JOÃO LEONEL (O RETORNADO), UM CANTADOR AO DESAFIO AÇORIANO
EM DIGRESSÃO POR TERRAS DO CANADÁ
(Toronto, 12 de Novembro de 2003)
Por Adelina Pereira - Adiaspora.com
Adiaspora.com: Temos entre nós, o Senhor João Leonel
da Ilha Terceira, que se encontra em digressão por terras
do Canadá nas cantorias ao desafio com um seu colega de
S. Miguel, o jovem Paulo Botelho (Chalana). Conte-nos um pouco
sobre a sua vida.
João Leonel: Nasci a 22 de Dezembro de 1944 no Curato
da Ribeira Seca do actual município de S. Sebastião,
por coincidência o mesmo curato onde o primeiro homem nascido
na Ilha Terceira nasceu.
Adiaspora.com: Por essa altura, a que actividade se dedicavam
os seus pais?
João Leonel: O meu pai era agricultor e a minha mãe
doméstica.
Adiaspora.com: Como foi a sua infância na Terceira e o
que fez após ter concluído os estudos escolares?
João Leonel: Após ter acabado a escola fui empregado
de comércio, isto é, fui empregado de balcão
em algumas mercearias. As cantigas aparecem já na escola
onde me chamava muita atenção tudo que tivesse rima.
Foi na escola primária que surgiu este interesse pelas
cantigas. É claro que isto é uma cultura, uma tradição
secular segundo os historiadores, principalmente na Ilha Terceira,
onde aparece em 1810. Eu em criança e o meu pai gostávamos
muito destas cantorias.
Adiaspora.com: Já que estamos a falar sobre da história
destas cantorias, quem é que introduziu supostamente esta
moda nas ilhas?
João Leonel: De início, esses primeiros improvisadores
que apareceram cantavam na moda da chamarrita e utilizava só
duas rimas na quadra, ou seja a redondilha. Rimavam só
o segundo verso com o quarto. Quando passaram para as quatro rimas
onde se rima o primeiro com o terceiro e o segundo verso com o
quarto, a chamarrita era um pouco apressada. Não dava o
tempo e o espaço suficiente para que se pudesse passar
a mensagem e fazer a cantiga mais perfeita, mais poética,
mais recheada...
Adiaspora.com: Por outras palavras, não dava tempo para
pensar o verso que iria ser cantado a seguir?
João Leonel: Exacto. Segundo o que se sabe, e penso ser
certo, há um improvisador considerado o maior de todos
os tempos de alcunha Charrua, de nome próprio José
de Sousa Brasil, que foi, juntamente com um tocador que penso
ter sido o Laureano Correia dos Reis, inventaram esta melodia
que se conhece na nossa ilha pela "Moda do Charrua".
Adiaspora.com: Vamos voltar novamente à chamarrita. Ainda
noutro dia tive a ocasião de ouvir que a chamarrita surgiu
de uma lenda acerca de uma viúva chamada Rita. Tem algum
conhecimento a este respeito?
João Leonel: Não tenho conhecimento disso. A chamarrita
ainda hoje faz parte dos bailes de roda como lhes chamam e folclóricos.
Deixou de fazer parte das cantigas ao desafio, precisamente por
ser uma moda muito apressada e não dava tempo suficiente
para que a redondilha ou quadra saísse perfeita.
Adiaspora.com: Por outras palavras, a chamarrita transitou das
cantorias repentistas para o folclore e a dança e deixou
de fazer parte das cantigas ao desafio. Atrás mencionou
que, de facto, o seu interesse por tudo que rimasse desde surgiu
muito cedo. Como apareceu esse seu interesse pelas rimas quando
ainda frequentava a escola primária. Foi através
da sua professora?
João Leonel: Em todos os livros que houvesse cantigas,
quadras, tudo que tivesse rimas, pequenos poemas de autores desconhecidos
ou não, interessavam-me sempre. Tinha a curiosidade de
ler com atenção tudo que rimasse. Acontece que há
uma tradição muito enraizada na Ilha Terceira que
são as danças de Carnaval. Eu vim a participar na
primeira dança com a idade de doze anos. Um meu tio, que
era o mestre da dança ou "puxador" como lhe chamavam
naquela altura, não sabia ler. Por conseguinte, eu tinha
de ler as cantigas para ele as decorar. Certa vez, descobri que
uma dessas cantigas não rimava. Ele, que não sabia
ler, não acreditou, pois eu era um miúdo de 11 anos.
Quando o homem que fez a dança foi ao ensaio o meu tio
chamou-lhe a atenção e disse-lhe: "Olhe que
o meu sobrinho diz que esta quadra não rima." E realmente
a quadra não rimava. A partir daí as pessoas começaram
a aperceberem-se que eu tinha noção da rima e alguma
facilidade. Escrevi o meu primeiro textozito de Carnaval aos 13
anos de idade e estreei-me a cantar ao desafio num lugar chamado
Corpo Santo, que pertence à cidade de Angra do Heroísmo.
Faço a minha primeira cantoria com um antigo cantador já
falecido, chamado João Evaristo aos 14, quase 15 anos de
idade. A partir daí, claro, não tive muita saída
porque existiam os antigos cantadores que o povo prezava e de
quem gostava muito. Assim, um mais novo que aparecesse não
tinha assim muita oportunidade. Mais tarde, fui para Angola onde
prestei serviço militar. Deixei automaticamente as cantigas
porque lá não havia essa cultura, essa tradição.
Cumpri o meu serviço militar, voltei à terra, aos
Açores, e casei. Depois regressei a Angola, agora como
civil, para lá radicar-me. Ao todo, estive 10 anos em Angola.
Adiaspora.com: Que tipo de actividade exerceu em Angola?
João Leonel: Fui camionista e mais tarde estabeleci-me
com um snack-bar e uma mercearia numa cidade chamada Melange no
norte de Angola.
Adiaspora.com: Com a descolonização regressa novamente
à Ilha Terceira?
João Leonel: Retorno aos 31 anos de idade.
Adiaspora.com: Significa que as cantorias ficaram de lado durante
todo este período?
João Leonel: Escrevia umas coisas porque isto é
algo de inexplicável, algo que está dentro de nós.
É um dom e há sempre aquela necessidade de exteriorizar
o que está cá dentro. Escrevi umas coisas que não
cheguei a arquivar, não sei delas. Regresso à terra
em 1975, após a descolonização de Angola.
Depois, ao chegar aos Açores, verifiquei que alguns dos
cantadores tinham saído, alguns tinham emigrado, outros
falecido, e aí a ter de novo lugar nas organizações
que existiam na altura. Em 1977 vou à Califórnia,
cantar a uma grande festa dos portugueses ali radicados. Estive
por lá até 1981.
Adiaspora.com: Permaneceu algum tempo na Califórnia. Trabalhou
lá?
João Leonel: Sim. Fiz algumas cantorias
durante a minha estada na Califórnia em vários locais
onde haviam portugueses. Depois vim até ao Canadá
em 1982. Também aqui fiz algumas cantorias, tendo posteriormente
regressado aos Açores onde vivo actualmente.
Adiaspora.com: Por que motivo não optou por ficar na Califórnia?
João Leonel: É fácil. Se nós fossemos
todos benfiquistas andávamos todos vestidos de vermelho.
Nem todos temos a mesma óptica da vida e das coisas. Não
posso comparar Portugal, que é um país pobre, ao
Canadá ou à América, mas a minha maneira
de estar na vida é diferente da de muitos, como muitos
são diferentes de mim. Não gostei do estilo de vida
que me era apresentado na altura.
Adiaspora.com: Novamente nos Açores, retoma as cantigas?
João Leonel: Exacto. A partir daí já cantei
nas nove ilhas dos Açores, já fui ao continente
a diversos lugares. Ainda bem que Portugal continental começa
a interessar-se pela cultura açoriana, o que é muito
bonito.
Adiaspora.com: Acha que está a haver um novo interesse
no continente pela açorianidade por parte dos continentais.
João Leonel: Sim. A minha primeira actuação
para os continentais foi na cidade de Évora, a cidade irmã
de Angra de Heroísmo, embora tenha estado anteriormente
na Casa dos Açores mas isto ainda era no âmbito açoriano,
o que já não foi o caso em Évora onde actuei
numa festa de rua, divulgando uma arte lá desconhecida.
As pessoas gostaram. Daí convidaram-nos a ir a Mafra para
actuarmos no lançamento de uma antologia colectiva de poesia
de mais de 40 poetas populares daquele concelho.
Adiaspora.com: Ali teve oportunidade de conhecer outros poetas
populares continentais e de outras regiões?
João Leonel: Sim. Com um estilo diferente pois ali canta-se
à desgarrada e utilizam só as tais duas rimas, que
se usavam na chamarrita nos inícios das cantigas ao desafio
nos Açores. Só rimam o segundo com o quarto verso,
o que é muito mais fácil. A quadra redondilha que
empregamos na nossa terra, como indica a sua própria designação,
tem de apresentar quatro versos ou quatro rimas. Usamos também
muitas vezes, quase sempre, a sextilha no terminar de um desafio.
São seis versos e seis rimas em rima alternada, isto é,
o primeiro rima com o terceiro, o segundo rima com o quarto, o
terceiro com o quinto e o quarto com o sexto. É um pouco
complexo.
Adiaspora.com: Foi ao continente à cidade de Évora,
primeiramente a convite da Casa dos Açores, depois participou
numa festa de rua nessa mesma cidade?
João Leonel: Houve alguns colegas meus que já actuaram
em Coimbra.
Adiaspora.com: E depois foi Mafra num encontro de poetas populares.
Agora voltando novamente à técnica do repentista
açoriano, isto é, do cantador ao desfio. Este tipo
de manifestação artística obriga ao seu protagonista
a usar a imaginação e a uma flexibilidade e acuidade
mental extraordinária. Ao que me parece, no desafio um
cantador pega num tema e o que se segue vai dar continuidade ou
ripostar. É assim?
João Leonel: Eu chamo-lhe, e penso que estou certo, a
cantiga ao desafio é uma conversa rimada a dois.
Adiaspora.com: Um diálogo?
João Leonel: Sim. Acontece que, por vezes, aparece um
tema que os dois conhecem, e noutras um conhece e o outro não,
depende do companheirismo ou se um quer brilhar mais do que o
outro. Por vezes, aquele que encontra o tema, ao aperceber-se
que o outro não sabe, segue o tema e o outro que se desenvencilhe.
Por isso é que se chama cantiga ao desafio. Claro, que
isto nos obriga a ter alguns conhecimentos. Actualmente, há
um moço que é formado. É engenheiro. Penso
que é, de todos os tempos, o cantador com mais conhecimentos,
pois possui um curso superior. Os outros são todos gente
do povo. Tentamos sempre aperfeiçoar-nos para não
perdermos o comboio. Há aquela plateia que admira o conhecimento
e há aqueloutra que admira a cantiga em si. Actualmente,
possuímos pessoal para satisfazer todos os gostos dos amantes
das cantigas ao desafio.
Adiaspora.com: Quais são os temas mais tradicionais ou
mais habituais das cantigas ao desafio.
João Leonel: Em todas as freguesias há um santo
padroeiro e a festa de rua é, geralmente, feita em honra
desse mesmo padroeiro. Nem sempre, mas quase sempre, fala-se um
pouco do patrono da festa, o padroeiro daquela freguesia, o que
não significa que seja sempre, nem que se adeqúe
ao desafio em si.
Adiaspora.com: Mas é sempre um tema muito comum?
João Leonel: Sim, é muito comum abordar o padroeiro
da festa, que mais não seja em duas ou três cantigas.
Depois, vai-se criando o tal diálogo e, de repente, aparece
um tema que interesse, ou não, como a vida, a morte; porque
estamos aqui; quem acredita na vida para além da morte...aquelas
coisas que vivemos à procura sem sabermos de quê...
Adiaspora.com: Os chamados problemas existenciais.
João Leonel: E cada um defende a sua tese conforme a sua
capacidade, poder de rima e de improviso.
Adiaspora.com: Outro tema que tenho visto surgir nas cantorias
ao desafio é a sátira política, ou seja o
comentário político.
João Leonel: Sim. Por vezes nós somos o porta-voz
daqueles que não têm voz. Dizemos coisas a rir que
a sério não as diríamos. Às vezes,
criticamos coisas do governo regional ou nacional. Por vezes,
tiramos partido dos debates políticos na televisão,
e ironicamente brincamos com as situações como uma
espécie de alerta para aquilo que achamos que não
está bem.
Adiaspora.com: Outro tema que também parece surgir são
os amores ou desamores. É verdade, ou é noção
minha?
João Leonel: Sou um pessoa um bocado taciturna. Olho muito
para dentro de mim. Debruço-me muito à janela da
alma, como costuma dizer-se. E por vezes canto desamores pelos
quais já passei e às vezes o que canto vai de encontro
a quem está a ouvir, que diz: "Olha, também
já passei por isso." Essa parte sentimental, por vezes,
é muito aceite pelos ouvintes.
Adiaspora.com: Acha que para ser-se um bom cantador ao desafio
é necessário ter-se alma de poeta?
João Leonel: Sem dúvida. O grande poeta Camões
dizia que todos nós somos poetas. Ser-se poeta é
pintar algo com as cores da nossa imaginação, neste
caso com as letras. Tudo que seja feito como mensagem da alma
é poesia, neste caso rimada, porque há poesia livre
ou verso branco! Camões dizia que não há
poemas bons, nem poemas menos bons. Há o poema que diz
mais e o poema que diz menos.
Adiaspora.com: Voltando outra vez às origens da cantoria
ao desafio, falou que surgiu por volta de 1810. Em que ilha?
João Leonel: Na Ilha Terceira. Há quem diga que
não tenha sido aquela a sua verdadeira origem. Nós,
na Ilha Terceira, somos a continuação das gentes
do norte do continente e naturalmente esta moda veio de lá.
Há um povoador chamado Jácome
de Bruges, o capitão-donatário da ilha, que veio
povoar a ilha com 30 famílias. Era de origem flamenga mas
vivia, antes de vir para os Açores, em Loulé no
Algarve na terra do grande António Aleixo, e as famílias
que o acompanharam eram nortenhas. Quem visita a Ilha Terceira
hoje pode ver nas residências alguns vestígios da
arquitectura típica do Norte de Portugal nas chaminés
de mãos postas e as janelas de guilhotina. Segundo a ideia
de várias pessoas, não que tenho lido em lado nenhum,
que isto ainda vem de mais longe. Até já falaram
do Brasil, mas são coisas que não posso afirmar.
Mas a cantoria veio para os Açores com esses povoadores
como as Festas do Espírito Santo.
Adiaspora.com: Mas repare que as Festas do Espírito Santo
e o povoamento das ilhas surgiram muito antes de 1810. O que houve
neste ano nos Açores para despoletar essa onda de cantoria?
João Leonel: Aparecem esses dois improvisadores, de nome
António Terra e António Inácio, e que eram
chamados para abrilhantar as tais festas de rua ou uma festa do
Espírito Santo em que discutiam um com o outro rimando
e, segundo que se sabe, foram através desses dois homens,
que as cantigas ao desafio tiveram o seu início.
Adiaspora.com: Agora quer deixar uma mensagem para os jovens
que queiram estrear-se nestas lides. O que aconselha a um jovem
que aspira ser um bom cantador ao desafio?
João Leonel: Vou citar o grande cantador, José
de Sousa Brasil, o Charrua, que, numa entrevista concedida à
Rádio Clube de Angra, disse: "Tu, o estudante que
frequentas o curso médio ou superior, que vives no mundo
das letras, e não consegues fazer delas o que eu faço,
que sou semi-analfabeto, por algum motivo sou digno da tua admiração.
Aproxima-te de nós e vê que não é fácil
este improviso." Conheço jovens que têm esse
dom e a noção da rima na Terceira e em S. Miguel.
Alguns já estão a participar como o jovem "Chalana"
que me acompanhou a Winnipeg e está cá comigo em
Toronto. Tem 24 anos de idade. Portanto é um jovem. E há
outros que estão a começar e que creio que vão
dar continuação a esta nossa rica tradição
cultural fundamentalmente terceirense e micaelense.
Adiaspora.com: Andou um pouco pelas comunidades. Já esteve
nos EUA e passou pelo Canadá. O que acha dessa tradição
nas comunidades. Acha que ainda há quem se interesse pelas
cantigas ao desafio aqui entre nós?
João Leonel: Creio, para lhe falar a verdade e pelo que
me tenho apercebido, que há um interesse maior. Talvez
a saudade, talvez o não querer perder as suas raízes
porque nós gostamos mais do que é nosso quando estamos
mais distante. Há interesse muito grande por parte das
comunidades de preservar o que é nosso, inclusive as cantigas,
as danças do Carnaval, os pézinhos do bezerro, as
Festas do Espírito Santo, etc.
Adiaspora.com: Agora gostaria de conduzi-lo para o campo pessoal.
Quais são os seus projectos profissionais de futuro?
João Leonel: No há profissionalismo nas cantigas
ao desafio. Somos todos amadores. Não tenho projectos.
O número de actuações aumenta. Este ano,
tive uma época de 103 cantorias nos Açores, o que
é muito. A época começa anualmente em Abril
ou Maio e acaba em Outubro. Neste período, tive 103 cantorias
o que implica cantei quase todos os dias. Houve um acréscimo
significativo, o que quer dizer que as pessoas a interessar-se
cada vez mais.
Adiaspora.com: Quando pensa regressar a Toronto?
João Leonel: Penso regressar logo que me chamem. Todavia,
desta feita, passei por Toronto voluntariamente, pois ninguém
me chamou cá. Fui convidado para cantar em Winnipeg na
semana Cultural da Casa dos Açores daquela cidade. Vim
de lá no dia 10 para cá porque o Sr. José
Henrique Brum, que é muito meu amigo, ao saber desta minha
viagem, telefonou-me e sugeriu que passasse por cá e desse
uns espectáculos. Eu aderi e estou contente.
Adiaspora.com: Agradecemos o tempo que nos dispensou e desejamos
as maiores felicidades nessa sua quimera de preservar as raízes
do nosso povo através das cantigas ao desafio.
João Leonel: Eu agradeço
e bom trabalho! Muito obrigado pela vossa atenção.
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