Os pescadores e a mudança do santo


Por Ferreira Moreno

Na sua monografia histórica “Ponta Delgada”, publicada em 1946, o Dr. Urbano de Mendonça Dias (1878-1951) aludiu a um episódio pitoresco ocorrido ao tempo da transferência processional da imagem de S. Pedro Gonçalves, da Ermida do Corpo Santo p’ra Igreja do Convento da Graça. Fiz-lhe uma ligeira referência em “Narrativas do Corpo Santo”. Tenciono concluir agora mais pormenores acerca de tal ocorrência.
Convém relembrar que essa ermida, presentemente desaparecida, já existia no tempo de Gaspar Frutoso, era bem fabricada e provida “onde os mareantes têm sua rica confraria”. (Saudades, Livro IV, Cap. 43) Diogo das Chagas (1575-1667) faz-lhe a devida referência no seu “Espelho Cristalino” Agostino de Monte Alverne (1629-1726) informa-nos que a profissão religiosa de Isabel de Miranda teve lugar nessa ermida aos 20 de Janeiro de 1588 (Crónicas, Volume II, Cap. 40)
Através de Chaves e Melo ( A Margarita Animada), Edição de 1723, somos assegurados da existência da ermida em pleno século XVIII. No entanto, no século seguinte já apresentava sinais de ruína. Foi o que consegui deduzir das palavras do Dr. Urbano de Mendonça Dias ao apontar que a confraria dos pescadores teve a sua sede, até 1862, na Ermida de S. Pedro Gonçalves, no Corpo Santo, “mas como ela se arruinou e não houve ensejo de a restaurar” a imagem do santo foi levada p’ra Igreja da Graça. Ora aqui levanta-se um problema, pois que a data de 1862 não me parece viável. E já me explico sucintamente. Em 1832 foi decretada a extinção da maioria das ordens religiosas açorianas, suprimindo-se os conventos e profanando-se as respectivas igrejas. Por exemplo, e de imediato, o convento de S. João entrou a alojar a soldadesca liberal, e os cavalos encurralaram-se na igreja, Em 1834 a Santa Casa da Misericórdia mudou-se p’ro convento de S. Francisco.
Relativamente ao convento da Graça, a Biblioteca Municipal e o Arquivo Distrital começaram a funcionar ali em 1843, seguindo-se o Mercado Agrícola em 1852 na cerca conventual. O Liceu Nacional foi instalado nas dependências do convento em 1853, enquanto o recinto da igreja serviu de sala p’ras audiências do Tribunal Judicial.
Manuel Ferreira, amigo de longa data, na sua preciosa colectânea de contos regionais, que publicou em livro em 1979 ao título “O barco e o sonho”, menciona o dia 3 de Maio marcado p’ra mudança da imagem de S. Pedro Gonçalves, da ermida do Corpo Santo p’ra igreja da Graça. Porem, não menciona em que ano.
Procurei, então, ler nas entrelinhas. Ao tempo já se falava em construir uma doca, registando-se o lançamento das primeiras toneladas de pedra p’ro quebra-mar em 1862. Falava-se igualmente em melhorar a baixa da cidade, e a Câmara entrou a magicar maneira de expropriar os terrenos da já esburacada ermida do Corpo Santo.
P’ra mais ajuda ou desajuda, reinava grande desentendimento entre os membros da confraria. Por sua vez, os pescadores de Santa Clara andavam às turras com os pescadores da Calheta. Estes teimavam em levar a imagem p’ra Graça, e aqueles queriam o santinho na igreja de Santa Clara.
Ao fim e ao cabo organizou-se o cortejo p’ra mudanças e no navio-andor lá seguiu a imagem do padroeiro, atravessando a baixa da cidade, na rua dos Mercadores acima, subindo o adro da Graça e ficando no poiso reservado na igreja.
Foi nessa altura que, como labareda em pólvora, o escândalo rebentou. Eis a transcrição do episódio pincelado na narrativa de Manuel Ferreira.
“Um velho pescador de Santa Clara, o tio João Mateus, destacando-se dos homens da sua campanha e abrindo a custo entre os ranchos dispersos, avançou p’ra mordomia, aos tombos e as cotoveladas, e lavrou o seu protesto em alto e bom som, os olhos rasos de lágrimas a língua entra melada, num choro amargo e convulso. Tentaram acalma-lo, mas o pescador não atendia a conversas, nem a conselhos, tomba não tomba, num tremor, roxo do vinho e da ira, a mão no ar, em despedida, fôlego preso, num soluço profundo.
E blasfémia estalou cortante e raivosa, p’ra quem quis ouvir, todo ele num grito de fé revoltada e desespero final, bruto c’mas coisas brutas: “Oh! Meu senhor São Pedro. Oh grande São Pedro Gonçalves! De duas uma: ou sois santo ou não sois santo! Pois se sois santo, hoje aqui, amanhã lá em baixo... se não, se não ... puta que te pariu!”

Fui ao mar pescar de cana,
Apanhei uma garoupa;
Esta é p’ró meu prato,
Não sei se pescarei outra.

Já pesquei ao linguado,
Já pesquei ao camarão
Só não pesquei teus olhos,
E estavas mais de feição