ENTREVISTA COM O PROF. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA

Um traço colectivo da nossa cultura é decididamente a falta de curiosidade
pelo conhecimento em geral.

(Novembro 2004)

Por José Ferreira - Adiaspora.com

Adiaspora.com: O Professor Onésimo é um dos açorianos que conseguiu singrar nos círculos académicos do mundo anglófono. Como foi o seu processo de integração como açoriano neste meio?

Prof. Almeida: Um dia um navio afundou-se por causa de um temporal. Muita gente assistiu de longe à tragédia. Dois sobreviventes nadaram até à costa no meio de vagalhões. Eram italianos. Um repórter da televisão perguntou-lhes:
Como conseguiram chegar até à costa com este mar tão bravio? Um deles, exausto mas excitado, a expressar-se muito com as mãos, respondeu: Parlando, parlando…
Comigo foi mais ou menos assim. É importante não se ter complexos, nem receio de afundar.

Adiaspora.com: Quais as áreas académicas que mais lhe interessam?

Prof. Almeida: Fui sempre fascinado pelo mundo das ideias. Daí o meu interesse antigo pela filosofia. No fundo, a vontade é a de querer entender o mundo, a sociedade, as pessoas. Mas isso é uma tall order, como se diz em inglês. Nunca se chega lá. Todavia, a gente vai sempre tentando entender mais, conjugando o que se aprende na vida com o que se lê nos livros. Um lado ilumina o outro. Quando temos interrogações, perguntas na cabeça, sem darmos por isso vamos encontrando bocados de respostas no dia a dia. Elas podem vir de uma leitura, de uma conversa, de algo em que reparamos inesperadamente. A vida é uma aprendizagem contínua se temos interesse em procurar respostas.

Adiaspora.com: Qual a razão deste seu interesse?

Prof. Almeida: Não sei. Cada um é como é, e eu desde jovem me pus a ler livros de ideias. Felizmente a educação no Seminário ofereceu-me uma boa base e orientação valiosa. Sobretudo valeu-me o contacto com excelentes professores. Depois veio a universidade, onde pude desenvolver e aprofundar esse meu interesse. E felizmente continuei sempre vivendo num meio universitário onde ele é diariamente alimentado. Além disso, há por esse mundo tanta livraria! Mesmo nos aeroportos.

Adiaspora.com: Como docente universitário, a educação é uma questão de que está muito próximo. Uma das lutas maiores da comunidade luso-canadiana é a visível falta de formação superior na nossa juventude. Que razões aponta para esta realidade?

Prof. Almeida: Tenho escrito e falado imenso sobre isso. A resposta é difícil. Dá-la de modo simplificado pode soar a superficial. Razões de carácter meramente económico parecem-me explicação insuficiente. Sobretudo tendo em conta que alguns outros grupos étnicos, imigrados em circunstâncias semelhantes (quando não piores) às do nosso, há muito nos ultrapassaram neste aspecto. A verdade é que tradicionalmente os portugueses têm uma relação de não muita familiaridade com os estudos. Tivemos apenas uma universidade durante séculos e nunca fundámos nenhuma no nosso ex-império, enquanto os ingleses criaram inúmeras logo nos primeiros anos da sua chegada à América do Norte.
Um traço colectivo da nossa cultura é decididamente a falta de curiosidade pelo conhecimento em geral. A todos os níveis. E a curiosidade é um elemento fundamental no processo que conduz ao estudo e à aprendizagem. É uma generalização que estou a fazer, mas sinto-me à vontade. Tenho muita gente a concordar comigo. Gente com experiência neste domínio, claro.

Adiaspora.com: Quer-nos delinear algumas estratégias para combater esta lacuna na educação dos nossos jovens?

Prof. Almeida: Ah! Se eu soubesse! Portugal continua a braços com estatísticas deprimentes. Continuamos na cauda da Europa quanto a aproveitamento escolar. Mas há que tentar atacar o mal por algum lado e um deles é os adultos tentarem instigar nas crianças o interesse pelos livros, pela leitura, pela observação. Estimulá-las com perguntas que exijam respostas adequadas as quais, por sua vez, exijam esforço de pensamento e de busca.
Depois, é preciso acentuar entre os jovens a ideia de que não basta ter um carro, uma casa, um trabalho - tudo isso aliás importante para uma vida decente e honesta, constituindo, e muito bem, um dos grandes ideais tradicionais da nossa cultura. Há que fazer os jovens sentirem que vivem num mundo com exigências cada vez maiores, e não devem deixar apenas nas mãos dos outros a condução dos seus destinos. Há que instigá-los a participar também na descoberta e escolha de caminhos, nas decisões que somos obrigados a tomar na vida em sociedade.

Adiaspora.com: Qual é o panorama actual prevalecente nas comunidades portuguesas estadunidenses no que concerne à formação dos seus jovens e participação cívica na sociedade alargada americana?

Prof. Almeida: Os políticos - os de cá e os de lá (quando nos visitam) - aspergem-nos com palavras agradáveis de se ouvir, dão-nos palmadinhas nas costas dizendo-nos que somos os melhores do mundo. E temos de facto, colectivamente, grandes virtudes. Mas os condutores ou líderes das sociedades em que estamos inseridos sabem perfeitamente que continuamos muito aquém do que deveríamos e poderíamos ser. Acham mesmo estranho que não aproveitemos as muitas oportunidades que países como os EUA e o Canadá oferecem aos imigrantes. Sabem que outros povos - os asiáticos, por exemplo - muitas vezes aqui arribados em muito piores circunstâncias do que nós - se atiram denodadamente a aprender a língua e depois a estudar seja o que for que lhes permita melhorar a sua vida. E os nossos "patrões" até têm estatísticas que circulam privadamente, confirmando as impressões que têm de nós como um grupo de boa gente, que trata bem da sua casa e trabalha dura e honradamente, mas não se preocupa com muito mais nem se importa de ser comandado por outros.

Adiaspora.com: O Professor é talvez um dos oradores lusos mais carismáticos da América do Norte, gozando de grande popularidade até dos nossos compatriotas com menor instrução formal. A que atribui este facto?

Prof. Almeida: Não me cabe a mim responder a uma pergunta dessas. Deve ser por causa das histórias e anedotas que conto. Quando era jovem, lembro-me bem de que, dos sermões que ouvia, o que me ficava eram as histórias, ou os "exemplos", como se dizia na linguagem da oratória religiosa. Devo ter ficado com isso na cabeça porque quando falo à nossa gente procuro dizer-lhe algo que a mantenha acordada. E, para isso, nada como umas histórias. Nos intervalos delas, empacota-se o resto da mensagem. Na verdade, tal como acontecia no meu tempo de garoto, o que afinal perdura na memória das pessoas são as histórias. Encontro muitas vezes gente que me diz: Ouvi-o falar há trinta anos em tal parte. Lembra-se? Contou aquela história tal e tal….
Ainda há dias me telefonou um professor de uma universidade portuguesa. Eu não me lembrava dele. Disse-me ao apresentar-se:- Não se vai lembrar de mim, mas estávamos em tal sítio e fomos ao aeroporto buscar a D.ª Maria Barroso, que ia ser a oradora principal do Congresso. Na viagem você contou-nos aquela história do doutoramento Honoris Causa de Mário Soares e do cantor Stevie Wonder na Brown. Eu de facto não me recordava, mas obviamente lembrei-me depois.
Mário Soares e Stevie Wonder tinham ambos recebido um doutoramento Honoris Causa na Brown
, no mesmo dia. Stevie Wonder, como se sabe, é cego. No cortejo rua abaixo pela College Hill, precisou de se apoiar em Mário Soares. O Providence Journal publicou depois em meia-primeira página a foto dos dois, em vestes académicas e de braço dado.
Aconteceu que dois dias depois eu ia por acaso a Lisboa e lembrei-me de pedir a foto ao jornal para a levar ao Diário de Notícias, onde naquela altura eu colaborava regularmente. Ofereci-a e publicaram-na em destaque como a "Foto da Semana". A legenda para ela que a má-língua portuguesa logo pôs a circular foi: Um cego a guiar outro cego.
(Conto esta história porque, daqui a anos, será apenas dela que se lembrarão muitas das pessoas que vão ler esta entrevista. Quer uma aposta?)

Adiaspora.com: Do seu vasto currículo constam inúmeros livros e publicações que abordam temáticas ligadas às nossas comunidades. O que o incentiva a pesquisar e escrever sobre esta matéria?

Prof. Almeida: É também feitio que me vem de miúdo: envolver-me no meio onde estou, fazer coisas, agitar ideias, comunicar com as pessoas. Sempre gostei de partilhar os meus entusiasmos. Quando o Sporting marcava um golo eu vinha para a rua anunciar a todos. Aquilo que vou aprendendo não gosto de guardar só para mim. Mesmo uma boa piada nova gosto de contá-la logo. Estão associados esses meus desejos de conhecer melhor o mundo em que vivo - a nível local ou a um outro mais vasto - e o de falar dele aos outros, contando-lhes experiências e partilhando ideias que entretanto me foram ocorrendo. Numa palavra: intervir no mundo que me rodeia, esperando contribuir positivamente para o alargamento dos seus horizontes. Isso pode acontecer num ensaio, numa crónica ou numa história ou conto. Tanto faz. A forma é como a roupa. Pode ter diversos feitios. Mas o conteúdo é o mesmo. Quando falo tenho sempre a preocupação de saber com quem falo e de usar o vestuário adequado.

Adiaspora.com: Favorece a assimilação total dos nossos imigrantes e seus descendentes ou uma integração onde as raízes são, de alguma forma, preservadas?

Prof. Almeida: Assimilação sim, mas porquê total? Quem não se deixa assimilar fica a marcar passo, à margem da sociedade onde vive. Por que razão então não ficou em Portugal? Para nos deixarmos assimilar não é contudo preciso deixarmos de ser o que somos.
Trata-se de nos abrirmos o necessário para penetrarmos e participarmos activamente na sociedade que nos acolheu. Mas não precisamos de despir as roupagens da cultura que trouxemos, porque hoje as sociedades norte-americanas (o Canadá está incluído nesta designação) são imensamente abertas às diferenças culturais. Pela nossa parte, há também que absorver muitas das qualidades das culturas que nos rodeiam. Só beneficiaremos com isso.

Adiaspora.com: A nossa cultura corre perigo nas nossas comunidades?

Prof. Almeida: Naturalmente que os nossos filhos serão norte-americanos ou canadianos. Isso é inevitável. O importante será procurarmos fazer com que gostem de preservar algo da cultura dos pais. Todavia isso não pode ser feito à força. Estas são as pátrias deles. O Infante D. Henrique e seus irmãos foram portugueses. A mãe era inglesa mas não tentou fazê-los ingleses. A cultura do país onde se nasce e se passa a infância e adolescência é que imprime carácter, por assim dizer. Há que aceitar o facto de os nossos filhos serem sobretudo americanos e canadianos. Quanto mais incorporarem nesse seu ser americano ou canadiano elementos da nossa cultura mais ricos eles serão e mais realizados nós nos sentiremos como pais.

Adiaspora.com: Ao que temos visto, as suas intervenções públicas primam não só pelo seu conteúdo temático e acessibilidade com que expõe as suas ideias, mas também pelo seu sentido de humor. Quer comentar?

Prof. Almeida: O meu amigo José Ferreira teve a paciência de me enviar estas perguntas, várias vezes durante um ano. Hoje, ao recebê-las pela enésima vez, decidi atirar-me e responder-lhes de jacto. Nem deu para fazer humor, porque o humor requer um estado de relaxamento, pelo menos da parte de quem o usa. Escrevi estas respostas com a preocupação de dizer o máximo num mínimo de espaço. (E ainda por cima num mínimo também de tempo.) Não deu para graças.
Desde que me recordo, o humor fez parte dos meus afectos. Sempre me pelei por uma história engraçada - de ouvir e contar - uma anedota, um dito, uma saída oportuna, alguma tirada com verve. Isso foi natural em mim e ainda continua a ser. Quando vem a propósito, o humor sai sem eu poder controlá-lo. Descontrai-me a mim e aos ouvintes, aproxima as pessoas (embora também possa afastá-las, se o humor é ofensivo para quem o ouve). Mas em dia de chuva e depois das férias, aqui diante deste computador a responder a cem à hora, não descortino graça nenhuma para dizer. Só olho para baixo a ver se a lista das perguntas que faltam ainda é muito longa.

Adiaspora.com: Deseja deixar aqui uma mensagem às nossas comunidades?

Prof. Almeida: Ena, que bom! Afinal a anterior era a penúltima. Quer dizer que eu podia ter descontraído e dado um certo ar de graça à resposta, mas já é tarde.
A minha mensagem está incluída em todas as respostas que lhe dei. Resumir não vale. O que para aí ficou dito já é de si o resumo de um resumo.
Acrescentarei no entanto que acredito na evolução da comunidade porque, ao longo destes trinta e tal anos, tenho observado sinais positivos de transformação. Demasiado lentos para o que poderia ser, ou o que todos nós desejaríamos que fosse, mas eles estão lá e vão acentuar-se - creio e espero - com o desabrochar desta nova geração.