Toiros, Santos & Lendas


Por Ferreira Moreno

No antigo Oriente (Extremo, Médio e Próximo) o toiro foi sempre considerado como um símbolo de robustez, fertilidade e divindade. O título abir atribuído a Jeová no Livro de Génesis e traduzido nos termos de "forte e poderosos", originalmente significava o toiro de Jacob, (Gen. 49:24). O Salmo 132 (versos 2 & 5) menciona o "Poderoso de Jacob". E o livro de Isaías (49:26 & 60:16) contém referências semelhantes.

Claro que Israel estava proibido em fabricar imagens, que representassem Jeová. O episódio do bezerro de oiro, relatado no capítulo 32 do Livro de Êxodo, apresenta-nos a imagem dum toiro como símbolo da divindade de cultos antigos, já então observados no Egipto donde os judeus haviam partido sob a chefia de Moisés.

No entanto, o propósito desta crónica não pretende, de forma alguma, deambular p'las veredas da história e etnografia, folclore e teologia, tradicionalmente associadas com o toiro. De preferência, tenciono partilhar apenas as informações pacientemente recolhidas no decurso duma investigação, levada a cabo a fim de satisfazer meramente a minha insaciável curiosidade. Afortunadamente acabei por descobrir que o toiro é, também, um atributo aplicado a determinados santos...embora com base em narrativas aparentemente fictícias e exageradamente lendárias.

E assim, por exemplo, Santo Eustáquio, que, segundo a lenda tecida à sua volta, serviu como general no Exército do imperador romano Trajano (c. 53-117 A.D). Aconteceu que ele, um dia, andava na caça e deparou com um veado equipado com uma cruz entre os chifres. (Esta narrativa aparece, igualmente, na lenda de Santo Huberto e outros santos). Evidentemente que Eustáquio foi colhido de surpresa e ficou profundamente impressionado com essa "aparição", sobretudo ao ouvir o seu nome pronunciado pelo veado.

Pouco depois, juntamente com a esposa e dois filhos, recebeu o baptismo e mudou o seu nome Plácido para Eustáquio. Foi perseguido, no entretanto, por uma série de contratempos e desventuras, incluindo a cruel separação dos seus familiares, aprisionados e vendidos por piratas.

Decorridos alguns anos, por ordem do imperador Trajano, voltou a comandar o exército na luta contra os inimigos na fronteira, saindo vitorioso e reencontrando a esposa e respectivos filhos. Curiosamente esta romântica reunião enquadra-se num típico enredo de cinematografia: - Eustáquio entra numa estalagem p'ra almoçar; aí encontra a esposa a servir de criada, e os dois soldados (sentados à mesa) reconhecem que o general era o pai!

O epílogo desta fantástica estória tem lugar quando a família se recusa sacrificar aos ídolos. Eustáquio, esposa e filhos, acabam por serem metidos num toiro de bronze aquecido ao rubro, e ali dentro totalmente assados...embora haja quem tenha transmitido este texto inverosímil: "Mas eles nada sofreram porque, até ao momento em que partiram p'ro céu, foram ouvidos conversando alegremente, rezando e cantando." (José Leite, Santos de Cada Dia).

Se, por um lado, esta lenda carece autenticidade, por outro fez-se acompanhar de grande popularidade atendendo, sobremaneira, ao número e variedade de versões quer em prosa quer em verso.

Uma outra lenda, bastante propalada e muito popular, baseia-se num romance dos fins do século II intitulado Actas de Paulo & Tecla, narrando as aventuras duma jovem noiva, que renuncia a proposta de casamento e prefere reter a virgindade após ter sido convertida por S. Paulo.

De nada valeram os protestos e argumentos dos familiares e amigos, vizinhos e magistrados, incluindo o noivo (Thamyris). Condenada à fogueira, dela escapou quando um repentino aguaceiro apagou as labaredas. Daqui seguiu com S. Paulo p'ra Antioquia, onde um indivíduo chamado Syriarch Alexander procurou raptá-la, mas falhou na tentativa. Espicaçado por sentimentos de revolta e vingança, Alexander denunciou Tecla ao governador, que determinou lançá-la nua às feras no anfiteatro.

Porém, no dia da execução da sentença, os leões aproximaram-se mansamente e beijaram os pés de Tecla. Notando uma vala d'água ali à volta, e recordando-se que ainda não havia recebido o baptismo, Tecla atirou-se p'ra dentro da água, exclamando: "Em nome de Jesus Cristo estou baptizada no meu último dia de vida!"

Assim que Tecla saiu da vala, apareceu uma nuvem de fogo a encobrir a sua nudez...
Foi então que Alexander sugeriu ao governador p'ra remeter toiros aguilhoados contra Tecla, mas o fogo queimou as cordas que a atavam, provocando aplausos da multidão e convencendo o governador a dar liberdade à donzela.

Novamente na companhia de S. Paulo, Tecla recebeu a incumbência p'ra ensinar a doutrina cristã em Icónio (Turquia), retirando-se depois p'ra Seleucia onde viveu numa gruta durante 72 anos.

Existem duas narrativas acerca do seu falecimento; uma descrevendo que a gruta abriu-se e a alma de Tecla subiu ao céu, enquanto a outra afirma que Tecla encontrou uma passagem na gruta, donde saiu a caminho de Roma. Ao ter conhecimento que S. Paulo tinha falecido, Tecla entrou numa "gloriosa dormitação" pouco depois, e jaz sepultada perto do túmulo de S. Paulo!

Como remate à crónica desta semana, aqui deixo um par de quadras de um "modinha" das nossas ilhas:

O bravo foi sempre bravo
Mesmo até quando nasceu,
Mas deixou de ficar bravo
Quando viu o corpo teu.

Dos bravos de toda a ilha
Eu queria ser o mais bravo,
P'ra tu gostares de mim
E chamares-me o teu cravo.