Memórias, Imagens & Saudades


Por: Ferreira Moreno

Ao título “Imagens do Natal”, o meu saudoso “Mestre” Carreiro da Costa publicou um artigo no “Diário dos Açores” (24 de Dezembro 1975), que ainda guardo religiosamente, e donde tenciono transcrever algumas passagens, tendo em mente os leitores da minha geração que, certamente como eu, recordam com saudade a quadra natalícia que se vivia nos Açores, há trinta ou mais anos atrás.
“Em muitas povoações rurais, logo que chega a santa noite de Natal, já as lapinhas estão armadas no melhor quarto das casas, com as pastinhas de musgo, os pratinhos de trigo, as tigelinhas de ervilhaca, os castiças antigos com as suas arandelas, e as jarras com palmas e camélias.
A ronda às lapinhas decorre pela noite adiante, como pela noite adiante decorrem as consoadas. Os açorianos não tem manjares característicos com que assinalem a Festa do Menino. No entanto, não lhes falta nunca a velha e sempre bem-vinda canja de galinha, ou o odoroso peru assado, ou mesmo, no caso micaelense, o afamado capão criado em terras do Nordeste.
De igual modo, também, não lhes falta a fofa massa sovada ou a boa travessa de arroz doce com arabescos de canela. E, como se tudo isso não bastasse, não lhes faltam igualmente as passas e as nozes, os licores caseiros preparados com tanto entusiasmo nas semanas anteriores.
Nesta noite memorável, a família junta-se com parentes e aderentes. Está alegre e bem disposta, mas não esquece que todo o calor que anima as suas almas provém daquela suave beleza, toda paz e amor, que se evola do presépio.”
E Carreiro da Costa prossegue: “Mas a noite de Natal nada é sem Missa do Galo. Em todos os Açores, as Missas da Meia-noite são o grande momento do Natal de Jesus. Os sinos tocados, logo as portas das casas se vão abrindo vagarosamente. Começa, então, uma autêntica romaria a caminho da igreja. Os que vêm de mais longe, por atalhos e veredas, p’ra encurtar distâncias, seguem em grupos, cantando e de lanterna à frente.
A igreja, entretanto, vai-se tornando um mar de gente e num céu de luzes. Com a entrada dos sacerdote, os cânticos inundam as naves e os corações. E quando, do alto da capela, se entoa o Glorie, há campainhas que tocam e resposteiros que correm p’ra revelação do presépio.
A missa decorre solene. Mas, logo que finda, não há em todo o mundo cenas mais enterenecedoras do que essas da evocação da Gruta de Belém e de dar a beijar o Menino, ao longo da grade, entre cânticos e incensos”.
Decorridos oito dias sobre a santa noite de Natal, logo outra noite, igualmente santa, cai sobre o último dia do ano, p ‘ra novas festas que ainda hoje guardamos na memória, e aqui recordamos com saudade.
Escreveu Carreiro da Costa: “Todos os sinos das Ilhas repicam então nessa noite p’rá cerimónia do Te-Deum. As igrejas enchem-se de fiéis e os fiéis enchem-se de alegria e de esperanças. O menino volta a ser beijado entre luzes e incensos e, a à saída, dão-se os Bons Anos.
Mas as tradições dessa noite não ficam por aqui, daí os momentos, são as Janeiras que se cantam por toda a parte. Quase todas as violas e guitarras, quase todos os realejos e os ferrinhos saem à rua nessa noite, acompanhando as mais alegres cantorias.
São serenatas saudáveis que se repercutam por montes e vales, como hossanas e glórias que enchem as almas e alegram os espíritos. Pois que as Janeiras, se são despedidas do ano velho, são também mensagens de boas-vindas do ano que chega, cheio de anseios de promessas.
E os pequenos e graciosos quadros da quadra de Natal, em terras dos Açores, só terminam pelos Reis com novas cantorias a horas mortas da noite. E se a noite vai em festa, mais em festa se seguirá o dia. As músicas rompem alvoradas do alto das torres, as missas perfumam-se de incenso, os presépios conservam ainda o seu viço, e o Menino volta a ser beijado por quantos os querem.
Em diversas localidades açorianas organizam-se cortejos em que figuram os Reis Magos. As ofertas recolhidas vão dispostas como se todos, de verdade, fossem a caminho da Gruta de Belém.”