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Por Regina Torres Calado
(Vancouver, Columbia Britânica)
Dezembro 1998/Janeiro 1999
Acabou de fazer há dias 95 anos de idade
e, através de uma pequena sondagem feita no Rádio
pensamos ser a pessoa mais idosa da Comunidade Portuguesa de Vancouver.
Sempre sorridente, simpatiquíssima, e muito compreensível,
poder-se-ia pensar que teve uma esmerada educação,
quando fora criança ou jovem. Sabe bem o que quer e quando
quer. Gosta-se dela. Pequenina, buliçosa, sempre ligeira
no seu passinho miúdo. Ai, que se não fora aquela
perna que às vezes a faz refrear o ímpeto...Mas
está nela o hábito de correr toda a sua vida de
trabalhos e de trabalho!
Começou a trabalhar com a idade em que muita gente ainda
usa fralda (o exagero é meu!). Aos 5 anos já tinha
que lavar os panos com que se preparavam os queijos e também
os cântaros do leite, que tinham de ser bem lavados e brilhantes!
Não podia com o cântaro da água que ia buscar
longe à fonte e, como o trazia meio de água, tinha
que lá voltar com mais frequência.
Muito cedo foi servir. A patroa tinha 5 filhos, mais pequenos
do que ela e uma das incumbências da nossa heroína
era, de noite, ir por essas crianças a fazerem chi-chi
para não molharem as camas, Claro! Uma noite a criada-criança,
ao cumprir esse mandato nocturno, foi cair no curral dos porcos...
por ir tão ensonada! Céus! Onde moravam os direitos
humanos que actualmente os "moralistas" invocam para
minimizar o encarceramento de verdadeiros criminosos, ladrões,
malfeitores de toda a espécie e que até a lei lhes
concede o direito a reclamá-los? A pobrezinha caiu de pé
na pia dos suínos e estes não a morderem, foi sorte!
Tinha de ir levar os bois ao pasto por lameiros e áreas
desertas. Com o medo de cobras e lagartos, vivia apavorada. Era
apenas uma criança! E se acaso estava nevoeiro? E quando
a noite caía mais cedo e não a deixava calcular
as horas pelo sol? Os patrões ralhavam-lhe se recolhia
o gado cedo demais, mas ralhavam-lhe também se era tarde
demais... Era o "medo", sempre o Medo! E lembrarmo-nos
que hoje qualquer criança tem um ou dois Timex muito tempo
antes de saber ver as horas!
Ajudava no corte de lenha e carregava alguma diariamente para
casa, assim como o estrume. Foi uma "moira de trabalho"!
E não foi sozinha, todos os nossos avós o foram.
Quando fez 9 anos de idade passou a ter ordenado... uma libra
por ano. Quer isto dizer que trabalhou vários anos só
pelo comer e dormir, as mais das vezes no palheiro... Permaneceu
naquela casa até que a patroa morreu com a "pneumónica".
Com essa doença perdeu a nossa heroína em três
dias, a mãe, um cunhado e uma irmã que deixou ficar
um bebé.
Aí a temos agora com as responsabilidades do seu emprego
e mais os cuidados do seu próprio sobrinho que precisava
de todas as atenções que qualquer bebé de
tenra idade requer, e aí vemos a nossa pobre criança
também ela atacada da febre que ceifava vidas, chegando
a fecharem-se casas onde toda a família pereceu. Mas a
nossa "mãe por empréstimo" precisava de
levar o bebé a alguém que lhe pudesse amamentar
a criança, que também foi atacada pela doença.
Mas podiam morrer todos? Não! E assim as duas crianças
escaparam. Entretanto, o padrinho do sobrinho, pobre também,
comprometeu-se a pagar o leite do bebé, só que estava
em perspectivas de ir para a América, onde morreu atropelado
por um carro...
Se a pobre rapariguita já trabalhava tanto, muito mais
teve de trabalhar. Sofreu, chorou e chorou, com razão,
tinham os dois sobrevivido à peste. Era esta a única
coisa que tinha certo! Aos 16 anos deixou a aldeia e foi servir
para a cidade. Ali a vida não lhe foi mais suave. Sofreu
aqueles "Medos" e... outros! Cinco anos depois teve
uma filha. Redobraram as aflições e o medo da doença,
nela ou na filha, medo da pobreza...
O facto de ser e andar extremamente asseada remendando os seus
"trapos"com gosto e esmero, granjearam-lhe a simpatia
de quantos a conheciam. Arranjaram-lhe um casamento, mas o sapateiro,
além de pobre, bebia demais... um dia decidiu mudar de
vida, pôs os pés a caminho e foi experimentar a comprar
uma caixa de sardinha e, em menos de uma hora, tinha-as vendido
todas! Estava feliz! Sempre erguida, depois da experiência
das sardinhas já não era tão pobre. Entretanto,
começou a ser solicitada para ir trabalhar a pensões,
hotéis, aqui e ali. Ás vezes batiam-lhe à
porta às 4 e 5 horas da manhã para lá ir,
"antes para mim, preciso muito de ti!!"
E veio para o Canadá. Ao ir certo dia para um trabalho,
num carro sofre um acidente e perde um olho. A sua vida modificou-se.
Há já alguns anos coxeia de uma perna, mas isso
não a coíbe de andar ligeira pelas ruas de Vancouver,
ela e sua bengalinha, visitando o oftalmologista, o médico
dos ossos ou o doutor de família. E para isso tinha que
tomar dois ou três autocarros sem saber ler em língua
nenhuma nem falar inglês. "É tudo por Deus querer",
costuma ela dizer sempre sorrindo. Está sempre bem disposta,
bem penteada e parece andar sempre de vestido novo.
Conheci-a há dez anos e até há dois anos
atrás, ela foi sempre igual. Já não toma
o autocarro. A sua filha e o genro amenizaram-lhe a existência...
merecia-o. Se às vezes, no meio de qualquer conversa, ela
usar um vocábulo em inglês, podem estar certos que
está bem pronunciado e no local exacto. "Tudo por
Deus querer".
Tem desde o dia 13 de Dezembro 95 anos e cremos ser ela a pessoa
mais idosa da comunidade, nesta área. Para ela vai o nosso
carinho e o desejo de que viva muitos mais anos com saúde.
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