Por: Ferreira Moreno
Admitindo embora que o tema proposto p’ra
esta crónica ocasione instantânea repulsa em ânimos
extremamente sensíveis, todavia o facto permanece que pulgas
e piolhos co-existem na sociedade humana. A nocividade de ambos
é irrefutável, e a sua incontestável presença
predomina em lugares insalubres. Que a pulga que o piolho são
companheiros inseparáveis de quem teime em não observar
as regras imperativas da mais rudimentar higiene.
Não é este, porem, o caso que me levou a encarreirar
na pesquisa de pulgas e piolhos.
Simplesmente julguei que teria a sua graça e interesse
partilhar as insinuações caricatas e uns laivos
folclóricos, apontando uma determinada afinidade entre
a pulga e o piolho.
O Dr. Teófilo Braga faz-lhes referência da seguinte
maneira: Piolho na lama / Pulga na cama / Dá um pincho
/ Põe-se em França.” (Cantos populares do
Arquipélago Açoriano, Página 180, Edição
da Universidade dos Açores, Ponta Delgada, 1982).
Passo agora a apresentar, com a devida vénia. Algumas quadras
recolhidas pelo Dr. Leite de Vasconcelos e incluídas em
“Tradições Populares de Portugal”, (segunda
edição, revista e aumentada), às quais igualmente
ajuntarei outras mais que, por sua vez, o saudoso Dr. Carreiro
da Costa coligiu do cancioneiro popular açoriano e transmitiu
em 1947 na série “Tradições e Costumes
& Turismo.”
Reproduzo abaixo, lado a lado uma quadra continental e outra
insular:
De Lisboa me mandaram
Um presente com seu molho:
As costelas duma pulga,
O coração dum piolho.
De Lisboa me mandaram
Um piolho de presente,
C’uma fitinha no rabo
Que fazia rir a gente.
De seguida, outro par de quadras, a primeira recolhida no Continente
pelo Dr. Vasconcelos, e a segunda recolhida na ilha Terceira pelo
Dr. Luís da Silva Ribeiro:
A pulga e o piolho
Andam na várzea a sachar:
Lá vai o percevejo
C’o a cesta do jantar.
A pulga mais o piolho
Foram ao mar a lavar;
A pulga foi aos saltinhos,
O piolho a nadar.
Reveste-se de certa curiosidade a intromissão do percevejo
nos padecimentos da pulga e do piolho, tal que está expresso
no seguinte par de quadras:
Tenho um piolho doente,
Uma pulga empalada,
Também tenho um percevejo
C’uma costela quebrada.
O piolho está doente,
A pulga está combalida,
Aí vem o percevejo
C’o a espinhela caída.
Novamente, outro par de quadras de origem diversificada (Continente
e Ilhas):
Uma pulga deu-me um coice,
Deitou-me abaixo da cama:
Não há coisa que me agrade
Como uma mulher mediana.
O meu amor pequenino,
Fui à cama, não lo acho:
Uma pulga deu-lhe um coice,
Revirou-se da cama abaixo.
Semelhante a estas duas quadras, Carreiro da Costa oferece-nos
esta: “Prantei-me a dormir a sesta / Á sombra duma
formiga / Veio a pulga deu-me um coice / Ninguém me julgava
viva.”
Por seu turno, Leite de Vasconcelos vem ao nosso encontro com
um pitoresco par de quadras de causar inveja a uns e de pedir
socorro a outros:
A pulga é o bicho negro,
Tem os dentes de marfim,
Dorme no meio das moças,
Quem me dera ser assim!
Santa Luzia do Couto,
S. Mateus de Mandaíl,
Tirai os dentes às pulgas,
Que me não deixam dormir.
De volta com Carreiro da Costa, eis a transcrição
duma sextilha que ele recolheu durante um “Pézinho”
no Vale das Furnas, onde se dá conta que até p’rá
Igreja o piolho e a pulga vão juntinhos como um par de
namorados: “O piolho mais a pulga / É a coisa que
ninguém julga / Foram à missa às Calhetas
/ Por causa das armadilhas / O piolho ia de andilha / E a pulga
de muletas.”
A concluir esta cantilena entre pulgas e piolhos, deixo-vos com
a recordação das cantigas que aprendi nos meus tempos
de criança nas ilhas:
Se tu vistes o que eu vi
Na canada das três voltas:
Um piolho em cuecas
Sem poder calçar as botas.
Se tu vistes o que eu vi
Na canada dos dois litros:
Uma pulga d’olhos azuis
A brigar com dois mosquitos.
Se tu vistes o que eu vi
Lá na igreja da Matriz:
Uma pulga muito catita
C’uma argola no nariz.
Se tu vistes o que eu vi
Lá p’rós lados d’Algarvia:
Uma pulga com cara de homem
A fazer grande gritaria.
Se tu viste o que eu vi
Lá p’rás bandas da Maia:
Uma pulga dançando o Vira
Vestida de mini-saia.
Se tu vistes o que eu vi
Lá no alto das montanhas:
Uma pulga em cima doutra
Apanhando boas castanhas.
Se tu vistes o que eu vi
Tu te rias como a mim:
Uma pulga a tirar água
Outra a regar um jardim.
Se tu vistes o que eu vi
Ficava admirado:
Um piolho numa festa
De bordão enconteirado.
Se tu vistes o que eu vi
No império do Zé Rita:
Uma pulga e um piolho
A dançar a Chamarita.
Se tu vistes o que eu vi
Já aqui na Califórnia:
Um percevejo em ceroulas
Beijando a Bela Aurora.
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