Manuel Antão: UMA VIDA AO "DESAFIO" NA CANTORIA
AÇORIANA
(Toronto, 14 de Novembro de 2003)
Por Adelina Pereira - Adiaspora.com
Adiaspora.com: Estamos aqui no Sport Club Lusitânia de
Toronto na companhia do Sr. Manuel Antão, o já conhecido
cantador ao desafio que hoje esteve a actuar aqui. Pode dizer-nos
por favor onde nasceu e em que data?
Manuel Antão: Nasci a 20 de Novembro de 1927 na freguesia
Faial da Terra, Concelho da Povoação, S. Miguel.
Adiaspora.com: Conte-nos um pouco como foi a sua infância
e sua criação em São Miguel?
Manuel Antão: A minha criação em São
Miguel foi a trabalhar nos "matos" no plantio e a cortar
silvas, espalhar adube pelas terras, enfim, nos trabalhos do campo.
Depois, fui trabalhar para um prédio onde apanhei frio
que resultou numa pneumonia. Então resolvi meter-me no
negócio da banana e trigos para poder viver. Arranjei uns
dinheirinhos neste negócio e comprei uns "geixos"
e umas "geixas" e resolvi arranjar uma noiva e casar.
Na altura tinha cerca de 24 anos de idade. Mas naquele tempo eu
já cantava fados. Não era o desafio. Comecei a cantar
o fado com os meus 14 anos de idade.
Adiaspora.com: O que o levou a gostar do fado?
Manuel Antão: Foram as minhas irmãs. (Eu tinha
seis irmãs.) As quatro mais velhas cantavam o fado muito
bem, isto é, a desgarrada. Assim comecei a estudar fados,
os fados do continente, de Lisboa. Comecei a cantar fados para
o povo. Fui crescendo e cantava o fado cada vez mais. Durante
a Segunda Guerra Mundial a tropa veio instalar-se em São
Miguel em todas as freguesias da ilha. Como eu cantava bem o fado,
a tropa ia buscar-me para cantar o fado nos quartéis. O
oficial avisava o meu que a patrulha da noite iria buscar-me para
ir para os quartéis cantar. Naquele tempo, era novinho
com os meus 14, 15 anos, e o meu pai nem queria mas o oficial
de serviço dizia: "Ele sai com a guarda e a guarda
vai pô-lo em casa." Fiz muitas cantorias de fados nos
quartéis e depois nas Casas do Espírito Santo. Assim
que entrava, aquela gente ficava toda doida! "O Antão
está aqui. Vai cantar o fado!" Aquelas raparigas por
ali, todos queriam ouvir-me a cantar o fado.
Adiaspora.com: Então era muito popular com as moças?
Manuel Antão: Se era! Namorei muitas! Fui crescendo e
comecei a compor os meus próprios fados e a ensaiar grupos
folclóricos os quais, na nossa terra, chamámos de
"danças". Passei 5 anos a ensaiar estes grupos
até casar-me.
Adiaspora.com: Com que idade se casou?
Manuel Antão: Com 29 anos de idade e a minha mulher
19. Depois, vendi os "geixos" e as "geixas"
que tinha para construir uma casa. Não era grande mas o
suficiente para viver quando me casei. Fiquei a dever 7 contos
da casa e se continuasse lá ia ficar atrapalhado para pagar
porque a vida lá era diferente. Nessa altura resolvi experimentar
emigrar para o Canadá para me orientar. Cheguei ao Canadá
em 1957. Parti dos Açores no dia 19 de Junho de 1957 e
comecei a trabalhar aqui no Canadá no dia 24 de Junho,
no dia de S. João. Apanhei um bom serviço nas linhas
de ferro na cidade de Edmonton, Alberta onde arranjei um dinheirinho.
Trabalhei lá 7 anos. Depois fui a Portugal de visita (porque
estive 8 anos sem a minha esposa. Ela veio para cá depois.)
em 1964 e arrebentou-me o estômago lá e fui operado.
Quando regressei tive medo de voltar para as linhas de ferro.
Resolvi ficar em Toronto onde arranjei emprego no Toronto Western
Hospital onde trabalhei 6 meses mas o salário era pequeno.
Então, disseram-me que no St. Michael's Hospital se ganhava
mais. Pagavam mais 10 cêntimos a hora, o que naquele tempo
era muito dinheiro. Trabalhei neste hospital cerca de 8 meses
sem nunca ter um dia de descanso.
Adiaspora.com: Quando regressou ao Canadá desta feita,
fez-se acompanhar de sua esposa?
Manuel Antão: Não. Ela veio quando já me
encontrava a trabalhar no St. Michael's Hospital. Foi o seguinte.
A vida ajudou-me e paguei o resto da casa que devia. Comprei mais
outra casa em Portugal e a concertei e comprei mais 10 alqueires
de terra, que era a ideia que tinha, comprar mais uma casa ajeitadinha
e 10 alqueires de terra para regressar aos Açores. Depois
escrevi à minha esposa dizendo: "Olha lá. Vou
passar aqui o Inverno e depois vou-me embora de vez." Ela
respondeu a dizer de vir ao Canadá. Então escrevi-lhe
novamente: "Vens cá passar o Natal comigo e vamos
juntos para lá." Assim ele veio com a minha filha
mais nova, tendo deixado os outros dois filhos lá. Quando
vim para o Canadá tinha a minha filha mais velha tinha
11 meses. Depois nasceu outra em 1958. Depois voltei aos Açores
em 1961 e nasceu uma outra filha em 1962.
Adiaspora.com: Quer dizer que cada vez que ia lá de férias
fazia um filho?
Manuel Antão: Sim. Como estava a dizer, quando a minha
esposa veio para o Canadá deixou os dois mais velhos lá
e trouxe a mais nova. Mas quando cá chegou, a minha esposa
disse-me: "Não vou embora daqui! Arranja os papéis
para eu ficar cá pois já não volto para os
Açores." Assim fiz e depois fiz a carta chamada dos
meus outros dois filhos. Nessa altura, tive de comprar casa. Comprei
uma casa aqui em Toronto mas a minha esposa não gostava
dela pois ficava escondida por detrás das outras. Comprei-a
por $10 000 e vendi-a por $12 000. Então, comprei uma outra
por $24 000 onde ainda hoje moro já há mais de 30
anos.
Adiaspora.com: Continuou a trabalhar no St. Michael's Hospital?
Manuel Antão: Não. Quando a minha esposa cá,
pedi a uma freira para lhe arranjar trabalho lá na limpeza
ou algo parecido. A freira disse que lhe arranjava trabalho se
ela soubesse falar inglês. Respondi-lhe: "Se ela veio
agora como é que ela pode falar inglês!" ao
qual ela assegurou que lhe iria arranjar outra coisa. Mas como
passadas três semanas ainda não tinha aparecido nada,
informei a enfermeira que iria largar o serviço porque
tinha de procurar trabalho para mim e para a minha mulher. Então
saí e acabei por arranjar emprego na Molson, a fábrica
de cerveja, onde trabalhei 24 anos. Foi lá que fiz a minha
vida. Depois comprei mais duas casas nos Açores, comprei
mais terras.
Adiaspora.com: Nos primeiros anos no Canadá concerteza
não se dedicou muito às cantigas?
Manuel Antão: Não. Cantava fados em casa
particulares sempre que para isso me convidavam. Por aços,
a primeira vez que fui cantar fora foi na Rua Augusta para uma
família do Pico que ali se juntou com pessoal do continente.
Alguém me perguntou se eu era o Fernando Farinha ao qual
respondi que não, que era de São Miguel. Comecei
a cantar aqui e acolá e começou a correr a notícia
que eu cantava bem. Foi nessa altura que os cantadores ao desafio
locais vieram ter comigo para me convidar a cantar com eles.
Adiaspora.com: Que cantadores ao desafio havia em Toronto nesse
tempo?
Manuel Antão: Nesse tempo havia o Oliveira da Candelária,
o já falecido Oliveirinha da Relva que depois foi para
América. Depois vieram cantadores de fora, da Califórnia
e Montreal e São Miguel, para cantar comigo. Quando comecei
a cantar com esses cantadores que tinham muita fama é que
o povo começou a reconhecer-me.
Adiaspora.com: Disse-nos que iniciou a sua vida artística
a cantar fado e passou a cantar ao desafio.
Manuel Antão: Sim. Mas passei a cantar ao desafio já
cá no Canadá.
Adiaspora.com: Mas cantar fados é uma coisa e ao desafio
é outra. A cantiga ao desafio exige letras de improviso
e rima?
Manuel Antão: E também "lembranças"
porque se não tivermos "lembranças" para
ir buscar temas para a cantiga, não dá em nada.
Temos de ter "lembranças" para safar ou desenrascarmos
na cantiga ao desafio.
Adiaspora.com: Quais os assuntos que um cantador ao desafio normalmente
aborda?
Manuel Antão: Há muitos que gostam de cantar sobre
os santos, e outros sobre a vida de Cristo. Quando comecei a cantar
ao desafio também o fazia. Falava, por exemplo, da vida
S. José ou de Nossa Senhora e procurámos qual a
maneira de engatar o nosso relato no do colega que nos precedia.
Por vezes, colocávamos uma pergunta a resposta da qual
desconhecíamos. Depois comecei a levar as minhas cantigas
para a brincadeira. E o povo começou a aderir mais à
brincadeira do ao sério. Cantei com os cantadores todos.
Veio o Charrua da Terceira com quem cheguei a cantar. Veio a Terlu
que era uma mulher que cantava também e muito bem. O pessoal
vinha para ouvir as minhas brincadeiras. Foi aqui, nesta comunidade,
que comecei a ter nome em todo o país e América.
Adiaspora.com: Por onde já viajou com as cantorias aqui
na América do Norte?
Manuel Antão: Por exemplo, aqui no Canadá já
percorri as cidades e algumas aldeias. Já cantei em Montreal,
Kingston, Otava, Oshawa, Oakville, Hamilton, London, etc. Também
já cantei duas ou três vezes na cidade de Winnipeg
e oito vezes na Califórnia.
Adiaspora.com: Com que então é muito popular na
Califórnia?
Manuel Antão: Sim. E não fui mais porque não
quis. Não gosto muito de andar de avião.
Adiaspora.com: Disse-nos há pouco que depois de algum
tempo nas cantorias ao desafio enveredou pela quadra humorística
da qual o povo gostava mais. Acha que o sentido de humor num cantador
também alegra a sua alma, fazendo-o sentir-se mais jovem?
Manuel Antão: É exactamente isso e quanto mais
pessoal estiver a ouvir melhor. Gosto de ver os salões
cheios. Cheguei a cantar na Califórnia para 1 500 pessoas
dentro de um salão. Antigamente, mesmo em Toronto, os salões
eram à cunha. Era só dizer que o Antão iria
cantar que toda a gente ia ouvir as minhas asneiras!
Adiaspora.com: Então o senhor passou estes últimos
no Canadá sempre no meio da risada?
Manuel Antão: Houve uns tempos que experimentei cantar
quadras sérias mas houve uns tocadores, que tocavam muito
bem, que me aconselharam a voltar à quadra humorística.
Assim foi, porque com quadras sérias a plateia está
tão silenciosa, meu Deus! Até dá sono. Com
a brincadeira o pessoal está mais alegre e a festa torna-se
melhor!
Adiaspora.com: Conhece quais as origens desta tradição
das cantigas ao desafio nos Açores?
Manuel Antão: Para lhe falar verdade, não me lembrou
desse tempo porque quando me criei já havia cantadores
velhos. Mas ouvia os mais antigos a cantar cantigas de outros
cantadores que já tinham morrido velhinhos e gostavam de
as escutar. À medida que ia crescendo ia aperfeiçoando-me
na composição de versos que depois, como já
lhe disse, utilizei nas "danças", até
comédias cheguei a fazer!
Adiaspora.com: Há alguém na sua família
a dar continuidade a esta tradição?
Manuel Antão: Não. Tenho pena. Gostava que pelo
menos cantassem mas tenho ninguém na família que
o faça. Todavia, tenho uma netinha de 7 anos que por vezes
e espontaneamente diz uma palavra que rima com outra. Mas ainda
é muito novinha.
Adiaspora.com: Mas o senhor está esperançado que
talvez ela a dar continuidade à sua arte?
Manuel Antão: Sim, talvez seja ela. Por acaso gosto muito
dela. Minha rica neta!
Adiaspora.com: Acha que os nossos jovens luso-descendentes, aqui
em Toronto e nas comunidades onde tem actuado, gostam da cantiga
ao desafio ou o interesse por esta está a diminuir?
Manuel Antão: Depende dos sítios que eles habitam.
Por exemplo, em Toronto já não há muita aderência
à tradição das cantigas. O pessoal prefere
essa "chocalhada" mas há aldeias e vilas por
aí onde muitos rapazes e raparigas vão assistir
às cantigas ao desafio.
Adiaspora.com: A seu ver, as cantigas ao desafio não estão
completamente esquecidas entre os jovens aqui no Canadá?
Manuel Antão: Não estão completamente esquecidas
mas existem cantadores que as vão fazer esquecer.
Adiaspora.com: Como assim?
Manuel Antão: Vou-lhe explicar porque os há. Existem
cantadores que não gostam de ficar mal e não simpatizam
com aqueles que, como eu, que gostam da brincadeira. Gostam estes
de sobressaírem a todo o custo. Por exemplo, há
cantadores aí que já não querem cantar comigo
porque o povo adere sempre mais à brincadeira e ficam um
pouco invejosos. Por exemplo, existem dois ou três cantadores
cá que não querem cantar comigo. Mas não
me importo porque não vivo disto. A minha vida está
feita e também vou me deixar destas lides porque com 78
anos de idade o que ando a fazer por aí? Há três
anos fui cantar à Terceira contratado pela Câmara
Municipal da Praia. Fiz lá 3 cantorias, uma na Praia, São
Mateus e outra em Agualva. Depois em 2001 fui a São Miguel
onde fiz mais nove cantorias.
Adiaspora.com: O que acha que é preciso ser-se para ser
um bom cantador ao desafio?
Manuel Antão: Temos de respeitar e agradar a assistência
porque ela paga para nos ouvir. Não beber muito porque
a pessoa embriagada em cima de um palco não tem valor.
Temos de nos controlar bem e saber levar os cantadores porque
se assim não for os nossos colegas não querem saber
de nós e nos desprezam mas fazem-se nossos amigos. Enquanto
não paguei a minha casa vivia rodeado de cantadores. Mas
quando terminei de a pagar, fiquei mais leve e já cantava
mais à vontade. Nessa altura começaram "a dar-me
com os pés." Enquanto estive na mó de baixo,
todos gostavam de mim mas quando comecei a querer levantar-me
desprezaram-me.
Adiaspora.com: Contudo, acha que valeu a pena ter cantado toda
a sua vida?
Manuel Antão: Para mim valeu porque eu gozei, diverti-me,
diverti o povo e corri mundo. Até fui cantar às
Bermudas. E não fui ao Brasil porque era uma viagem de
avião muito longa!
Adiaspora.com: Queremos agradecer este tempo que passou
connosco e desejar-lhe muito boa sorte. Esperamos continuar a
tê-lo no nosso meio a cantar os seus versos que em muito
nos fazem rir!
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