O Padre Queixudo e o Pirata Almeidinha (1)


Por Ferreira Moreno

O elucidativo artigo "Cinco Dias na Ilha do Corvo ", extraído da Collecção de Romances Originaes, (vol. II, pág. 202-227, Horta 1877), da autoria do faialense António de Lacerda Bulcão, encontra-se transcrito no "Arquivo dos Açores", (vol. XI, pág. 544-557).

Descobri a identidade insulina do autor através de Carlos Alberto Medeiros, (A Ilha do Corvo, pág. 63, Ed. 1987), ao mencionar que "o faialense António Bulcão esteve no Corvo em 1842. "Aliás o próprio Bulcão confirma tal referência nos seguintes termos:

"Em Julho de 1842, fui mandado em comissão às ilhas das Flores e Corvo, a bordo da escuna de Guerra "Amélia" de que era comandante o distinto oficial da nossa Marinha, António Sérgio de Sousa, hoje visconde."

Ao tempo, Bulcão contava apenas 20 anos de idade, e é ele quem nos descreve a ilha do Corvo desta maneira:

"O Corvo é apenas um rochedo a pique inabordável, batido pelas vagas, misterioso escolho das frágeis embarcações, que em noite tempestuosa, perdido o rumo, ou levadas pela violenta corrente do golfo envoltas na obscuridade, esbarram, despedaçando-se contra os rochedos, sem salvação de muitas vidas, que nas terríveis agonias da morte, ali revoteam, sumindo-se no abismo, sem que um único fragmento denuncie, minutos depois, o drama tenebroso que o génio da tempestade cavou naqueles mares."

Chegado e desembarcado no Corvo, Bulcão ficou hóspede do senhor padre vigário, " que apesar de contar perto de 80 anos, veio esperar-nos ao porto, e com expressão de candura e bondade, ofereceu-nos a sua casa para onde nos encaminhamos. Causava pasmo ao ver aquele santo homem, de fisionomia respeitável apesar da sua idade avançada, caminhar sem dificuldade e sem auxílio, no escabroso caminho que pisávamos: risonho, com voz pura e ingénua, pedia amiudadas vezes desculpa da frugal hospedagem, que encontraríamos numa povoação pobre e falta de todos os recursos."

O jovem Bulcão, no entanto, ao ver-se sozinho naquele isolamento, sentiu-se abandonado e triste, entrando a soluçar "como criança arrebatada ao seio materno. "Foi, então, que o vigário notando o sofrimento, dirigiu-lhe palavras de conforto, em voz evangélica e suave: " Na sua idade é necessário ter coragem. O que está sentindo, já eu o senti nos primeiros dias que aqui cheguei. Todavia resignei-me e vai p'ra 60 anos que resido entre esta pacífica e virtuosa gente."

E o jovem Bulcão confessa: " Levantei espantado os olhos para aquela imagem da resignação. Contemplei com veneração a fisionomia irradiada de luz celeste daquele santo mártir do dever. E comovido, cheio de respeito, baixei envergonhado a cabeça, e quase de joelhos beijei a mão do virtuoso pastor (…)E depois de acompanhar o vigário nas suas orações, adormeci com o coração tranquilo, sem as comoções desagradáveis que antes me haviam atormentado."

Infelizmente o autor, no seu artigo, não revela o nome do sacerdote, mas tão somente insiste na alcunha de Vigário. Por seu turno, o abalizado historiador padre Júlio da Rosa, (A Cidade da Horta, Tomo I, pág. 348, Ed. 1989), servindo-se das informações que lhe foram transmitidas pelo Padre Eugénio Coelho Rita (pároco no Corvo) e devidamente corroboradas pelo pai do Padre Rita, menciona o nome do jorgense padre Queixudo, "que paroquiava a ilha do Corvo", na data (1819-20) em que decorreu o episódio com o pirata Almeidinha, sobre o qual tenciono discorrer na crónica da próxima semana.

Creio, porém, que QUEIXUDO seria simplesmente um apelido popular, visto que os irmãos Joseph e Henry Bullar, que visitaram o Corvo em Abril de 1839, tecem as mais elogiosas referências ao padre do Corvo e vigário da ilha - o reverendíssimo senhor João Inácio Lopes, "homem cujo barro, simples e honesto, é talvez mais bem temperado do que o dos mais esmerados espécimes de porcelana." ( Um Inverno nos Açores & Um Verão no Vale das Furnas, Cap. 24, pág. 253, Ed. 1986).

E prosseguindo na narrativa, acrescentam: "Era o padre Lopes homem corpulento, de cerca de 70 anos, de seis pés d'altura e um pouco curvado p'la idade. Cabeça calva, com alguns anéis de cabelo branco aos lados, olhos húmidos e míopes, feições macias, indicando paz de espírito. Todos falavam bem do bom velho. Os homens dos barcos chamavam-no "o pai da ilha" e olhavam-no com respeito quando ele lhes falava. Os habitantes da vila, que iam a casa dele, tinham-no pelo patriarca da terra, curvavam-se e beijavam-lhe a mão, que ele dava."

Reservo p'ra próxima crónica a história das relações entre o padre e o pirata. Até lá:

Quem me dera ser do Corvo,
Ou do Corvo ter alguém;
Quem me dera ter a graça
Que a gente do Corvo tem.

Tenho um amor no Corvo,
Outro na ilha das Flores,
Outro amor em S. Miguel,
Oh! Que três lindos amores.