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Por Ferreira Moreno
O episódio romântico, que ora tenciono
transcrever, foi narrado originalmente por Gaspar Frutuoso ( 1522-91)
no Capítulo 36 do livro II das " Saudades da Terra"
e ocorreu na Ilha da Madeira durante o reinado de D. João
III ( 1521-57), adentro ainda do primeiro século do povoamento
do arquipélago madeirense.
Corria o ano de 1531, e na Lombada do Arco vivia D. Isabel de
Abreu, viúva de João Roiz de Noronha, que se havia
distinguido na Índia ao serviço de El-Rei. Não
houve filhos deste casamento.
Perto dessa Lombada morava António Gonçalves da
Câmara, filho de Pedro Gonçalves da Câmara
e D. Joana d'Eça (e não Joana de Sá), camareira-mor
da Rainha D. Catarina, esposa de D. João III.
Aparentemente, António ficou emaranhado em amores com
a encantadora viúva, e ambicionava (secretamente) assenhorear-se
das propriedades de D. Isabel. E, uma noite, com a cumplicidade
duma moura (criada de D. Isabel) a quem intrujara com uma gorjeta,
intrometeu-se por uma janela aberta e entrou nos aposentos da
viúva.
D. Isabel, que era mui virtuosa e discreta, reagiu com natural
espanto e ficou tolhida de surpresa ao ouvir a declaração
amorosa. Com palavras brandas, conseguiu convencê-lo que
lhe não convinha fazer casamento daquela maneira, convidando-o
a voltar pela manhã do outro dia, a fim de ajustarem os
preparativos p'ró futuro enlace matrimonial.
Fazendo-se acompanhar de meia centena de cavaleiros da Ponta
do Sol e Ribeira Brava, com grande pompa e aparato, lá
apareceu o apaixonado António p'ra receber a viúva
em cumprimento da promessa. Mas D. Isabel havia formulado outros
planos, pois que apareceu rodeada pelos seus homens de armas e
recusou aquiescer à proposta nupcial. Encavacado e despeitado,
António retirou-se p'rá sua fazenda na Calheta,
embarcando-se dali a poucos dias p'ra Lisboa, onde andou por dois
anos, ao cabo dos quais regressou à Madeira.
Ora aconteceu que, um dia, quando D. Isabel (ricamente ataviada
e muito acompanhada) se dirigia p'ra um baptizado na Calheta,
António saiu-lhe no caminho com gente armada e levou-a
p'rá sua fazenda.
O rapto, evidentemente, provocou um escândalo descomunal.
Imediatamente, Águeda de Abreu Esmeraldo, irmã de
D. Isabel, mandou recado ao Ouvidor da Capitania do Funchal, que
se meteu a caminho com gente armada no intuito de libertar a prisioneira.
Travou-se uma escaramuça de parte a parte, e receando
iminente mortandade, António e Isabel assomaram ambos a
umas varandas, assegurando ao Ouvidor que tencionavam consorciar-se.
E p'ra favorecer ainda mais a situação, D. Isabel
sugeriu ao António que convidasse o Ouvidor e companhia
p'ra jantar antes de rumarem ao Funchal. António condescendeu
e, de imediato, mandou abrir as portas, dizendo que entrassem
todos p'ra comerem e descansarem.
No entretanto, durante o convívio, D. Isabel acercou-se
do Ouvidor e segredou-lhe que, de facto, estava prisioneira e
desejava a sua liberdade. E conseguiu libertar-se saindo com o
Ouvidor, no meio de 150 homens de guarda, que acabaram for refugiar-se
na Lombada dos Esmeraldos, visto que já anoitecia.
Vendo-se António, " com aquele virtuoso e prudente
engano, esbulhado da sua posse e despojado da esposa, que tanto
amava e desejava", naquela mesma noite ajuntou dezenas de
homens armados e foi cercar a fazenda da cunhada Águeda,
(Lombada dos Esmeraldos), dando-se início a uma autêntica
guerra civil, que se alastrou por oito dias e só terminou
após a troca de negociações. Fizeram-se as
pazes e ficou determinado seguir avante com os esponsais.
Mas desta vez, recordando-se certamente do velho ditado de que
" o frade não leva três em capelo",
António exigiu a entrega de reféns até ao
completo cumprimento da derradeira promessa. Quando tal sucedeu,
organizaram-se grandes festas e bodos, onde se gastaram ricos
e esquisitos manjares de toda a sorte, " como os sabem muito
bem-fazer as delicadas mulheres da ilha Madeira, que (além
de serem comummente bem assombradas, muito Formosas, discretas
e virtuosas) são estremadas na perfeição
delas e em todas as invenções de ricas coisas, que
fazem, não tão somente em pano com polidos favores,
mas também em açúcar com deliciadas frutas."
A lua-de-mel, porém, foi sol de pouca dura, pois que a
coscuvilheira Águeda de Abreu reclamou junto de Sua Alteza
Real e o Rei fez seguir p'rá Madeira o desembargador Gaspar
Vaz, acompanhado de soldados, a fim de prender António
Gonçalves Câmara. Este, ao ter conhecimento da provisão
real, " mandou levar sua mulher D. Isabel, secretamente,
ao mosteiro das freiras do Funchal, e pôs-se a monte com
muita gente."
O desembargador, gorados os seus esforços em prender o
fugitivo, regressou ao Reino. Neste entrementes António
escapuliu p'rás Canárias e daí p'ra África,
" onde serviu a El-Rei muitos anos com muita gente e cavalos,
à sua custa." Por todos estes serviços e despesas,
bem como por todos os rogos e petições de sua mãe,
D. Joana d'Eça (camareira-mor da Rainha D. Catarina), obteve
finalmente perdão do Rei D. João III e foi autorizado
a regressar ao Reino.
Após o julgamento presidido por D. Martinho de Portugal,
segundo bispo do Funchal (1533-47), o galante aventureiro António
Gonçalves da Câmara passou a viver com a sua amada
D. Isabel por alguns anos ainda, no fim dos quais ela viria a
falecer. Depois de viúvo, António voltou à
Corte onde andou por mais alguns anos. E em 1555, pouco mais ou
menos, " tornou de Lisboa à ilha Madeira, casado segunda
vez com D. Margarida de Vila Verde, dama da Rainha e filha de
D. Pedro de Vila Verde (capitão dos ginetes), trazendo-a
consigo, " p'rá sua Lombada do Arco, " que é
uma grossíssima fazenda."
Organizaram-se verbenas de estrondo e jantaradas pantagruélicas,
incluindo " grandíssimas festas de muitas lutas, de
ricos prémios, grandes fogaças, grossas dádivas,
exercícios militares e danças."
E aqui termino esta ligeira narrativa acerca dum romance, de
amor e paixão, rapto e intriga, ocorrido na ilha da Madeira
no decurso do século XVI, e que Gaspar Frutuoso deu-se
ao cuidado de transmitir p'rá posteridade no Capítulo
36 do Livro II das " Saudades", onde ser-vos-á
possível recolher todos os pormenores nas páginas
96-99 da mais recente e luxuosa edição publicada
pelo Instituto de Ponta Delgada em 1998.
Adeus,
Ilha da Madeira,
Onde me teve minha mãe.
Adeus, canteiro de flores
Onde nasceu o meu bem. |
Eu amei uma freira,
Que me dava bons docinhos;
Mas a grade não deixava
Lograr-lhe os seus carinhos. |
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= Ferreira Moreno =
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