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Por Adelina Pereira
Nos serões cálidos da minha adolescência
no sopé da Montanha da Mesa, no Cabo da Boa Esperança,
exercitei, nos intermináveis debates com o meu pai, as
minhas precoces certezas existenciais. Desde que me lembrou de
ser gente, o meu pai, madeirense da velha guarda, e na altura
um dos mais antigos emigrantes madeirenses a residir no Cabo,
era homem dotado de uma inteligência e perspicácia
aguda que, nos seus eloquentes silêncios sorumbáticos,
lutava com os seus demónios e temores, os quais por vezes
se faziam transparecer nas opiniões e ideologias, a meu
ver descabidas e destituídas de qualquer lógica.
Acreditava ele na superioridade das raças "brancas"
e era abertamente anti-semita. Contudo, a minha amada professora,
a solteira e muito britânica Miss Simpson, instigava, por
essa altura, nas suas vibrantes e fascinantes excursões
pela história, o meu entendimento do presente pela busca
do passado, para além dos parâmetros curriculares
do Cape Education Board, nas imensas prateleiras do vasto espólio
literário que a biblioteca do colégio possuía.
E lá, em algum tomo poeirento e amarelecido
pelo tempo, tive conhecimento de que os sobrenomes portugueses
que fossem nomes de árvores, flores ou frutos poderiam
indiciar alguma ascendência judaica. Armada com este novo
"saber", logo enfrentei o meu pai, cujo nome de família
era, de facto, Pereira, com este paradoxo comportamental e ideológico
óbvio, para vê-lo rubro e sem jeito, sem contra argumento
credível, ripostando "Não se deve acreditar
tudo que lemos!", sisudo conselho que, mais tarde, e noutros
contextos, me foi de indiscutível utilidade, tendo eu,
contudo, resistido aos seus preconceitos e pendores racistas.
A diáspora judaica esteve sempre intimamente entrecruzada
com a história de Portugal, desde os seus primórdios
até à subsequente diáspora lusitana pelos
sete mares, contribuindo, assim, em vastíssima medida,
para a miscigenação progressiva dos povos.
A lenda coloca os hebreus na península ibérica
há quatro mil anos. Hipoteticamente, estes viajaram com
os mercadores fenícios e gregos para aquelas partes, mas
a vaga de migração mais conotada com a vinda do
povo judeu para a região sucedeu no reino do Rei Salomão
(974-937 a.C.), homem versátil, dotado de múltiplos
talentos, que, além de seguir os preceitos de Yaweh de
reinar e administrar a justiça sapiente ao seu povo, arquitectou
a construção do magnífico templo de Jerusalém,
e, hábil estadista e diplomata, estendeu a influência
judaica pela região mesopotâmica, enriquecendo a
economia do seu reino, tendo coadunado toda esta intensa actividade
com uma prolífica vida amorosa da qual resultou um aglomerado
significativo de esposas e concubinas e numerosa prole!
A magnificência que Salomão projectou para o templo
de Yaweh exigiu que este enviasse exploradores e obreiros de mineração
para os vários quadrantes do mundo conhecido. Especula-se,
ainda hoje, que a sua busca de novas fontes de ouro e prata levaram
os judeus ao extremo sul do continente africano, tendo possivelmente
alcançado os abundantes filões auríferos
das actuais Zimbabwe e África do Sul, e cuja odisseia foi
imortalizada no místico romance histórico de Rider
Haggard, "King Solomon's Mines".
Outros receberam ordens do sábio soberano para viajar
sob a chefia do seu filho, Azer, até ás terras do
pôr do sol, Sefarade (Portugal e Espanha), com o mesmo propósito.
Embora possam faltar provas sólidas da
veracidade das histórias citadas acima, é do consenso
geral que a presença judaica sefardita na península
antecedeu a dos romanos, perdurando até aos nossos dias.
Conviveram com os Visigodos e Mouros nas subsequentes invasões
da região, tendo a longa permanência na região
sido referenciada no Concílio de Orleans e Toledo, em 538
e 633 DC, embora tenham sofrido a perseguição de
Recaredo, rei dos Visigodos, que lhes desejou impor a conversão
ao cristianismo.
Com o decurso do tempo, notou-se a assimilação
de nomes de origem árabe e espanhol na antroponímia
judaica, a qual atesta a convivência estreita existente
as várias comunidades de distintas religiões na
Idade Média.
Com a formação do reino português em 1143,
pelo Dom Afonso Henriques, inicia-se um período de relativa
estabilidade para os sefarditas portugueses, pois a sua presença
indubitavelmente enriqueceu o reino em quase todos os sectores,
facto que não passou despercebido aos monarcas da primeira
dinastia.
Uma das maiores protectoras e benfeitoras das comunidades judaicas
portuguesas foi a Rainha Santa Isabel, amante dos pobres e desprotegidos,
e uma das figuras mais carismáticas e emblemáticas
da nação portuguesa, cuja santidade jamais foi oficialmente
reconhecida pelos portugueses ou Vaticano, mas que for a proclamada
santa pelo marranos, (i.e. judeus convertidos, mas praticantes
dos ritos judaicos na clandestinidade) e que, a nosso ver, juntamente
com a excelsa inglesa, a Rainha Dona Felipa de Lencastre, pela
sua grandeza de alma e obras de benemerência, mais merecem
representar o generoso e resistente espírito feminino lusitano
na estatuária do Novo Mundo do que Catarina de Bragança,
a quem o destino ditou ser esposa do charmoso e mulherengo Carlos
II de Inglaterra, e à qual os ingleses devem o feito de
ter introduzido o "vício" nacional britânico:
o chá!
Com a união dos reinos de Castela e Aragão nas
pessoas dos Reis Católicos, Isabel e Fernando, inicia-se,
na vizinha Espanha, uma acérrima perseguição
aos judeus sefarditas espanhóis, pois a fé exacerbada
de Isabel, cujo poder político real excedia o do seu consorte,
levou a decretar em 1492 a expulsão de entre 130,000 a
300,000 judeus, alguns dos quais se juntaram aos cerca de trinta
mil judeus sefarditas então presentes em Portugal. Outros
refugiaram-se noutras regiões da Europa e Norte África.
Embora Dom Manuel fosse um dos monarcas mais tolerantes para
com os judeus, exigiu-lhes tributação exorbitante
numa tentativa de reforçar os cofres do reino para financiar
os seus projectos de colonização no além
mar e posteriormente, enviou cerca de dois mil crianças
judias, com idades compreendidas entre os dois e os dez anos,
para o "branqueamento" das raças nativas das
novas colónias portuguesas, as Ilhas de S. Tomé
e Príncipe, pois as condições inóspitas
das ilhas não incentivaram voluntários entre os
outros seus súbditos. Após um ano, havia cerca de
600 crianças sobreviventes, mas foi quanto bastou para
introduzir nestas ilhas africanas o legado sefardita.
O crescente conflito de interesses entre as potências ibéricas
no tabuleiro europeu de influências, despoletado pelos seus
empreendimentos marítimos e colonizadores, culminou numa
aliança luso-espanhola, pelo casamento do Rei Dom Manuel
I com a Infanta Dona Isabel, filha dos Reis Católicos,
numa tentativa de equilibrar as forças entre as duas nações.
Embora, até então, a coroa portuguesa tivesse usufruído
dos serviços de inúmeros judeus em postos de destaque
nos sectores mais relevantes estatais e sociais, Dom Manuel cedeu
ás pressões dos reis espanhóis, e com alguma
relutância, ordenou a expulsão dos judeus do reino.
Conhecendo a diligência dos seus súbditos judaicos,
reconhece que a sua perda representaria o declínio económico
e tecnológico do país, pelo que propõe a
conversão como condição para a permanência
no país, aos seus mais valiosos e produtivos súbditos,
a que muitos resistem.
Cerca de 20,000 resistentes aglomeram-se no cais, prontos para
partir sem renunciar à sua fé. O rei decretou que
estes comparecessem na praça principal de Lisboa, onde
ordenou ao Bispo de Lisboa que os baptizasse da sua varanda palaciana.
Declarou-os todos Católicos, apresentando, por altura do
esponsalício real, um país perfeitamente evangelizado
e aceitável aos seus poderosos sogros espanhóis!
Numa hábil manobra política, proíbe qualquer
inquérito pertinente à fé religiosa dos seus
súbditos "convertidos", proibição
que perdurou até ao advento da temível Santa Inquisição,
em 1536, a maior mácula de toda a história da Igreja
de Roma!
Mas este interregno de paz relativa mais consolidou e reforçou
a presença e influência judaica no tecido social
e legado genético da nação portuguesa, como
a actualmente conhecemos.
A perseguição dos judeus pelo Santo Ofício
levou ao êxodo progressivo de um grande número de
sefarditas para outros centros europeus, tais como Hamburgo e
Amsterdão, onde a sua cultura e conhecimento eram grandemente
apreciados, tendo os judeus portugueses prestado grande contributo
à medicina, arte, ciência, economia e filosofia.
Não esqueçamos Bento ou Barouk Espinosa, cuja obra
filosófica, A Ética, revolucionou o pensamento filosófico
e teológico europeu do seu tempo.
Muitos partiram para outras partes do mundo junto
de outros perseguidos, tais como os hugenots franceses, para colonizarem
as terras recém achadas da América e África.
É de salientar aqui a valentia da Invicta face à
Inquisição. Esta cidade desde sempre preservou o
poder popular real das suas gentes. Embora os oficiais dominicanos
do Santo Ofício se tenham instalado na zona da actual Rua
das Flores, e os arquivos da Casa do Infante estarem repletos
de processos e acusações de informantes e audiências,
houve uma única queima na Porta do Sol. Os portuenses sublevaram-se
e manifestaram a sua oposição ao hediondo espectáculo
tão fortemente que a Coroa e Clero não arriscaram
mais alguma queima nesta cidade, tal era a produtividade, peso
e poder dos portuenses na economia e finanças do reino,
tornando a judiaria na encosta de Miragaia um enclave relativamente
seguro e próspero.
Vestígios de um cemitério judeu na Ilha da Madeira
mais comprovam o papel preponderante dos judeus sefarditas na
colonização dos Açores e Madeira e nos Descobrimentos,
desde o seu início. Foram os seus cientistas e savants
que proporcionaram, em larga medida, o saber tecnológico
que viabilizou a navegação dos mares.
Sabe-se que Cristóvão Colombo conheceu o cientista
e cosmógrafo da corte portuguesa, José Diogo Mendes
Vezinho, que liderou a comissão incumbida de avaliar o
empreendimento proposto por Colombo para encontrar a passagem
ocidental para as Índias. É provável que
Colombo tenha aproveitado informação colhida junto
de Vezinho nas suas viagens pelo Atlântico, visto este ter
criado um novo calendário astronómico, tabelas estelares
e instrumentos de navegação melhorados.
Obteve mais dados úteis de Avraham Zacuto, matemático
e inventor judeu de Salamanca, que se refugiara em Portugal e
a quem se atribui a invenção do primeiro astrolábio
metálico e a elaboração de tabelas astronómicas
que precisavam as horas da ascendência dos planetas e astros
fixos, facilitando a localização na imensidão
do mar. Em suma, Colombo deve muito do seu empreendimento marítimo
ao saber acumulado dos inventores e matemáticos judeus
sefarditas ao serviço da corte portuguesa e espanhola.
Muita da influência e pressão exercida sobre Isabel
de Castela para sancionar e patrocinar a sua aventura, foi obra
dos judeus convertidos ou marranos que os soberanos espanhóis
mantinham ao seu serviço.
A origem genealógica e naturalidade do
navegador Colombo ainda se encontra envolta em acesa polémica.
Historiadores e estudiosos de Portugal, Espanha e Itália
o reclamam para si. Numa outra oportunidade abordaremos este curioso
assunto.
Mas é indiscutível que as tripulações
e pilotos das naus exploradoras ibéricas dos séculos
áureos da diáspora lusitana (séculos XV-XVI)
incluíram, desde sempre, sefarditas, cristãos novos
ou marranos, e que estes contribuíram significativamente
para a disseminação da lusitanidade pelas terras
do além-mar, tendo alargado os horizontes espaciais e conceptuais
do mundo, rumo à globalidade actual.
Hoje professo a fé cristã, tendo encontrado nos
seus valores mais afinidade com o chamamento da minha alma. Contudo,
as idiossincrasias ideológicas do meu pai foram os primeiros
catalisadores para a minha busca dos valores humanitários
ao longo da minha vida. Descobri, na minha travessia por três
continentes, que o preconceito, a xenofobia e a intolerância,
nada mais são do que o fruto da ignorância, e que
a dinâmica humana, como a natureza, se destina à
evolução na diversidade. Devemos ponderar bem antes
de olhar de soslaio para os outros pois, por vezes, não
sabemos, de todo, de que "cocktail" histórico,
étnico e genético somos constituídos!
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