RECORDANDO O PATRIMÓNIO RECREATIVO E HISTÓRICO
DE ANGRA DE HEROÍSMO
- Entrevista com a Dra. Maria Manuel Velásquez
Ribeiro -
(Toronto, 17 de Setembro de 2003)
Por Carlos Morgadinho - Adiaspora.com
Esteve entre nós, a convite do Centro de Divulgação
de Cultura Açoriana, a jovem licenciada em história
pela Faculdade de Letras de Lisboa, Dra. Maria Manuel Velásquez
Ribeiro, funcionária do Museu Regional de Angra Heroísmo.
Veio participar, nestes dias, no 17° Ciclo de Cultura Açoriana,
uma realização anual daquele Centro, com uma interessante
intervenção sobre os jardins públicos angrenses
e sua história.
Natural de Lisboa, esta jovem acabou por se radicar na Ilha Terceira
por ter contraído matrimónio com um açoriano.
Inicialmente, naquela ilha, dedicou-se ao ensino de história
durante cinco anos. Mais tarde, ingressou na carreira técnica
superior e foi trabalhar para o Museu Regional de Angra, onde
se encontra já há nove anos. Actualmente, encontra-se
em fase de defender a sua tese de mestrado. Foi no âmbito
da sua tese, que veio a dedicar-se ao património histórico
angrense, sobretudo aos parques públicos e espaços
verdes da cidade...
Dra. Maria Manuel: ... já que a ilha é toda
verde. E a malha urbana insere-se nessa grande mancha verde que
é a ilha. Parece ser um pouco contraditório, estarmos
a falar de espaços verdes numa ilha que é toda ela
verde. Os jardins que me têm interessado não são
só aqueles em que temos contacto com a natureza, mas os
espaços criados deliberadamente para a fruição
e para o deleite. E isso é um pouco diferente de subir
uma montanha e apreciar a paisagem. É a dinâmica
da construção desses espaços na sociedade
que me tem interessado. É o que leva as sociedades, consoante
a época e os condicionalismos em que vivem, a construírem
ou não construírem, ou então mesmo destruírem,
espaços verdes. O primeiro espaço que comecei por
estudar foi o jardim principal da cidade de Angra, o Jardim Duque
da Terceira. Claro que não foi o primeiro a existir na
cidade, mas hoje, é praticamente o único, e é
centenário.
Carlos Morgadinho: Porquê que escolheu a área de
história?
Dra. Maria Manuel: Gosto muito história. Minha mãe,
quando éramos pequenos, contava-nos uma estória
à noite. Ela contava-nos lendas gregas como a história
de Ulisses, histórias de Portugal como o D. Afonso Henriques
e das desavenças com os seus familiares. Eu sempre gostei
de as ouvir. Fui uma criança muito calada e, portanto,
muito atenta. Por isso, a história fez sempre parte do
meu quotidiano, a história narrada, que é uma coisa
que agora não acontece muito com as crianças. Por
influência dos meus pais, provavelmente, sempre me interessei
pelas coisas do passado, por fotos antigas. Desde muito cedo que
dizia que queria estudar história. Por isso, foi uma opção
da juventude. Desde os 12 anos, no Ciclo Preparatório,
que me lembro de gostar de história.
Carlos Morgadinho: Além da história factual também
a sensibiliza o património arquitectónico edificado
pelo Homem? Como é que reagiu ao legado arquitectónico,
mais propriamente, da cidade que escolheu para residir, nomeadamente
Angra do Heroísmo?
Dra. Maria Manuel: Vim para Angra do Heroísmo por opção,
e é um sítio onde me sinto bem. É uma cidade
relativamente pequena, mas grande de alma. As pessoas têm
uma vida nada diferente do que numa grande cidade. Temos acesso
a praticamente tudo mas, em contrapartida, temos a vantagem de
viver num sítio calmo. Posso ir a pé para o trabalho
e isso valoriza muito. O aspecto estético da cidade contribui
muito para o facto de me agradar muito viver lá. É
uma cidade que tem zonas pedonais, tem ruas que dão para
o mar, e um certo equilíbrio na volumetria dos edifícios.
É uma cidade agradável estética e visualmente.
É uma cidade que mantém um certo equilíbrio.
Existem, porém, alguns aspectos que me agradam menos. Pode
ser uma cidade considerada como Património, mas que se
encontra algo desfigurada, embora continue a manter o equilíbrio
de uma cidade pequena onde é agradável viver-se.
De facto, ela foi praticamente arrasada no cismo de 1980, e só
mais tarde, acho que em 1984, que veio a ser considerada Património
Mundial. A reconstrução da cidade na zona classificada
tem sido um pomo de discórdia, visto acabar por não
ser uma recuperação propriamente dita. Em muitos
dos casos, limita-se meramente às fachadas onde se conserva
o estilo arquitectónico original, sem grande preocupação
para com os interiores. Em termos dos parâmetros da classificação
como Património Mundial, isto não está muito
bem. Por isso, haverá um Gabinete da Zona Classificada.
Porquê que eu digo isto? Porque, por exemplo, posso ter
uma casa de sec. XV. Toda a estrutura da casa data daquela época,
desde o vigamento, o sobrado, o tecto, tudo. A casa cai ou fica
destruída e alguém a compra e quer recuperá-la.
O que se faz geralmente é deitar abaixo, e reconstruí-la
em bloco, e só a fachada é que fica como era dantes,
mas em cimento. Qual é o valor patrimonial que esse edifício
tem? Esteticamente, a cidade fica agradável, mas o valor
patrimonial é diferente. Guardamos um objecto num museu
porque, daqui há vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos,
se alguém quiser ver como era feito um móvel do
sec. XIV ou do sec. XIX, poderá fazê-lo em pormenor.
Por outras, podemos, assim, perceber qual o contexto de fabrico
daquele objecto. Uma casa é a mesma coisa. Se tivermos
uma casa exactamente como era no sec. XIX, perceberemos tudo,
a maneira como viviam as pessoas daquela época pelo método
de construção, pelo sobrado, pelo entalhamento das
vigas, o revestimento das paredes. Isto é o que seré
uma casa com valor patrimonial. Isto poderá ser uma questão
muito académica. Percebo que as pessoas já não
queiram viver numa casa como viviam há cem anos. Um exemplo
muito concreto, as janelas. Na zona classificada de Angra, estas
têm de ser em madeira, porque era assim. Compreendo que
não há ninguém que tenha dinheiro para as
manter em bom estado. O clima ali é terrível e é
extremamente dispendioso recuperá-las todos os anos.
Carlos Morgadinho: Existe um vasto património arqueológico
nos mares à volta de Angra., que, como sabe, foi a capital
dos Açores durante quatrocentos anos, estando na rota obrigatória
das caravelas portuguesas e espanholas. Muitas afundaram-se na
costa destas ilhas, principalmente da Terceira. Que nos diz sobre
a recuperação deste espólio?
Dra. Maria Manuel: Não sou arqueóloga e nunca
me envolvi nesse campo no Museu de Angra. Posso dizer-lhe que
o Museu foi pioneiro nesta área. Muito rapidamente, posso
dizer-lhe o seguinte. Há algum espólio no mar dos
Açores, mais concretamente, na baía de Angra. O
Museu de Angra, já há alguns anos, foi pioneiro
nas escavações sub aquáticas ao largo da
Terceira que se fizeram ainda nos anos 70 através do primeiro
Curador do Museu, Dr. Batista de Lima, em colaboração
com um grupo de investigadores norte americanos. Mais recentemente,
já nos anos 90, através de um grupo de amigos que
havia na altura em torno da Associação de Amigos
do Museu de Angra, reactivaram o processo e fizeram, sobretudo,
muito levantamento bibliográfico de naufrágios assinalados
por várias fontes, e deram-se cursos de arqueologia sub
aquática para os interessados. Em colaboração
com a Universidade do Texas, levaram a cabo duas prospecções
na baía de Angra com muitos resultados interessantes porque
foram encontrados os cascos, sobretudo, de uma embarcação
do sec. XVI. Foi uma prospecção com todos os trâmites
científicos, da qual existem os respectivos relatórios.
Todavia, se precisar de mais informação será
melhor consultar a arqueóloga que, actualmente, está
a trabalhar na Direcção Regional da Cultura, e que
participou nessas duas prospecções sub aquáticas,
a Dra. Catarina Garcia. Esta tem dado continuidade a este trabalho
com prospecções noutras ilhas, nomeadamente nas
Flores e São Jorge, agora já no âmbito da
Direcção Regional da Cultura. Há muito espólio
que foi recuperado. O que foi recuperado ao largo de Angra de
Heroísmo encontra-se depositado no Museu de Angra. Presentemente,
está a projectar fazer-se uma exposição itinerante
sobre essa temática.
Carlos Morgadinho: Quais são os apoios financeiros disponíveis
para a pesquisa arqueológica?
Dra. Maria Manuel: Não me posso pronunciar, visto não
ser a minha área de actuação. Em relação
aos museus e bibliotecas, que são a minha área de
trabalho normal, o que lhe posso dizer é que os museus
e as bibliotecas são sempre os parentes mais pobres. Lutamos
com cortes orçamentais que se reflectem no quadro de pessoal
por não haver mais contratações. Lutamos
com falta de pessoal. O trabalho num museu é um trabalho
constante. Tenho, por exemplo, por minha conta uma colecção
de cerâmica antiga que exige um trabalho de conservação
constante. É um trabalho moroso que tem de ser feito todos
os anos. Todavia, uma colecção de cerâmica
não é umas das mais difíceis em termos de
conservação, pois não deteriora facilmente
por acção do clima. Por outro lado, as colecções
de têxteis e vestuário são colecções
que estão constantemente à mercê de fungos,
humidade e parasitas, etc. Têm de ser desparasitadas todos
os anos. Esta operação é onerosa. Têm
de ser empresas especializadas a fazê-lo. É um trabalho
muito complexo, moroso e que não é, de todo, económico.
Os museus têm esta complexidade. Em contrapartida, são
eles que têm de manter a nossa memória. Uma memória
informada, uma memória consciente. Não basta lembrarmos
do passado e dizer-se que no meu tempo é que era bom. Não
é isso. É uma outra coisa. É para isto que
servem os museus, para nos dar essa informação contextualizada.
Carlos Morgadinho: Para finalizar esta entrevista, e pela
qual Adiaspora.com lhe está muito grata, gostaríamos
de saber qual a sua impressão da cidade de Toronto, das
suas gentes e da nossa comunidade?
Dra. Maria Manuel: É uma cidade que requer tempo para
se gostar, pois é uma cidade muito grande. Tem, não
digo contradições, mas muitas influências
que acabamos por sermos inundados com tanta informação.
Encontro-me aqui há quatro dias, e é muito difícil
digerir toda esta informação. À priori, é
uma cidade cheia de contrastes, o que não leva à
monotonia. Num lado da rua estamos em Pequim e no outro, em Portugal,
ou na Itália. Não tive tempo de conhecer bem a comunidade.
Os elementos da nossa comunidade com os quais tive contacto foram
os que estiveram presentes neste Ciclo de Cultura e que foram
extremamente simpáticos. Tive muita pena de conhecer poucos
jovens. Penso que não é uma comunidade envelhecida,
mas parece-me que os jovens já estão envolvidos
noutra malha de interesses. Com estas limitações,
não posso fazer um retrato da comunidade, por desconhecê-la.
Conheci algumas pessoas que me falaram de si, e que são
alguns exemplos da comunidade, mas que não são a
comunidade. Toronto é uma cidade que requer tempo para
a conhecer.
Entrevista exclusiva de Adiaspora.com
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