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Por: Ferreira Moreno
Noé ganhou fama, e ficou célebre
na história da humanidade, através da narrativa
do dilúvio bíblico, que o Velho Testamento captou
e transmitiu no Livro do Génesis. Porém, não
é minha intenção discorrer acerca de Noé
como engenheiro naval e navegador excepcional, construindo e guiando
uma Arca, a todos os títulos extraordinária. Quero
tão somente, e apenas de passagem, apontar uma outra notável
tradição relacionada com Noé, mas frequentemente
obscurecida pela magnitude de que se reveste a descrição
diluviana.
A notável tradição, a que me refiro, consiste
no facto de que Noé foi o primeiro produtor de vinho registrado
na Bíblia. Basta ler o capítulo nono do Génesis
e verificar que Noé, realmente, plantou uma vinha e das
uvas fez vinho, de que bebeu sofregamente acabando por ficar completamente
embriagado.
Recordo-me neste momento que, no meu tempo e na minha terra de
origem, era costume usar a expressão “tomou um calor”quando
alguém estava inebriado. Portanto, não me causou
surpresa ao ler que Noé, depois de beber o vinho. “ficou
nu dentro da tenda”.
Absolvido desta indiscrição, Noé merece o
nosso respeito e admiração, quando considerarmos
que ele foi também um pioneiro vinicultor, embora haja
diferença de opinião entre os tradutores portugueses
da Bíblia Sagrada, alternadamente chamando-lhe agricultor
(Matos Soares, 1933) e lavrador (Edição Paulista,
1993).
Na simbologia cristã, cachos de uvas com espigas de trigo
representam o vinho e pão da Eucaristia. Bem assim, a uva
é o símbolo do Sangue de Cristo, tal qual a videira
é o emblema do Salvador. Mais ainda, na iconografia cristã
o Cordeiro de Deus é representado entre cachos de uvas.
E que me perdoem os leitores aderentes à crença
da folha de figueira, usada pelo pai Adão, mas existem
representações iconográficas da mãe
Eva cobrindo-se modestamente com cachos de uvas!
No Capítulo 40 do Génesis lê-se que o chefe
dos copeiros do rei do Egipto contou a josé o sonho que
tivera. Apareceu-lhe uma videira com três ramos, donde rebentaram
uvas maduras; pegando nos cachos de uvas, o caseiro espremeu-os
numa taça e entregou-a ao Faraó. No capítulo
49 do mesmo livro, o patriarca Jacob abençoou Judá
nestes termos: “Ele prende o seu jumentinho junto à
vinha, e a cria de jumenta perto da videira; lava a roupa no vinho
e o manto no sangue das uvas.”
No Livro do Levítico (19:10) somos advertidos: “Não
volteis p’ra colher as uvas que ficaram nas videiras; também
não recolhais as uvas caídas no chão: deixai
tudo isso p’ró pobre e o imigrante.” Igualmente
(25:4-5) Javé proclama que “no sétimo ano
não podareis a vinha, nem colhereis as uvas das vinhas,
que não foram podadas.”
No Livro dos Números (6:3), Javé ordena não
só a abstenção de vinho e bebidas fermentadas,
mas também o suco de uvas e consumpção de
uvas frescas ou secas, enquanto deparamos (cap. 13) com referências
aos exploradores enviados por Moisés ao país de
Canaã e ao vale do Cacho, “assim chamado por causa
do cacho de uvas que os filhos de Israel ali cortaram.”
No Deuteronómio (24:21), Javé lembra novamente os
israelitas: “Quando colheres as uvas da tua vinha, não
voltes p’ra procurar o que ficou: o resto será p’ró
imigrante, o órfão e a viúva.” Mais
adiante (28:39), entre as bençãos e maldições
de Javé, lê-se: “Plantarás e cultivarás
vinhas, mas não beberás vinho nem colherás
uvas, pois a praga as devorará.” Ainda no Deuteronómio
(32:32), topamos com o Cântico de Moisés e esta terrível
acusação: “as suas uvas venenosas e os seus
cachos são amargos.”
No Livro dos Juízes (9:27) somos informados que Gaale seus
irmãos foram a Siquém, onde “saíram
ao campo p’ra vindimar, pisaram as uvas e celebraram a festa.”No
Livro de Neemias (13:15), o cronista revela ter visto em Judá
“gente a pisar uvas no lagar, em dia de sábado, e
também transportar vinho e uvas em dia de sábado.
“Falando do castigo reservado p’ró injusto,
lê-se no Livro de Jacob (15:33) que “será como
videira que é despojada das suas uvas ainda verdes.”
Fazendo uma pequena pausa no Cântico dos Cânticos,
os versículos 9 e 10 do capítulo sétimo prendem-nos
a atenção para “os teus seios são cachos
de uva (...) a tua boca é um vinho delicioso.” No
quinto capítulo do Livro de Isaías está incluído
o “Canto da Vinha”, cuja imagem Cristo usou na parábola
dos vinhateiros (Evangelho de S. Mateus, cap. 21), bem como no
discurso da videira (Evangelho de S. João, cap. 15).
O tema das uvas, em relação ao julgamento final,
quer pessoal quer terreal, está diversificado em muitos
outros versículos de Isaías (cap. 18 & 24);
de Jeremias (cap. 8, 25 & 31); Ezequiel (cap. 18); Oseias
(cap. 9); Amós (cap. 9) e Miqueias (cap. 7).
E agora, após esta ligeira digressão pelo Velho
Testamento, é tempo de consultar o nosso cancioneiro p’ra
vindimar umas quadras mais a gosto:
Maria, cachinho d’uvas,
Ai, quem te depenicara!
De baguinho em baguinho
Nenhum bago te deixara!
Ó parreira, dá-me um cacho,
Ó cacho, dá-me um baguinho;
A menina, se quisesse,
Dava-me agora um beijinho.
Retira-te das janelas,
Retira-te do balcão,
Vem comigo p’rás vindimas,
Amor do meu coração.
Ó moças, não há tempo
Como é o de vindimar:
De dia escolhe-se a uva
E à noite é namorar.
Os rapazes cá da terra,
Quando andam nas vindimas,
Amor do meu coração.
Ó moças, não há tempo
Como é o de vindimar:
De dia escolhe-se a uva
E à noite é namorar.
Os rapazes cá da terra,
Quando andam nas vindimas,
Já aparecem uns malucos
Por causa das raparigas.
Fui ao céu por uma ameixa,
Desci por um cacho d’uvas;
Ninguém se fie nos homens,
Que são falsos como Judas!
O demónio leve os homens,
Aqueles que bebem vinho!
Não me há-de levar o meu,
Que esse bebe poucocinho.
Eu contei as uvas todas
Que havia no parreiral;
O homem que não tem graça
É c, más papas sem sal.
As palavras dos amantes
São c’más uvas belas;
Atrás dumas vêm outras,
Não há quem se aparte delas.
A parra, quando está seca,
É custosa de pegar;
É c’mos amores velhos,
São custosos de largar.
Os amores que hoje tens
São aqueles que deixei;
Que só apanham os bagos
Da vinha que vindimei.
Bem podia Deus dar uvas
Sem a vinha ser podada;
De cada cacho um quartilho,
Cada dois meia canada.
Eu hei-de cantar e balhar,
Hei-de pintar o sarilho,
Ementes não se acabam
Estes copos de quartilho.
No canto da Vila Nova
Vende-se louça e colheres,
Vinho de cheiro p’rós homens,
Aguardente p’rás mulheres.
Dizeis que és muito p’ra mim,
Não te sinto com dinheiro:
Toda a féria da semana
Não dá p’ró vinho de cheiro.
É verdade que bebi,
Que bebi demasiado,
Mas foi por amor de ti,
P’ra te ver em dobrado.
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