Lembranças Antigas do Açúcar Micaelense


Por: Ferreira Moreno

Já tive a oportunidade de discorrer, este espaço, acerca da introdução e cultura da cana-de-açúcar na ilha da Madeira. Viajando agora à açoriana ilha de Santa Maria, Gaspar Frutoso deixou dito: “Neste tempo, para fazer plantar canas de açúcar na ilha, e fazê-lo como no da Madeira, mandou o Infante D. Henrique a ela um mestre António Catalão, o qual as plantou e fez plantar logo no princípio, e deram-se muito boas, que trouxeram a moer nesta ilha de São Miguel, em Vila Franca, e fez-se delas muito bom açúcar, mas pela pouca curiosidade dos homens, ou por não haver regadias, ou pelo pouco poder, cessou a granjearia delas.” (Saudades da Terra, Livro III, página 7, Edição 1998).

Frutoso diz-nos ainda que este mestre Catalão “veio casado à ilha e pediu dadas a el-Rei, e faleceu de mais de cento e dez anos, deixando dois nobres filhos.”
E nada mais sabemos a seu respeito, nomeadamente em relação à cana sacarina em S. Miguel. No entanto, Gomes Eanes de Zurara (1420 – 1474) nas linhas finais do capítulo 83 da sua “Crónica da Guiné”, deixa entrever que o Infante D. Pedro, (Duque de Coimbra e irmão do Infante D. Henrique), teria de algum modo apoiado a empresa do açúcar ao empossar o comendador Gonçalo Velho com “todo o espiritual e temporal da outra ilha, e mais da ilha de S. Miguel que lhe deixou o dízimo e a metade dos açúcares.”
Permitem-me expressar, neste momento, a minha gratidão ao meu ilustre compadre, Dr. João Botelho (Westport, MA), que tão gentilmente me mimoseou com uma cópia da “Crónica da Guiné”, publicada em 1973. Trata-se duma edição modernizada, segundo o manuscrito de Paris, com introdução, notas e glossário de José de Bragança.
No testemunho de João Marinho dos Santos, a produção açucareira nas ilhas terá atingido níveis apreciáveis, se bem que muito inferiores aos da Madeira. (Os Açores nos séculos XV e XVI, Volume I). No terceiro volume do “Arquivo dos Açores” (Páginas 200 – 201) deparamos com um alvará, subscrito por D. Manuel em Almerim, aos 10 de Julho de 1510, em que se dá conta da Madeira ter produzido setenta mil arrobas de açúcar em 1508, enquanto S. Miguel o total cifrou-se em vinte mil arrobas em 1509.
Em 1551, portanto já no reinado de D. João III, o Ouvidor de S. Miguel, de nome Manuel Numes Ribeiro, encarece a necessidade de prover Ponta Delgada com uma fortaleza p’rá defesa do respectivo porto, “a qual fortaleza é agora mais necessária por causa do grande crescimento em que vai a ilha com os açúcares que agora se plantam e querem já fazer.”
(Arquivodos Açores, Volume II, Páginas 18 – 19). Na carta enviada ao rei, o ouvidor elucida: “Já aqui vieram, por duas ou três vezes, naus francesas, que tomaram alguns navios, e um deles com 27 pessoas, em que entravam 9 mulheres, do qual navio e gente não há nenhuma nova e há mais de 10 meses que o tomaram.”
Confesso que não consegui precisar, com a máxima exactidão, a data da introdução da cultura, e subsequente indústria, da cana-de-açúcar em S. Miguel. Há quem diga ter sido nos finais do terceiro quartel do século XV, e há quem aponte os meados do século XVI. Igualmente há quem afirme que a “cana doce” experimentou uma brusca quebra nas primeiras décadas de Quinhentos, registrando-se a recuperação desta cultura à volta de 1540.
De Gaspar Frutoso resta-nos a seguinte “lembrança” que nos legou, e que se encontra exarada no capítulo 58 do Livro Quarto das suas “Saudades”...
Aparentemente, uns mercadores madeirenses alojaram-se na “Residencial” dum certo Sebstião Piers, natural de Guimarães e morador em Vila Franca do Campo. Ao despedirem-se, os mercadores ofereceram algumas canas-de-açúcar à mulher do estalajadeiro. Esta, por sua vez, plantou-as no quintal, e ao vê-las crescer “perfeitas e formosas”decidiu transferi-las p’ra um cerrado na Abegoaria, donde se começaram a espalhar e repartir por muitas pessoas de Vila Franca, tais como Lopo Anes de Araújo, Cristovão Dias, Manuel Lopes e Marcos Dias.
Ficou então determinado extrair o sumo das canas e produzir açúcar. P’ra tanto contrataram um Fernão Vaz, natural da Madeira, casado e morador em Ponta Delgada, o qual construiu o primeiro engenho, ajudado por um Diogo Gomes, morador na Relva, mas que havia residido na Madeira, e se ofereceu p’ra “temperar e purgar” o açúcar. Outros indivíduos apareceram em cena, dando o seu contributo p’ró desenvolvimento comercial da indústria açucareira, incluindo o supramencionado Lopo Anes de Araújo, “que mandou buscar à ilha da Madeira um navio de cansa p’ra plantar.”
Em breve, novos engenhos foram instalados em Água d’Alto, Água de Pau, Ribeira Grande, Maia e Furnas. Porém, volvidos alguns anos, extinguir-se-ia a indústria sacarina micaelense, devido à ganância do lucro, à doença dos canaviais e à falta de lenha p’ra manter as fornalhas dos engenhos.