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Por Adelina Pereira
A LENDA DO REI RAMIRO - Os Amores Desencontrados na Toponímia
Nortenha
V.N. de Gaia - Rua do Rei Ramiro (margem sul do Rio Douro): Miragaia,
Porto (margem norte)
Após o Séc. V e a invasão
pelos os sarracenos, a configuração política
da Península Ibérica sofreu inúmeras alterações,
pois a definição das fronteiras e nomenclatura dos
estados ou reinos de então flutuavam dependia dos constantes
avanços e recuos, conquistas e reconquistas dos monarcas
cristãos e mouros, cada qual empenhado, sob a égide
do Cristianismo e Islão, na tomada de mais terras e consolidação
do poder quimérico temporal.
O feudalismo atribuía a estes jogadores do destino geográfico
e humano o direito de dispor, a seu belo prazer, das vidas dos
seus soldados a soldo e sujeitos, sujeitando-os à privação
e morte por um mero capricho pessoal. Muitas seriam as vezes que
o povo adormecia sujeitos de um determinado rei e acordavam na
manhã seguinte a um qualquer batalha, vassalos de um outro
de raça e fé distintas.
Nestes tempos tumultuosos, reinava na Galícia, que incluía
então a região da actual cidade do Porto, um certo
rei cristão de nome Ramiro. Segunda reza a estória,
era habitual o rei cristão e sua comitiva banharem-se na
margem norte do Rio Douro, onde o destino quis que, certo dia,
Ramiro avistasse a formosa princesa moura, Zahara, irmão
do rei Mouro, Almansor, e senhor da margem sul, nas suas abluções
em companhia das suas aias. O Rei Cristão perdeu-se de
amores pela bela princesa moura e tal era o fulgor da sua paixão,
que, esquecendo sua fé monogâmica e os seus laços
matrimoniais com a sua esposa, a rainha Gaia, atreveu-se pedir
a mão de Zahara ao seu rival muçulmano, o senhor
da outra margem. Este negou o pedido, alegando que Ramiro professava
uma outra fé e a Princesa Zahara estava prometida em casamento
a um outro seu par. Inconformado com a decisão do mouro,
Ramiro organiza uma expedição à outra margem,
e rapta a princesa Zahara, o que indignou a sua esposa, Gaia.
Esta, querendo vingar-se do marido infiel, envia uma mensagem
a Almansor, comunicando estar disposta a juntar-se a este. Assim
foi. Uma contra expedição leva a rainha ultrajada
para o corte do Mouro.
Na boa tradição machista dos tempos
e região. O Rei Ramiro, embora absorvido pelo seu amor
pela bela moura, sente a testa a pesar sob os proverbiais "chifres"
que incomodam até o esposo mais infiel! Lidera, de imediato,
uma excursão nocturna para a actual Afurada, onde esconde
seus homens e embarcações. Disfarçado de
mendigo dirige-se ao castelo de Almansor onde na fonte na cercania
dos portões trava conhecimento com uma serva, que, ao que
parece, estaria incumbida de portar água à hóspede
cristã do Rei Mouro. Ramiro logra introduzir o seu anel
pessoal no cântaro, na esperança que Gaia o reconhecesse.
Esta, ao ver o anel pede à serva o que se tinha transpirado
junto à fonte. Encontra-se com o seu marido e o aconselha
a ocultar-se nos seus aposentos, mas logo avisa Almansor, por
quem se tinha apaixonado, da presença de Ramiro no castelo.
Após a sua captura, Almansor pergunta-lhe
o que este faria se estivesse no seu lugar, ao qual Ramiro ripostou
que o sentenciava à morte no meio de grande suplício,
abrindo os portões do castelo para que todos pudessem testemunhar,
mas não sem ofertar ao seu prisioneiro um último
opíparo manjar e de seguida, fazê-lo soprar na trompa
até que ele perdesse o fôlego. E assim ordenou Almansor
que Ramiro tivesse o fim que ele próprio concebera. Ramiro,
farto, sopra a trompa, o sinal de ataque pré estabelecido
com os seus homens, os quais se encontravam escondidos nas imediações
do castelo. Com os portões do castelo abertos, estes entram
e atacam as tropas desprevenidas do rei mouro.
Na escaramuça que se segue, Ramiro mata Almansor e leva
Gaia e a serva moura de regresso para a outra margem. Ainda no
rio, Gaia mira, desolada, o castelo de Almansor em chama, e confessa,
no maior pranto, o seu amor pelo mouro morto e a felicidade efémera
que com este conhecera. Instigada pelo próprio filho, Ordonho,
Ramiro ordena a morte da rainha Gaia por traição,
tendo a trespassado com a sua espada segundo uma versão
ou atado os pés e lançado ao Rio Douro, segunda
uma outra.
Se eu fui ali tão ditosa,
se ali soube o que era amor,
se ali me fica a alma e a vida
Traidor rei, que hei-de eu mirar?
- Pois mira, Gaia! E dizendo,
da espada foi arrancar;
Mira, Gaia, que esses olhos
Não terão mais que mirar. - Almeida Garrett
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