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Por: Ferreira Moreno
Depois de ter redigido a minha última
crónica sobre o Natal, fiquei-me a contemplar o presépio
que tenho armado no meu quarto-de-estudo. Adormeci, no entretanto,
e parece-me que a figura de São José estava a acenar-me
p’ra chegar-me à sua beira.
Apercebi-me, de imediato, que tinha assunto p’ra nova crónica.
Não me fiz rogado, e aproximei-me de São José
que, num sorriso e sem rodeios, entabulou conversa...
“Na tua qualidade de cronista estás bem informado
que eu fui um dos mais directos protagonistas do primeiro Natal.
Vou partilhar contigo aquela experiência que, como sabes,
teve o seu prelúdio com o terror, que me avassalou, ao
verificar que Maria estava grávida.
Eu não queria acreditar, de forma alguma, que Maria me
tivesse atraiçoado. Por outro lado, era inaceitável
o que ela me dizia. Concordo que os antigos não estavam
a par dos modernos conhecimentos científicos, ma até
certo ponto estávamos mais em contacto com as realidades
da vida. Tanto assim, que, em princípio, pensei divorciar-me
e não casar com Maria.
Lembra-te, no meu tempo, a noção de casamento e
divórcio era diferente dessa prevalecente na sociedade
hodierna. Os judeus, meus conterrâneos, observavam o período
dos esponsais antecedendo o casamento, mas sem a união
sexual.
P’ra uma rapariga judia como Maria, os esponsais prologavam-se
por um ano, durante o qual ela pertencia-me legalmente, como se
estivéssemos já casados. Caso eu morresse nesse
ano, ela ficava oficialmente viúva.
Decidi, portanto, que a melhor solução era optar
por um divórcio amigável, protegendo assim a minha
honra pessoal e salvaguardando a própria existência
de Maria. Como sabes, uma mulher judia acusada e reconhecida como
adúltera estava irremediavelmente condenada à morte
por apedrejamento.
No meu tempo, infelizmente, as leis aplicáveis às
mulheres divergiam dessas favoráveis aos homens, que eram
considerados os únicos membros da aliança entre
Jeová e Israel. As mulheres, legalmente, não tinham
direitos de propriedade. Isto não quer dizer que não
houvesse amor entre esposo e esposa, embora existissem, frequentemente,
casos em contrário.
Mas eu amava Maria, e Deus é testemunha do meu arreigado
amor e devoção por Maria!
Sabes, eu vivi sempre uma existência tranquila, e nunca
entreguei a alguém o meu coração, até
o dia em que, milagrosamente, senti-me enamorado com a suavidade
e beleza de Maria, que penetraram profundamente no mais íntimo
do meu ser. Convenci-me que ela era o perfeito complemento da
minha própria existência, e não hesitei pedi-la
em casamento. Surgiu depois o terrível dilema: Casar com
ela ou condená-la a morte?
Foi então que um sonho transformou o meu mundo. Não
sou visionário, nem tão pouco sonhador, mas sim
um carpinteiro honrado, um indivíduo prático. Nunca
sonhei com anjos, e ainda agora não sei descrevê-los.
O certo é que Deus enviou um anjo p’ra assegurar-me
que a história de Maria era verdadeira. Claro que fiquei
aliviado e o meu coração encontrou sossego. Deus
estava, de facto, a restituir-me Maria e a dar finalidade ao nosso
casamento. O sonho era doravante uma realidade!
Com calma entrei a ponderar na mensagem do anjo, e compreendi
que era a confirmação das profecias acerca da virgem
que daria à luz um filho, o redentor prometido e salvador
da humanidade. Ao prospecto de ter Maria na minha companhia ajuntava-se,
também, a presença do Messias prometido, que Maria
trazia no seu ventre. O Pai do Céu tinha-me escolhido e
destinado a servir de pai na terra ao Menino-Jesus!
Está fora do teu alcance, e de qualquer outro cronista,
descrever tudo quanto se passou naquele primeiro Natal em Belém.
Fui eu quem assistiu Maria na hora do parto e nascimento do Menino,
e fui eu quem recebeu os pastores e, mais tarde, os reis magos.
Olha p’ró teu presépio e imagina a alegria
que eu sinto sempre que alguém me reconhece junto a Maria.
Já agora deixa-me que desabafe contigo. Além desta
cena natalícia, pouco ou nada está escrito acerca
de mim. Confio que na tua crónica terás ampla oportunidade
p’ra relembrar toda a gente que eu acompanhei, igualmente,
o crescimento de Jesus. Fui eu quem lhe ensinou o ofício
de carpinteiro e o encaminhou na vida com bons conselhos. Fui
eu quem instruiu Jesus na atitude filial perante Deus, embora
o próprio Jesus ser também Deus.”
Aqui terminou meu sonho. Mas na distância pareceu-me ouvir
o murmúrio de muitas vozes certamente os conterrâneos
de José, pronunciando em uníssono: “Jesus,
o filho de José.”
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