro da Costa em
1963 e incluída no livro "Etnologia dos Açores",
(Vol. II, 1991).
"Ultimamente é do Bandejo que tem saído a
grande maioria das sertãs que irradiam p'ra todas as partes
da ilha, p'ra diversas mercearias e vendas das freguesias e aldeias."
Este tráfico comercial era feito "por intermédio
dos conhecidos vendilhões, que p'ra tanto ou utilizam pequenas
carroças de muares ou recorrem a jumentos carregados de
típicos seirões de vimes."
Desnecessário acrescentar que o progresso,
verificado em tempos modernos, há alterado em larga escola,
e obliterado até certo ponto, este comércio popular
do século passado. Mas não restam dúvidas
de que, ainda hoje, nada se compara (em termos gastronómicos)
com chicharros assados na sertã e depois passados por molho
de vilão. Comidos à unha, como lembra Carreiro da
Costa, sobre uma fatia de pão de milho ou então
sobre um pedaço de bolo de sertã, a alma vai
ao céu e torna a vir!
Este método de assar chicharros é muito simples.
Depois de aquecida sobre a trempe, basta polvilhar a sertã
com farinha de milho, após o que se vão colocando
os chicharros, virando-os depois à medida que se mostram
assados. Seguidamente, p'ra quem gosta, é só passá-los
pelo molho à medida que saem da sertã. P'ra quem
não sabe, e deseja saber, o molho de vilão é
um molho verde preparado com vinagre, cebola, alho, colorau ou
açafroa.
E se o apetite pedir, de preferência, assar cavalas e postas
de bonito, recomenda-se que o peixe seja embrulhado ou colocado
na sertã sobre folhas de conteira. Dest'arte a assadura
é feita lentamente, evitando que o peixe fique tostado
ou demasiadamente seco.
É tudo quanto se precisa p'ra dar ao peixe melhor aspecto
e ademais aguçar o paladar!
Meu amor é fuseiro,
Pois mora no Bandejo;
Faz sertã a jeito
E ganha bom dinheiro.
Meu amor é paneleiro,
Paneleiro faz panelas,
Cada vez que me vem ver,
Traz-me uma carrada delas.
No caso do bolo a tarefa é muito simples, uma vez obtida
a massa feita de farinha de milho, água quente, sal e um
pouco de doçura de trigo. Desta massa, depois de devidamente
escaldada e amassada, fazem-se umas bolas pequenas, que seguidamente
são espalmadas numa tendeira previamente polvilhada de
farinha. Depois é só esperar que a sertã
se apresente aquecida p'ra transpor e colocar aí o disco
da massa.
E tão certo como os Açores serem
nove ilhas, distanciadas entre si, evidentemente que varia de
ilha p'ra ilha o processo em fazer bolo deste tipo, sobretudo
onde a sertã não é frequentemente usada.
O dr. José Leite de Vasconcelos apercebeu-se desta diferença
ao visitar os Açores em 1924, anotando que na Calheta e
Piedade do Pico "cozem do seguinte modo uma espécie
de pão chamado bolo, de farinha-milha, sem fermento
e só com sal e água. Aquecem no pátio uma
laje móvel, acendendo-lhe lume em cima; depois limpam-na
e colocam sobre ela a massa tendida (
) Noutras terras do
arquipélago cozem o bolo num tijolo redondo, aquecido em
trempe, com lenha sotoposta." (Mês de Sonho,
pág. 52, Ed. 1992).
Minha mãe é minha amiga,
Quando coze dá-me um bolo;
Quando se enraiva comigo,
Dá-me c'o'a pá do forno
Hei-de namorar cantando,
A filha duma forneira,
P'ra nunca se me acabarem
Os bolos na algibeira.
Agora, à guisa de apêndice, permitem-me que vos
apresente Martha de la Cal, natural de Kansas City (U.S.A.), tendo
leccionado em Havana (Cuba), mas já a residir em Lisboa
desde 1966. Como jornalista e correspondente do TIME magazine,
fez a reportagem da Revolução dos Cravos em 1974.
Desconheço onde reside presentemente; apenas sei que, ainda
em 1988, era casada, tinha cinco filhos e cincos netos.
No seu livro, publicado em inglês, àcerca de Portugal,
Martha faz referência a uma localidade na Beira Baixa, situada
a 12 quilómetros de Castelo Branco, cujo nome é
precisamente SERTÃ. Reza a lenda que, numa batalha contra
os romanos, um nobre guerreiro lusitano perdeu a vida, e a esposa
atirou-se aos invasores com uma frying pan (sertã) de azeite
a ferver. Daí adveio a esta vila o nome de SERTÃ
que, nas palavras de Martha, é igualmente famosa pela sua
aguardente.
Através de Carreiro da Costa, citando
Topónimos & Gentílicos de Xavier Fernandes,
apraz-me confirmar ser Celinda o nome da lendária heroína,
cujo marido era o guarda do castelo. Ao ter conhecimento da morte
do marido, "ela correu com a frigideira (sertã) cheia
de ovos e azeite fervente, acometendo com tal ímpeto os
invasores do castelo, que os fez recuar."
Cuidado, pois, com a sertã
que ela também
pode servir de arma de ajuste em desavenças domésticas!
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