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Por Ilda Januário
Como o bafo de um dragão, o ar de Junho
nunca tinha sido mais abrasador e húmido nestas paragens,
Margarida. Era dia de Santo António e na igreja dedicada
ao santo com o mesmo nome teve lugar o nosso reencontro. Para
lá me dirigi, já a rua Bloor fervilhava de tráfego
e de comércio. De costas para o bulício de dia útil,
teu irmão recebia, no passeio, os abraços e os apertos
de mãos dos teus amigos e conhecidos, antes de entrarmos
na igreja. Mas primeiro aguardámos que saísses da
limusina, para te seguirmos em seguida. No topo da escadaria aguardava-nos
o som mavioso de uma harpa, dando uma nota requintada à
cerimónia para a qual tínhamos sido convidados.
Muitos já te aguardavam dentro do espaço
grandioso e singelo que eu não conhecia mas que faz parte
do teu mundo. Tentávamos descortinar a razão que
te trouxe aqui, neste mês em que se começam a celebrar
os casamentos e cidade se cobre de flores e arvoredo. Apesar de
não ser tua íntima, não me foi difícil
compreender-te e marcaste-me muito; talvez me iluda, mas reconheci
como minhas e nossas, muitas das pétalas da tua existência.
Pétalas que se foram desfolhando da tua
vida de mulher imigrada. Bem sei que vieste jovem para o Canadá,
mas seguramente que algumas pétalas se perderam na transplantação
dessa flor açoriana frágil – língua,
afectos, paisagens, laços a que mesmo os pequenos se agarram
e os marcam para sempre. Depois sabe-se lá que ventos fustigaram
a tua existência – no lar, na rua, na escola, nos
primeiros trabalhos, namoros, amizades, causando-te alegrias,
decepções, expectativas. Ouvi dizer que trabalhaste
no Children’s Aid e que foste uma pioneira na fundação
do Abrigo, portanto lutaste em prol das mulheres e crianças
maltratadas. E que pagaste um preço por isso.
Cruzámo-nos pela primeira vez há
vinte anos. Víamo-nos corredores da universidade. Tu pertencias
a um grupo de pesquisa, eu a outro, nunca nos detivemos a falar
por muito tempo. Sempre te achei bonita e algo esquiva, por detrás
do teu sorriso pronto. Esses encontros fortuitos e conversas de
corredor foram ocorrendo infrequentemente, por vezes com anos
de interregno. Contaste-me que tinhas recomeçado os estudos,
que o teu casamento, como tantos, havia falhado. Outras pétalas
foste perdendo pelo caminho, como aconteceu a tantos de nós.
Mas que não te apagaram o sorriso.
Anos mais tarde soube que tinhas conseguido o
que poucos conseguem na nossa comunidade lusa: um doutoramento.
Um dos raros e preciosos feitos que nunca apregoaste, que eu saiba,
e que completaste na corda bamba esticada entre duas gerações
de imigrantes luso-canadianos.
Injustamente Margarida, uma cidade cosmopolita
como Toronto não oferece linhas directas a nada. Estuda-se
tanto mas isso não leva de imediato, nem necessariamente,
a coisa nenhuma. Trabalha-se muito, muda-se de carreira, ou seguem-se
várias ao mesmo tempo, fazem-se biscatos e voluntariado.
Seria uma questão de te mercantilizares – “sell
yourself” – mas nem todos estão na disposição
de o fazerem e sofrem em silêncio, põem contas à
vida, imobilizam-se, culpabilizam-se, estrebucham na lacuna entre
a oferta e a procura. O mercado do trabalho está cada vez
mais impiedoso, o relacionamento entre homens e mulheres cada
vez mais ingrato e incerto. Valha-nos a família e os outros
entes queridos. Ouvi dizer que tinhas uma relação
muito especial com a tua mãe. Que seguiu o caminho da eternidade
há ano e meio ano. E que essa foi uma das tais pétalas
que, ao serem arrancadas, quase deceparam a corola. Esta ficou
presa por um fio ao caule da margarida sensível. A corola
cujo centro amarelo e fértil se chama “esperança
de dias melhores”.
Ainda há semanas tinha cruzado caminho
contigo na rua Bloor. Não me viste, pequena. O rosto triste
que vislumbrei entre os transeuntes não me surpreendeu
sobremaneira. Acho que muitos de nós temos um ar assim,
quando não estamos a conviver e nem sabemos que estamos
a ser observados. O ar de quem perdeu muitas pétalas da
sua flor interior, vê os anos a fugir e já não
acredita que os nossos melhores anos ainda possam estar à
nossa frente. Mal sabia eu que tinhas passado “para além
da Taprobana” do tolerável. Que nos convidariam para
te homenagear nesta mesma rua, a uns quarteirões de distância
para o Oeste da cidade, já fora da Baixa e dentro da “Portuguese
Village”. Para te dizer adeus.
Olho de novo a harpista e noto que está
vestida de negro. A condizer com a roupa dos convivas e a cor
da limusina funerária. Olho para o espaço que ocupas
na horizontal e penso que talvez vejas do outro Lado como as gotas
de suor dos nossos rostos se misturam com as lágrimas e
humedecem os esgares da nossa incredibilidade. Como o padre simpático
e anafado, o único de vestes brancas, passa amiúde
o lenço pela fronte enquanto celebra o ritual fúnebre
e fala de ti na homilia com simpatia e apreço. Da Margarida
desfolhada que nem sequer esperou a sua vez de ser colhida pelo
tempo neste nosso pequeno jardim além mar plantado.
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“Estamos todos a morrer, não é?
E não estamos a ensinar uns aos outros o que sabemos melhor,
não é verdade?” Roselyn no filme Os Inadaptados
(The Misfits, 1961)
Agora, passado um ano da tua morte, deixa-me que te volte a homenagear
e a aprender contigo, Margarida outra vez reflorida no Junho da
nossa memória.
Maria Margarida M. Aguiar nasceu a 20 de Dezembro, 1953, S. Miguel,
Açores, emigrou para o Canadá em 1959, e faleceu
a 9 de Junho, 2005.
Dra. Margarida Aguiar
Tese de mestrado:
Aguiar, Maria Margarida M. (1994).
The School and Immigration Histories of
Women from the Island of São Miguel in the Azores
Region of Portugal: Its Impact on Their Relationship with
Their Children’s Education Within Toronto’s
Elementary School System
Department of Education, University of Toronto
Resumo parcial (traduzido do
inglês):
Através de entrevistas in-depth
gravadas com sete mulheres imigrantes oriundas da ilha de
São Miguel, na região açoriana de Portugal,
estas mulheres foram levadas a examinar três etapas
das suas vidas: 1) as suas experiências de escola
na ilha, 2) a imigração para o Canadá;
e 3) a frequentação dos filhos nas escolas
primárias de Toronto. Um dos propósitos principais
do estudo era o de compreender o impacto das experiências
na escola e da imigração na vida destas mulheres
e examinar o relacionamento delas com a educação
dos seus filhos.
Tese de doutoramento:
Aguiar, Maria Margarida M. (2001).
Childhood, Schooling, Family, and Community:
Reflections of Mothers
Department of Adult Education. Community Development and
Counselling Psychology, Ontario Institute for Studies in
Education of the University of Toronto
Resumo parcial (traduzido do
inglês):
Nesta tese o/a leitor/a ficará a
conhecer nove mães que trabalham dia a dia para satisfazer
as necessidades físicas, emocionais, sociais e recreativas
dos filhos em idade escolar. São estórias
de mulheres que trabalham com as escolas esperando que os
seus filhos recebam a instrução de que necessitam
para se tornarem adultos activos e participantes [na sociedade].
Quando elas próprias eram estudantes, abandonaram
a escola sem completar o estudo secundário. São
mulheres que se realizam a cuidar dos filhos. E que também
buscam continuamente significado dentro das suas próprias
vidas como pessoas que trabalham e aprendem. São
oriundas de origens étnicas, raciais e linguísticas
variadas. Este estudo inclui mulheres de lares constituídos
por pessoas brancas anglófonas e lusófonas,
pessoas negras e indianas anglófonas. Todas vivem
em Toronto (…). A tese também relata como foi
à procura de uma teoria que a ajudasse a interpretar
e a escrever as estórias colectivas e individuais
que emergiram das palavras transcritas destas mulheres.
A jornada culminou [no encontro] com as teorias sobre a
linguagem (falada, lida e escrita) de Mikhail Bakhtin e
Paulo Freire, dois escritores conhecidos internacionalmente,
para quem o diálogo tem um lugar central na comunicação
humana.
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