A Saudade na Arte de Cozinhar


Por: Ferreira Moreno

No boletim da Casa dos Açores da Nova Inglaterra, (Vol. I nº 18, Março - Abril 2003), o nosso bom amigo João Carlos Tavares apresentou elucidativas referências a várias peripécias verificadas no chamado “mercado da saudade”, com subsequentes prejuízos na entrada e distribuição de produtos açorianos nos Estados Unidos.
Aparentemente, tal deve-se às exigências impostas pelos serviços aduaneiros norte-americanos, a que infelizmente (mas obrigatoriamente) devemos adicionar o deficiente aspecto e embalagem das respectivas mercadorias. Como ajuizadamente acentuou o João Carlos, incumbe aos Açores apostar na apresentação e qualidade dos seus produtos de exportação...
Neste caso, por exemplo, temos os inhames acerca dos quais o João Carlos transcreve uma passagem da “Revista Michaelense” (dos anos 20 do século passado), apontando que, naquela altura, os nossos inhames (em termos de tonelagem) eram o produto que mais se exportava p’rás comunidades portuguesas na América, com uma vantagem enorme sobre os outros. Igualmente, estou a par dum relatório da Gerência do Grémio dos Exportadores das Frutas e Produtos Hortícolas da Ilha de S. Miguel, referente ao ano de 1968, registrando o envio de noventa toneladas de inhames p’rós Estados Unidos.
Conforme observou Carreiro da Costa, “tamanha quantidade, no entanto, não pode considerar-se de vulto, se a compararmos com as exportações doutros anos, como aqueles anteriores à última guerra.” (Tradições, Costumes & Turismo, Julho de 1969).
Hoje em dia, porém, o inhame açoriano não é tão procurado pelos emigrantes como antigamente, por razões suficientemente óbvias e claramente expostas pelo João Carlos: Primeiro é que a qualidade não é garantida, os podres abundam o seu custo é altíssimo.
É ainda João Carlos quem confessa ter saboreado uns inhames-minhotos da Califorlândia, afiançando serem “uma autêntica delícia e de preço acessível.” Eu próprio sinto-me honrado em corroborar o seu testemunho, pois que (em anos passados) tive a oportunidade de cultivar inhames numa horta em San Leandro... e continuo a suspirar por eles!
Leo Pap, na edição de 1992 de “The Portuguese-Americans” (originalmente publicado em 1981), dá-nos conta do uso de pimenta, alho e açafroa, pelos emigrantes açorianos. E de facto, através do relatório do Grémio dos Exportadores (acima mencionado), ficamos a saber que, em 1968, foi enviadas p’rós Estados Unidos nove toneladas de alhos e 125 quilogramas de farinha de açafroa. Sem dúvida alguma, a açafroa é uma das coisas mais apreciadas pelas gentes das ilhas, e um dos mais frequentes condimentos da culinária açoriana.
A açafroa, realmente, é muito usada nos temperos das açordas, dos guisados e dos vários milhos sobretudo de peixes.
Podia falar ainda acerca da batata-doce, e das favas secas (com casca ou sem casca).
Favas com casca a fim de saboreá-las torradas ou guisadas; favas sem casca p’ra serem comidas igualmente torradas ou em caldos gostosos à moda da nossa terra de origem. Outra curiosidade, que não quero omitir e está apontada no citado relatório, tem a ver com os 360 quilogramas de pevides de mogango e de abóbora então exportados p’rós Estados Unidos.
Ora não é segredo p’rós meus leitores que estas pevides, assadas no forno e temperadas com sal, alho e pimenta, constituem um apreciado e tentador aperitivo, pelo que não é de admirar que tais pevides despertem saudades entre os nossos emigrantes.
Neste ligeiro desfiar de recordações sobre a arte de cozinhar, confesso que muito mais ficou por dizer. Em complemento, apraz-me transcrever o seguinte poema do meu ilustríssimo confrade nas lides jornalísticas, Manuel Calado, cujo livro “Frutos da Minha Lavra” foi recentemente publicado pela prolífica “Peregrinação Publications” do amigo José Brites.

É música alegre a voz dos frutos
Na cálida sinfonia do sol
Pomos frescos, virgens, impolutos
Em promessas de vida e arrebol.

Escondidos nas folhas, os pepinos
Parecem brincar como meninos
No jogo alegre das escondidas
E vermelhos, redondos, os tomates
Em profusão enchem açafates
São frutos que enchem as medidas.

O sol lá no alto, dardejando
E eu cá na terra; vou regando
Tornando possível o milagre
E na mesa o prato da salada
De pimenta e sal, um tudo nada
Oloroso azeite e bom vinagre.

São estes os frutos do meu quintal
Deste chão que eu transformei em horta
Milagre do Criador genial
Mesmo aqui em frente, ao pé da porta.

Quando colho os frutos no meu braço
Tarefa feliz e merecida
Aperto-os contra o peito, num abraço
Como se apertasse a própria vida.