Santo Cristo, Memórias & Propostas


Por: Ferreira Moreno

António Feliciano de Castilho (1800- 1875), juntamente com Almeida Garret (1799-1854) e Alexandre Herculano (1810-1877), “constitui um trio intelectual de grande notoriedade e de exepcional renome p’ró romantismo português.” Valdemar Mota, Escritos Sem Título, Número 4, Jornal “A União” de Angra).
Apesar da cegueira que o acometeu aos seis anos de idade, Castilho é ainda hoje considerado um dos mais fecundos escritores clássicos do seu tempo. No dizer do saudoso Padre Ernesto Ferreira, foi um homem cujos olhos se tinham fechado à luz do dia, mas cujo espírito irradiava lampejos de génio.” (Os três Patriarcas do Romantismo nos Açores, 1947). Castilho residiu na cidade de Ponta Delgada durante três anos (1847-1850). Por sua iniciativa, foram criadas na Ilha de S. Miguel escolas gratuitas, tanto de instrução primária como secundária. (José Andrade, A Face Humana da Toponímia, Ponta Delgada 2001).
Além de fundador da “Sociedade dos Amigos das Letras & Artes”, Castilho foi igualmente o redactor do jornal “O Agricultor Micaelense”, em cuja edição de Junho de 1848 apresentou uma curiosa proposta acerca das tradicionais Festas do Santo Cristo.
Devido à extensão do artigo, em contraste com a ligeireza desta crónica, tenciono transcrever parcimoniosamente algumas das passagens acerca da solenidade, “que reúne como uma só família em torno da antiga e devota imagem do Senhor Santo Cristo os habitantes da cidade, das vilas, das ladeias e casais de toda a ilha.”
Castilho escreveu que as suas reflexões “são endereçadas a tornar mais belo e útil um dia já de si tão útil e tão belo, com vantagens p’rós camponeses e p’rá agricultura.” Tanto assim que a proposta de Castilho sugere a promoção duma festa rural na véspera da festividade. Com toda a ilha reunida, seria admirável a realização de “uma exposição dos produtos agrícolas feita no meio daquele grande terreiro, em face do templo aberto, florido e iluminado.”
A véspera do Senhor Santo Cristo “tornar-se-ia tão interessante e aprazível, pelo menos como o próprio dia”, com a distribuição de prémios aos lavradores, e organização de jogos recreativos, provas de atletismo e equitação, ginástica e dança.
Na sua proposta, Castilho urge a construção de “uma albergaria alpenderada, ou abrigo qualquer pr’ós romeiros, que ali afluem aos milhares, dormindo ao relento e à chuva, como então muitas vezes acontece a tantos homens, mulheres e crianças, pernoitando promiscuamente acamadas, num adro e num terreiro, sem luz afora a das estrelas.”
P ‘ra salvaguarda quer da moral pessoal, quer da higiene pública, Castilho solicita à “piedosa administradora dos bens do Senhor Santo Cristo que deduza o necessário p’rá construção de uma pousada de peregrinos, e outra sobretudo de peregrinas.”
Como criteriosamente acentuou o próprio Castilho: “Os teres de Cristo nunca haverá sido empregados mais cristãmente.”
Aparentemente, de nada serviu a proposta de utilidade moral e social visionada por Castilho. Ouçamos o que a este respeito escreveu Francisco Maria Supico em Maio de 1907: “A véspera do Senhor Santo Cristo continuou a ser, como ainda é, arraial de fogo de vistas, iluminações, girândolas e música no Campo de S. Francisco, brilhantismo que se esvaiu como o fumo que exalou. E até pelo lado moral continuaram os milhares de romeiros da festividade a dormir ao luar quando o fazia e às invernias se Deus as dava, e na promiscuidade dos sexos. Veio melhorar muito isto a instituição, em 1886, do Albergue nocturno desta cidade, de gloriosa memória de sua instituidora D. Margarida de Chaves.
O estrondear de foguetório e de zambumbas por toda a manifestação de culto externo, à sagrada imagem, se satisfaria em épocas antigas, não correspondendo de modo algum às exigências do nosso tempo. Acabará fatalmente este culto, o que será um mal, pois assim fenecerá no coração popular a melhor flor da crença, se o não elevarmos, na pureza da fé cristã, à eminência social que deve atingir.
Com as dezenas de contos de reis que a casa comercial Luís Soares de Sousa gastou em estrondos e fumos pirotécnicos pr’á festejar o Senhor Santo Cristo, que coisas belas se não teriam realizado? (Escavações, Volume III, Edição 1995, Página 1178).
Guardarei p’rá próxima crónica as referências acerca dum “Papa-Sopas”, que se insurgiu violentamente contra o “Patriarca” António Feliciano de Castilho. Até lá:

Rezo ao Senhor Santo Cristo
As orações mais tocantes,
P’ra ele andar comigo
Por essas terras distantes.

A minha sorte no mundo
Não, Está nas mãos de ninguém:
Está nas do Santo Cristo,
Que à sua conta me tem.