AS MIGRAÇÕES DO POVO AÇORIANO:
UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICO-SOCIAL
( 4 de Novembro 2003)
Por Adelina Pereira - Adiaspora.com
Dr. Artur António Boavida Madeira,
leitor e investigador do Departamento de História da Universidade
dos Açores, esteve entre nós como participante na
VII Semana Cultural da Casa dos Açores de Toronto. Como
historiador, preocupa-se fundamentalmente com as questões
ligadas às sucessivas migrações do povo açoriano
ao longo dos séculos. Possuidor de um currículo
extenso de artigos, livros e estudos vários sobre esta
temática, este académico presta à história
açoriana a perspectiva de um continental que nos últimos
anos se tem virado para àquela região insular, cujas
características sociais e históricas diferem substancialmente
das demais regiões portuguesas.
Adiaspora.com: Tivemos ocasião de trocar algumas breves
impressões nos bastidores desta VII Semana Cultural Açoriana
em Toronto donde depreendemos que, como historiador, preocupa-se
fundamentalmente com as questões ligadas às migrações
do povo luso, muito particularmente do povo açoriano. Gostaria
de dar início a esta nossa entrevista por lhe colocar uma
questão muito simples. O que é a História,
qual a sua importância na matriz social dos povos e qual
a função social do historiador?
Dr. Artur Boavida Madeira: Estudo as
migrações. Embora me importe com as migrações
lusas, o que tenho estudado mais são as migrações
açorianas. Como continental residente nos Açores,
foi uma coisa que me fascinou ao chegar ali. Apesar de conhecer
as migrações lusas continentais, por exemplo, para
a França, para a Suiça, havia uma dinâmica
diferente nas migrações açorianas porque,
em geral, do continente partia o marido. A família podia
agregar-se mais tarde, mas há sempre o retorno. Nas migrações
açorianas, parte a família, em geral, para não
retornar. Foi uma coisa que me fascinou desde o início.
Quando entrei para a universidade onde tive a possibilidade de
fazer investigação, foi nesse sentido de perceber
as raízes deste fenómeno. Estas raízes vêm
desde o início da colonização do próprio
arquipélago que estava desabitado e foi colonizado com
migrantes, sobretudo do continente. Passados cerca de cem anos,
já havia gente suficiente para saírem dos Açores
para outras partes do mundo. Isto fascinou-me e o que tenho estado
a fazer é no fundo uma investigação histórica
para compreender uma realidade que ainda é actual. É
raro a família açoriana que não tenha alguém
fora. Por exemplo, aqui em Toronto temos 270,000 habitantes e
nos Açores 250,000. Assim, esta comunidade é muito
maior do que a dos Açores. Se traçarmos as ligações
familiares àqueles que ficaram, há sempre alguém
que esteve fora, seja no Canadá, Estados Unidos ou no Brasil.
Adiaspora.com: Neste panorama, como historiador, qual é
a sua função social? Qual é a importância
que o trabalho de investigação neste campo tem na
sociedade?
Dr. A. B. M.: Penso ser importante conhecer as tais raízes.
Estamos aqui numa Semana que evoca as raízes açorianas
no caso de Toronto, mas são raízes que vêm
já muito de trás, do passado. Os Açores têm
cinco séculos de história, mas também têm
cinco séculos de migrações. Compreendermos
um pouco o que é os Açores de hoje passa por conhecer
este percurso. Não é muito diferente do que se passou
no séc. XX. As migrações do séc. XX
são muito parecidas às do séc. XIX e XVIII.
O tema que venho apresentar aqui é o resumo desse percurso.
Serve para alertar que as coisas no séc. XX foram difíceis
mas também nos séculos. XIX, XVIII, e XVII.
Adiaspora.com: Uma das coisas que nos fascina de sobremaneira
quando lemos o trabalho de alguns historiadores, por vezes sobre
uma temática semelhante, é que cada um acaba por
analisar os dados que recolhe e chegar a conclusões diferentes.
Até que ponto é que a subjectividade de um historiador
influi no seu trabalho de investigação?
Dr. A. B. M.: Qualquer investigador vai colocar um pouco da
sua subjectividade na análise dos documentos que recolhe.
Pretende-se que as coisas sejam o mais objectivas possíveis.
Por vezes, a análise de determinada documentação
pode nos levar a um caminho, mas a análise de outra documentação
a outro, a outra linha de pensamento e outras direcções.
Estou-me a lembrar, por exemplo, da investigação
que tenho andado a fazer sobre a emigração do séc.
XIX que me tem aberto outros caminhos, a analisar, por exemplo,
a correspondência dos emigrantes que nunca foi publicada
e que é desconhecida. Traz-nos outras perspectivas da análise
tais como as dificuldades pelas quais os emigrantes do séc.
XIX passaram, por exemplo, no Brasil. Às vezes, fala-se
de que houve dificuldades, mas não se tem noção
destas e acabamos por ficar sem saber quais foram, na realidade,
essas dificuldades. Sabemos, de forma geral, que as tiveram mas
nunca especificando. A análise de alguma correspondência
é bastante elucidativa. Estou-me a lembrar, por exemplo,
do caso de um indivíduo que escrevia do Rio do Janeiro
para os pais, dizendo que entrava ao serviço às
três da manhã e saia no outro dia às seis
horas da tarde. Trabalhava num barco que fazia a ligação
entre o Rio de Janeiro e uma ilha ali próximo. A sua função
era alimentar as fornalhas com carvão. Embora dissesse
que ganhava bem, era trabalho duro.
Adiaspora.com: A febre de partir para além dos horizontes
é parte integrante do espírito "nacional"do
nosso povo. O porquê desta sede de deixar a terra natal
e aventurar-se pelo desconhecido?
Dr. A. B. M.: Acho que o espírito de aventura não
é a razão principal. Há alguns historiadores
e analistas que enveredam por aí. Por exemplo, em relação
aos açorianos, fala-se muito do espírito de aventura.
Adiaspora.com: Talvez seja uma perspectiva algo romântica?
Dr. A. B. M.: É, na verdade, uma perspectiva romântica
do tema. Se é aventura porquê que são só
os pobres que se aventuram? É uma questão que já
foi levantada até por colegas meus, mas foram, sobretudo,
situações e dificuldades de ordem económica.
Se repararmos nos Açores, e em quem emigra desde da época
dos Descobrimentos, é gente do norte continental e gente
dos Açores e duma pequena faixa do litoral.
Adiaspora.com: E da Madeira naturalmente?
Dr. A. B. M.: Menos. Também emigram consoante os períodos.
Mas nos Açores vamos encontrar uma constante, como também
no Minho.
Adiaspora.com: E Trás-os-Montes?
Dr. A. B. M.: Não tanto.
Adiaspora.com: Dá-nos impressão que a emigração
de Trás-os-Montes se virou mais para a própria Europa?
Dr. A. B. M.: No séc. XX, de facto, a emigração
transmontana virou-se mais para a Europa. Mas, ao longo da história,
vamos encontrar o Minho e os Açores numa distribuição
de propriedade muito própria. Em geral, há uma concentração
de propriedade em grandes senhores e vemos uma grande parte da
população a viver com pequenos retalhos de terra
numa exploração de subsistência. Tem de procurar
fora outras formas de rendimento para ultrapassar as dificuldades.
Os retalhos que encontramos no Minho e nos Açores propiciam,
de certa forma, uma explicação para estes êxodos.
Adiaspora.com: Pode-nos falar um pouco sobre a vaga de emigração
que ocorreu nos Açores no séc. XIX? Qual era a conjuntura
que se vivia nos Açores que levou muitos açorianos
a saírem neste século?
Dr. A. B. M.: No séc. XIX, temos duas fases: nos inícios
do sec. XIX vamos encontrar a Coroa no Brasil e pedidos insistentes
de casais açorianos para povoarem determinadas zonas desabitadas
e na criação de algumas cidades. Durante as primeiras
duas décadas, vamos encontrar no Brasil os chamados casais
das ilhas. Estes são, em geral, casais jovens com um, dois,
três, quatro filhos a quem é propiciado o transporte,
instalação, e meios para se fixarem em determinadas
regiões. Depois, surgem, em 1820, alterações
políticas, quer em Portugal, quer no Brasil, que levam
a um abrandamento da emigração que depois praticamente
desaparece. Durante cerca de uma década ou década
e meia pára a emigração. A partir daí,
entrámos num ciclo novo pelo seguinte: as pessoas continuam
a procurar o Brasil, só que, nesta altura, o Brasil já
não é colónia, mas um país independente.
Adiaspora.com:. É verdade que os emigrantes açorianos,
por exemplo, no sul do Brasil, foram utilizados como baluarte
contra o avanço espanhol?
Dr. A. B. M.: É verdade. A parte meridional do Brasil,
como as colónias de Sacramento, Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, eram zonas indefesas que era preciso ocupar. Mas isto
verificou-se, não só nessa zona, como também
no Pará e no Maranhão, onde a política é
exactamente a mesma. Por exemplo, no sec. XVII, tudo indica que
os açorianos tiveram um papel importantíssimo na
colonização do Pará e Maranhão. Chega,
por vezes, a sair, em curtos períodos de tempo, cerca de
10% da população de uma ilha para ser colocada em
determinadas zonas do Pará e Maranhão, precisamente,
para se fixarem e serem baluartes dessa defesa. No séc.
XVIII, a política é a mesma. mas em relação
ao sul. Em Santa Catarina e Rio Grande do Sul o mesmo sucederá.
O que ocorria no séc. XVII, também ocorreu no séc.
XVIII, que é a promessa de transporte, terras e apoios.
Adiaspora.com:. Qual a razão de se ter seleccionado os
açorianos para esta tarefa?
Dr. A. B. M.: Penso que decorre do modelo de colonização
já implantado nos Açores. Quando se dá a
colonização dos Açores, o que nos assistimos
foi a uma migração de gentes de várias partes
do reino e que se adaptaram bem. Nos Açores, em menos de
um século, já vamos ter disponibilidade de gente
para sair para outras partes do reino ou colónias. Passados
cem anos, já vamos encontrar açorianos na Índia.
Houve uma certa facilidade de adaptação. São
pessoas que se habituaram a viver da terra, que se fixam e dela
vivem e que, ao serem transpostos para outros locais, irão
continuar a fazê-lo. Interessava à Coroa transpor
estes modelos para os pontos estratégicos que pretendia
defender. No Brasil, isto vai acontecer.
No que diz respeito às alterações políticas,
tanto em Portugal como no Brasil, há uma mudança
no tipo de emigração, porque, até aí,
assistimos a uma emigração dirigida. O Estado é
que recrutava, no fundo, esses casais. A partir daí, vamos
ter uma emigração, de certa forma, livre e de iniciativa
própria. A própria Carta Constitucional permitia
uma certa liberdade das pessoas saírem livremente do país.
Vamos assistir a uma emigração livre e a períodos
fortes de emigração, quer nos Açores, quer
no Minho. Durante o séc. XIX, assistimos a uma movimentação,
muitas vezes apoiada pelas elites, pelo próprio Estado,
e outras vezes contestada porque com a saída de muita gente
há falta de mão-de-obra e os salários dos
trabalhadores tendem a subir. Isto não convinha às
elites locais proprietárias de propriedades que precisam
de ser trabalhadas. Mas a emigração era um fenómeno
periódico. Umas vezes era benéfico. Se houver mais
população é benéfico a sua saída.
Quando há pouca população já não
é tão benéfico e então aparecem as
contestações. Um fenómeno que surge no séc.
XIX nos Açores e no continente é o chamado engajamento.
Era uma espécie de contrato em que as pessoas que não
tinham posses para comprar um bilhete nos navios para irem livremente
para o Brasil, se comprometiam com os capitães ou com outros
contratadores. É um fenómeno que passou a ser conhecido,
e é conhecido ao longo do séc. XIX e mesmo nos inícios
do séc. XX, como escravatura branca. As pessoas faziam
um contrato, por exemplo, com os capitães dos navios em
que estes lhes faziam o transporte, mas depois ficavam comprometidas
a trabalharem três a cinco anos. Eram como que vendidos
por um determinado tempo para pagarem a sua passagem. Mas mesmo
assim, apesar de se falar da escravatura branca, isto não
intimidava quem queria sair do país. Mesmo ficando comprometidos
durante três a cinco anos, havia muita gente que arriscava
porque julgava que ia enriquecer muito facilmente no Novo Mundo.
Passa-se ainda um pouco disto quando entramos no séc. XX.
Adiaspora.com:. No séc. XX, dão-se a queda da
monarquia e conturbações políticas a nível
nacional. Qual foi o reflexo destes acontecimentos no fluxo da
emigração?
Dr. A. B. M.: Não têm grandes reflexos na movimentação
da emigração. O que vai ter reflexo, sobretudo,
é a I Guerra Mundial que pára, de certa forma, esses
êxitos internacionais. Também não podemos
ver só as coisas a partir dos Açores ou de Portugal,
pois são movimentos globais que atingiram toda a Europa.
Não esqueçamos que se emigrou, praticamente, de
todos os países da Europa. Para o Novo Mundo, vieram de
todo o lado. A Primeira Guerra Mundial vai ser o primeiro obstáculo.
Depois segue-se um novo entrave entre de 1921 a 1924, por exemplo,
nos Estados Unidos. A emigração açoriana
a partir dos finais do séc. XIX passa a orientar-se para
os Estados Unidos, ao contrário da emigração
do continente que, até meados do séc. XX, continuou
a ir para o Brasil.
Adiaspora.com:.Por que razão é que a emigração
açoriana passou a ter os Estados Unidos com destino preferencial?
Dr. A. B. M.: Foram os contactos. Há determinadas ilhas
do grupo central, sobretudo, Faial, Pico e mesmo S. Jorge que
têm ligações com os baleeiros. Houve contacto
com determinadas zonas dos Estados Unidos que propiciou maior
comunicação entre esses espaços, o que é
também muito importante. Por conseguinte, vamos encontrar
inúmeros baleeiros açorianos, nos finais do séc.
XIX, início de séc. XX, a trabalhar na maior parte
das baleeiras americanas.
Adiaspora.com:. Mais tarde, já no séc. XX, começa,
em termos contemporâneos, um fluxo mais visível de
emigração açoriana. Quer-nos falar sobre
o impacto que o regime salazarista teve na vontade de emigrar
dos portugueses e, principalmente, dos açorianos nessa
época?
Dr. A. B. M.: No séc. XX temos uma série de leituras
que se podem fazer a nível do Estado Novo. Mas a emigração
passa a depender mais de factores externos do que internos. Quando
se queria emigrar, é certo que havia a necessidade de ter
o aval do Estado. Mas, por exemplo, deixa-se de poder emigrar
para os Estados Unidos entre 1921 e 1924 por causa de uma séries
de restrições. Se o país que poderia ser
o destino desses emigrantes fecha as portas, há logo aqui
mais uma condicionante a ter em atenção. A emigração
açoriana, a partir dessa altura, diminuiu até se
atingir, em 1941, salvo erro, 18 emigrantes num ano. Tem a ver
também com a procura externa. Nunca houve grandes obstáculos
à emigração por parte do Estado Novo, embora
houvesse uma política de conduzir as pessoas que queriam
emigrar para as colónias. Houve várias políticas
nesse sentido. Aqueles que desejavam sair, é certo que
tinham de ter esse agrimã político, mas saia-se
limitado mais pelo exterior do que pelo interior. No caso do Açores,
temos uma outra viragem nos anos 50 com a situação
provocada pela erupção do vulcão dos Capelinhos,
que foram os acordos bilaterais com o Canadá e Estados
Unidos que permitiam, de certa forma, a entrada de imigrantes.
Temos também de ter em atenção uma outra
situação vigente em Portugal que é o grande
crescimento demográfico do país ao longo do séc.
XX, que resultará no estrangulamento dos sectores agrícola,
e do investimento fabril que não vão absorver toda
a população. Nos anos 50 procurou-se promover uma
certa emigração.
Adiaspora.com:. É do conhecimento geral que a distanciação
espaço-temporal, para a qual a emigração
atirou aqueles que partiram, resultou em realidades linguísticas,
sociais e culturais bem distintas das que se vivem em terras portuguesas.
O conceito da identidade portuguesa, nos dias de hoje, apresenta
um quadro bem complexo com a infiltração de novos
factores e variáveis que o processo de hibridação
com os demais povos do mundo acarreta. Será que os conceitos
da portugalidade e açorianidade correm perigo de diluírem-se
no melting pot que hoje constitui as realidades da nossa diáspora
e, por fim, desaparecerem?
Dr. A. B. M.: Suponho que não. Ainda ontem estive aqui
a falar com um professor da Universidade de Toronto da área
da informática e que esteve em Malaca onde foi encontrar
uma pequena comunidade que fala português e onde se preserva
certos costumes portugueses. Existem, por outro lado, também
situações como a que se vive actualmente no sul
do Brasil, em que se procura enaltecer as raízes daquilo
que, no fundo, esteve na origem daquela população.
Acho que não há razões para pensarmos que
há uma diluição. É claro que vai haver
trocas culturais.
Adiaspora.com:. É frequente recorremos à citação
de Fernando Pessoa "a minha pátria é a língua
portuguesa" para nos atenuar este medo da perda de identidade.
Será que a identidade portuguesa não existe num
luso-descendente que já não se exprime na língua
mãe?
Dr. A. B. M.: Tem de haver uma preocupação em preservar
determinadas coisas se queremos preservar a cultura portuguesa.
Não se exprimir na própria língua não
significa que a identidade desapareça, mas desaparece uma
boa parte dela. Julgo que a assistência da Casa dos Açores
ou da Casa do Alentejo, entre outras, será uma das formas
de preservar algo dessa identidade cultural. É necessário
atrair, de uma forma dinâmica, esses jovens. Isto constitui
um dos grandes problemas que se põe que é mostrar-lhes
um pouco do que foi a cultura dos pais, porque muitos desses jovens
já são de outra nacionalidade. Se queremos manter
alguns desses laços culturais, é preciso criar dinâmicas
para os atrair para estes ou outros organismos que possam vir
a surgir.
Adiaspora.com: Abordou uma problemática que muito nos
preocupa: o mobilizar dos jovens para a nossa cultura, que é
extremamente difícil, talvez pela forma em que é
apresentada. É muito fácil falarmos de tentar atrair
os jovens para junto de nós e da nossa cultura, mas como?
Dr. A. B. M.: Confesso não ser grande especialista nessa
matéria. Por exemplo, a Casa dos Açores de Toronto
e demais clubes que por aqui existem de origem açoriana,
pois é o que conheço melhor, têm-se orientado
até agora para a primeira e segunda gerações.
A primeira ainda vem a estas organizações comunitárias;
a segunda geração talvez muito menos, mas o que
se passa actualmente é que a terceira geração,
aqueles que estão na escola, procuram inteirar-se, cada
vez mais, do legado cultural dos pais e avós. Temos de
criar nestes organismos forças de atracção
e dar-lhes espaços para a realização de actividades
que lhes possam satisfazer. Não podemos ficar cristalizados
no tempo e organizar actividades sempre do mesmo tipo e com as
quais não se identificam.
Adiaspora.com: Agora virando-nos um pouco para uma temática
que diz respeito à mulher. Durante séculos, a sociedade
portuguesa, no geral, era à primeira vista, uma sociedade
patriarcal, reduzindo a condição feminina fundamentalmente
ao lar, à maternidade e ao trabalho campestre e doméstico.
Contudo, não concorda que, embora fosse vedada à
mulher a educação, voz política e social,
a sociedade portuguesa e latina no seu geral nesses tempos negros
para a mulher, acabava por ser vincadamente matriarcal na sua
essência, sobretudo nos meios rurais?
Dr. A. B. M.: Se olharmos, por exemplo, para a situação
do Minho em que é, sobretudo, o homem que emigrava, a mulher
passava a ser o centro da economia dos que ficavam. Era ela que
iria gerir a casa e o campo. O homem ia procurar recursos fora,
mas a mulher passava o centro agregador da família. No
caso açoriano, isso não se passa assim. É
diferente. Enquanto no Minho, a mulher, em geral, auxiliava nos
trabalhos do campo, nos Açores, ao longo da história,
não encontramos situações em que a mulher
o fazia. Podia auxiliar em pequenos trabalhos mas as tarefas mais
duras eram reservadas aos homens. A mulher nos Açores era
mais virada para a domesticidade, para a casa. O homem é
que trabalhava. Na situação dos Açores com
a emigração, ocorreu uma alteração
no séc. XX, com a vinda de emigrantes para o Canadá,
em que a mulher passa também a ter um contributo no trabalho.
Passa também a trabalhar fora, o que vai forçosamente
gerar uma nova dinâmica familiar e alterar os costumes dos
açorianos. É uma alteração talvez
mais radical do que aquela que se passou no continente.
Adiaspora.com: Quer-nos traçar a evolução
da condição feminina no arquipélago dos Açores
nos últimos 50 anos?
Dr. A. B. M.: Muita coisa mudou, não diria nos últimos
50 anos, mas, sobretudo, a partir de 1974. Há uma certa
alteração, mas as mudanças talvez não
sejam tão visíveis. Não há assim uma
grande participação da mulher, sobretudo, devido
a níveis de instrução inferiores. Vamos encontrar
ainda hoje uma diferenciação bastante acentuada
entre a mulher e o homem. Vamos encontrar a mulher a trabalhar
em supermercados, hipermercados, lojas comerciais, limpeza, e
pouco mais. Não há grande integração
social. A intervenção social de maior relevância
que encontramos é ligada à igreja, e na política
muito pouco.
Adiaspora.com: Quer isto dizer que ainda hoje a mulher nos Açores
acaba por não enveredar pela formação académica
superior com muita frequência?
Dr. A. B. M.: Nos últimos anos tem vindo a crescer, mas
nota-se ainda hoje uma clivagem muito grande. Existe um estudo
sobre a situação da mulher nos Açores. Foi
feito na Universidade por mim e por vários colegas e que
revela exactamente isto. A grande ocupação é
nos hipermercados, em empregos de nível remuneratório
muito baixo e com pouca participação, muitas vezes,
também devido a um certo desconhecimento. Porquê
que ao trabalhar, por exemplo, num hipermercado, não ganha
o mesmo que o homem que trabalha ao seu lado dela. Existe também
um certo desconhecimento da lei.
Adiaspora.com: Em relação ao quadro que se vive
actualmente no continente, a mulher açoriana ainda está
numa posição inferior?
Dr. A.B.M.: Não sei se isso só se passará
nos Açores. Se olharmos para a política portuguesa
actual, a questão das quotas de mulheres revela um pouco
a situação. Temos de criar quotas para que haja
alguma participação das mulheres, o que indicia
um pouco o que se passa a nível do país. É
um dos indicadores.
Adiaspora.com: Hoje, Portugal já não é um
país de emigração mas de imigração
com a chegada de elementos das ex-colónias e dos países
de leste. Como é que este novo fenómeno tem vindo
a afectar o tecido social do país?
Dr. A. B. M.: É um fenómeno recente. Os impactos
ainda são desconhecidos. É certo que as tendências
demográficas das populações europeias quase
em todos os países tendem para o envelhecimento. Um aspecto
positivo desta imigração será renovar um
pouco as populações e o envelhecimento da população
poderá ser compensado por estas entradas. Será um
aspecto positivo, mas ainda se conhece mal quais os impactos destes
movimentos.
Adiaspora.com: Estes movimentos começaram após
a desagregação da antiga União Soviética
nos anos 80 e depois com a guerra da Bósnia, etc.?
Dr. A. B. M.: Sobretudo a partir dos anos 90. Nos Açores,
existem já uma série de novas comunidades mas ainda
não se conhece bem o impacto que elas têm na sociedade.
Vai ser feito um estudo neste sentido, quer a nível regional,
quer a nível nacional. É certo que uma grande movimentação
vai criar desequilíbrios mas também é certo
que esta imigração vem ocupar um mercado de trabalho
que os portugueses já não querem fazer, ou não
fazem. Vem compensar, de certa forma, falhas que temos. Vamos
encontrar muitos destes imigrantes recentes na construção
civil, na restauração, nos trabalhos mais duros
e que exigem mais tempo. Mas os impactos ainda não são
bem conhecidos.
Adiaspora.com: Falou-nos que existem algumas comunidades de imigrantes
nos Açores. São oriundos de que países?
Dr. A. B. M.: Há uma série de comunidades de africanos
de S. Tomé, Angola, Cabo Verde e também de Leste
que vieram para os Açores, sobretudo, após o cismo
do Faial, para trabalhar na reconstrução desta ilha.
Ainda não sabemos qual será o impacto quando terminar
a reconstrução do Faial que está prevista
para daqui a dois ou três anos. Enquanto houver trabalho
vai haver ocupação. Depois não sabemos qual
será o impacto; se essa população sairá
dos Açores à procura de melhores condições
ou se, permanecendo, quais as condicionantes e o que teremos de
criar para assimilá-los.
Adiaspora.com: Além dos novos imigrantes, Portugal tem
de se debater com o problema dos chamados regressados, isto é
imigrantes que retornam ao seu país após algum tempo
no estrangeiro onde, em alguns casos, encontraram o insucesso.
Quer-nos falar um pouco das iniciativas e projectos que actualmente
se desenvolvem para facilitar a sua integração na
sociedade hodierna de Portugal, e dos Açores?
Dr. A. B. M.: No caso dos Açores, estamos numa fase onde
não há praticamente emigração e os
que emigram é gente especializada. Quando se emigra, já
não o fazemos para trabalhar na construção
ou nas quintas. O que se exige actualmente é pessoal especializado
com bons conhecimentos técnicos. As pessoas que saem, já
sabem que vão encontrar essas dificuldades. É um
dos factores que têm retraído a emigração
porque quem tem conhecimentos técnicos também os
pode aplicar onde está, tendo possibilidades de demonstrar
as suas capacidades técnicas. No que concerne aos regressados
não existem projectos. No caso dos Açores, temos
assistido, nos últimos anos, a um número crescente
de regressados, o que não significa que regressaram por
terem encontrado o insucesso. Tem sido feito um estudo na Universidade
dos Açores, limitado ainda a dois concelhos de S. Miguel,
em que cerca de 80% das pessoas que regressaram atingiram os seus
objectivos, suponho eu, económicos. Regressaram talvez
para viver uma vida mais descansada nos Açores. Para estes,
importa criar atractivos para que invistam possivelmente alguns
conhecimentos que tenham adquirido na sua experiência profissional
no estrangeiro e, tendo dinheiro, atrai-los para algum investimento
nas localidades onde se vão fixar. Todavia, não
são muitos os casos. Em dois concelhos essencialmente rurais
nos últimos anos são cerca de 110 famílias
que regressaram.
Adiaspora.com: Em termos gerais, ainda se mantém a realidade
em que o emigrante sai e fixa-se permanentemente no estrangeiro?
Dr. A. B. M.: Sim. Há sempre a ideia do retorno. Quando
se sai, por exemplo, no caso dessas 110 famílias, a ideia
à saída foi sempre de retorno. Mas esta é
uma amostra relativamente reduzida. A maior parte dos emigrantes
acabam por se fixar nos países de acolhimento, pois ficam
lá muito tempo, têm os filhos e os netos. Sentem
a relação familiar como estável e de contacto,
o que os obriga a permanecer. As situações de retorno
são quase sempre excepcionais.
Adiaspora.com: Referiu que 80% dos regressados da amostra atingiram
os seus objectivos nos estrangeiro a que se propuseram. Contudo,
resta 20% que não o conseguiram?
Dr. A. B. M.: Alguns podem ter conseguido porque alegam, sobretudo,
que quererem dar uma educação de origem aos filhos.
Podem ter tido sucesso económico mas regressam para que
os filhos sejam criados no ambiente em que eles o foram. Há
outras situações de saúde e questões
familiares, por exemplo, indivíduos que enviuvaram e que
regressam sozinhos. Estas questões familiares também
compõem esses 20%. Podem ser pessoas bem sucedidas economicamente
mas que têm outras razões para o seu regresso.
Adiaspora.com: Remetendo-nos agora para o campo pessoal. Quer-nos
inteirar quais os seus planos para o futuro, se deseja continuar
a actuar neste sector, se tem planos para retirar-se para uma
ilha e escrever uns livros, dar a volta ao mundo, plantar uma
árvore etc., e claro, se está nos seus planos voltar
novamente a Toronto?
Dr. A. B. M.: Estou e quero continuar a investigar àcerca
da emigração, neste caso, açoriana. Não
saindo da universidade, quero fazer carreira neste âmbito.
É claro que esta actividade vai necessariamente acabar
por produzir artigos e possivelmente livros sobre esta temática,
também como comunicações em colóquios,
congressos nacionais e internacionais e encontros comunitários.
Gostaria de voltar a Toronto mais vezes, se houver convite e produção
que justifique a minha vinda.
Adiaspora.com: Quer deixar a uma mensagem às comunidades
luso-canadianas?
Dr. A. B. M.: A situação das comunidades luso-canadianas,
daquilo que me tenho apercebido nestes dias do contacto, quer
o Presidente da Casa dos Açores de Toronto, quer com outros
intervenientes, é que há uma certa dispersão
em vários clubes, não havendo um elemento agregador
da própria comunidade. Acho que a Casa dos Açores
poderia ser um desses elementos e é fundamental que tenham
uma sede condigna que ofereça, além do que este
espaço pode propiciar, outras actividades, e já
se falou dos jovens. Esta dispersão pelos vários
clubes não tem propiciado uma certa unidade que crie um
lobby como seria natural que acontecesse numa comunidade de 270,000.
São poucos os intervenientes políticos que saem
da comunidade luso-canadiana actualmente. O que encontramos em
determinadas comunidades nos Estados Unidos não acontece
no Canadá, em que se criam os tais lobbies resultantes
da unidade que aqui, segundo me tenho apercebido, ainda não
existe. É uma opinião pessoal. Nestes dias, foram
dados alguns passos para a criação da nova sede
da Casa dos Açores de Toronto, o que poderá ser
um ponto de partida para uma certa unidade e uma nova dinâmica.
Adiaspora.com: Os nossos agradecimentos pelo tempo e atenção
que nos dispensou. Adiaspora.com, e toda a sua equipa, desejam-lhe
as melhores venturas para os seus projectos de investigação
de tão interessante temática, e agradece a amabilidade
quede nos ter concedido esta entrevista.
Entrevista exclusiva de Adiaspora.com
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