NOS PRIMÓRDIOS DA EMIGRAÇÃO PARA O CANADÁ

 

Leituras e Contextos

 

(1952 1955)

 

Por Carlos Cordeiro

 

Um facto adquirido é o do crescimento demográfico no conjunto nacional e também nos Açores, entre 1930 e 1960. Nas três décadas de 1920 a 1950 a população micaelense aumenta de 111770 para atingir, em 1950, 164136 habitantes, ou seja, um saldo positivo de 52366. Este facto preocupou as entidades oficiais nacionais e insulares que, em relatórios oficiais, intervenções na Assembleia Nacional ou em discursos proferidos em diversas ocasiões não deixam de se referir ao que designavam por “excesso demográfico”. A imprensa, ainda que fortemente controlada pela censura estatal, debate o assunto, quer em artigos de opinião, quer no comentário a notícias oficiais. Eram, em especial, salientadas as consequências desta conjuntura nas precárias condições de vida das populações rurais, dos trabalhadores da construção civil, mas também nos estratos médios da sociedade, dado o excesso de mão?de?obra para as capacidades produtivas da ilha.
No ano de 1952 assiste-se a uma importante intervenção, na Assembleia Nacional, do deputado pelo distrito de Ponta Delgada, Armando Cândido, precisamente sobre a problemática do “excesso demográfico”. Com efeito, Armando Cândido, neste seu “aviso prévio”, aborda a questão em termos aprofundados, sobre as condições económicas concretas do País e do distrito de Ponta Delgada, em especial, perante o crescimento populacional.
Na sua perspectiva, havia que encetar, também nos Açores, o processo de colonização interna, de modo a desenvolver a agricultura e a recuperar o prestígio dos que se dedicavam à actividade. Acrescentou, ainda, a insuficiência de salários industriais e rurais e do funcionalismo militar e civil e de outros empregados da classe média, para defender a debilidade do poder de compra que não permitia a aquisição do mínimo indispensável. Havia, pois, que enveredar, por um lado, por uma política de fomento interno e, por outro, que “escoar” para as províncias ultramarinas e estrangeiro o “excesso” populacional.
Assim, e a confirmar as preocupações das autoridades oficiais, deslocou-se a Ponta Delgada, ainda nesse ano de 1952, o inspector da Junta da Emigração, Ferreira da Costa, a fim de, como acontecera no ano anterior, em que embarcaram 40 famílias micaelenses, promover novamente a emigração para o Brasil, supervisionada e apoiada pelo Estado. Em casos especiais o Governo adiantava mesmo o custo das passagens, sob compromisso devidamente caucionado.
Este esforço das autoridades locais e nacionais beneficiou das alterações políticas registadas nos Estados Unidos e no Canadá que, progressivamente, foram levantando as restrições à entrada de imigrantes. Assim, em 1953, deslocou-se, novamente, a Ponta Delgada o inspector da Junta de Emigração, Ferreira da Costa, a fim de, com as autoridades locais, preparar a saída de micaelenses para o Canadá, apontando as condições que teriam que satisfazer os candidatos:
- Serem do sexo masculino, trabalhadores agrícolas e de maior idade, entre os 22 e os 35 anos;
- Possuírem, como habilitações literárias mínimas a 3.ª classe da instrução primária;
- Serem fisicamente robustos;
- Terem capacidade financeira para fazer face às despesas de deslocação e instalação inicial (cerca de 10 mil escudos);
- Terem o registo criminal limpo;

As condições de trabalho seriam fixadas pelos Serviços de Emigração Canadianos, que se comprometiam a encontrar emprego para os pretendentes. Os emigrantes ficavam ainda obrigados à permanência, por um período de um ano, ao serviço do contratante, destacando-se expressamente, a proibição de passarem do Canadá para os Estados Unidos. Após contactos entre as autoridades dos dois países, e a pedido expresso das canadianas, partiu, a título experimental, para o Canadá um grupo de 179 indivíduos, entre os quais 18 trabalhadores agrícolas açorianos. Os 20 inscritos sujeitaram-se a inspecções médicas em Lisboa, tendo dois sido rejeitados, optando por não regressar à ilha, partindo para o Brasil. A partir, pois, de 1953 estava aberto um novo destino para os designados “excedentes populacionais”.
As notícias enviadas por este primeiro grupo foram positivas, pois o destino Canadá iria, nos anos seguintes crescer de importância no contexto emigratório açoriano. Segundo noticia a imprensa local, a “prudente experiência” fora positiva tanto para os contratados, como para os contratantes, que terão considerado o emigrante açoriano “trabalhador e ordeiro, corajoso e persistente”, que se adaptava com facilidade aos mais variados ofícios. Ainda em 1953, em Outubro, foram incluídos na quota da emigração para o Canadá 800 micaelenses, o que foi considerado como “uma medida de grande alcance para a população distrital”, até porque não foram considerados pedidos de continentais e madeirenses. Porém, só no ano de 1954 é que seguiram o seu destino, em várias levas, após rigorosos trabalhos de inspecção, quer por parte das entidades portuguesas, que por parte de inspectores canadianos, que se deslocaram expressamente a S. Miguel para o efeito. Em vez dos 800 inicialmente previstos, seguiram cerca de 950 jovens, em três levas: a primeira, com 330, no navio Homeland, em 22 de Março; a segunda, com 450, no navio Homeland, em 23 de Abril, e a terceira, com 170, no navio Nea Hellas, em 27 de Abril. Segundo informava o presidente da Junta Nacional da Emigração deste contingente 700 destinar-se-iam à agricultura, 200 aos caminhos?de?ferro e 50 a ofícios vários. Uma preocupação presente nas intervenções oficiais era a de se destacar o facto de se tratar de uma emigração coordenada e acompanhada pelo Estado. De facto, na primeira viagem seguiu um inspector da Junta da Emigração, Rui San Romão, que havia já acompanhado os primeiros 18 açorianos que tinham partido no ano de 1953. Desta vez iria permanecer no Canadá, por um período de 2 meses para desenvolver a sua actividade de acompanhamento da instalação destes 950 açorianos.
Aniceto dos Santos, Governador Civil de Ponta Delgada, ofereceu uma recepção às missões do Canadá, do ministério da Economia e da Junta Nacional da Emigração. No seu discurso, após salientar as qualidades de carácter e de trabalho do povo do distrito, o seu espírito de aventura e a convicção de que os que partiam contribuiriam para o desenvolvimento da terra de destino e “honra da sua terra natal”, Aniceto dos Santos acentua a componente ideológica conservadora do Estado Novo: “Deus, Pátria e Família constituem a sólida base da sua formação moral e isto lhe dá alento para pôr à prova os seus sentimentos e qualidades, quando têm que procurar o futuro em terra que não é a do seu nascimento”. No fundo, a partida para terras do Canadá destas 9 centenas de açorianos podia ser entendida como a continuação do esforço civilizador português, “num mundo inquieto e confuso”. Aliás, esta componente nacionalista e conservadora do discurso sobre a emigração açoriana havia já sido a tónica de um artigo de Abel Dinis que encontrara na decisão da partida de tantos jovens açorianos, não tanto a necessidade, mas, sobretudo, “o espírito aventureiro açoriano e português a manifestar-se uma vez mais”, na linha dos grandes heróis da História nacional – seria, no fundo, “o destino da raça a cumprir-se”. Ambos, porém, como a generalidade das autoridades e da imprensa, não deixam de sublinhar a ideia do excedente demográfico que consideravam verificar-se, particularmente, na ilha de S. Miguel.
Da primeira viagem temos um roteiro de um dos emigrantes, João de Oliveira, regente escolar, natural da freguesia da Relva. Trata-se de um relato circunstanciado dos dias de viagem no Homeland, entre 22 e 27 de Março de 1954.
Um ou outro precalço, por exemplo o relativo ao estado do mar, não foi suficiente para abalar as convicções de sucesso deste emigrante que, curiosamente, parecia não se integrar nas profissões indicadas mas, como aconteceu com muitos outros, terá conseguido passar as “malhas” da apertada inspecção. A segunda, também no paquete Homeland, teve como “cronistas” Manuel José Cordeiro Martins, da Candelária e Henrique da Costa Dutra, da Ribeira Seca da Ribeira Grande e apresenta-nos uma visão mais, digamos, pitoresca da viagem, salientando diversos pormenores que, de algum modo, retratam o viver e o sentir da juventude micaelense perante uma realidade nova, com traços de maior modernidade. A assistência a sessões de cinema, a participação em bailes com orquestra de bordo, as refeições tomadas com apetite, quando o mar estava de feição, tudo isso era relatado pelos improvisados cronistas. Não resistimos a transcrever a chegada a Halifax: “Toda a gente está no convés para ver aquela grande cidade toda iluminada, com as chaminés das fábricas a fumar, e umas grandes matas que parecem nascer da água. A cidade é enorme vista do mar, rodeando toda a bacia de Halifax. Estamos todos entusiasmadíssimos e encantados com o lindo quadro desta grande cidade”. As condições das viagens, embora o número de passageiros fosse bastante elevado, eram, pelos relatos vindos a público, bastante boas.
As primeiras notícias que chegam da instalação de açorianos no Canadá e publicadas nos jornais locais apresentam uma imagem positiva, embora alertando para dificuldades várias, de integração nas comunidades de acolhimento, nomeadamente quanto à Língua, à modernidade dos costumes e impacto das então novas tecnologias tão arredadas da sua mundividência insular.. O pulsar dos costumes mais liberais inerentes à sociedade canadiana, em confronto com o tradicionalismo da sociedade portuguesa, causava perplexidade nos nossos emigrantes que, aliás, não deixavam de a transpor para cartas a publicar na imprensa local.
Apesar destas “perplexidades”, desde cedo houve a noção da facilidade de adaptação à nova realidade, sobretudo em termos laborais, porque havia três princípios básicos que perpassavam por todos: “trabalhar, poupar, voltar à sua terra”. Se trabalhar e poupar estiveram sempre presentes como elementos estruturantes da mentalidade do emigrante, o “voltar à terra”, mito enraizado na emigração portuguesa, valor apontado logo à partida, quase nunca se realizou.
O trabalhador agrícola açoriano, pela sua própria experiência, obteve maior satisfação no Canadá, nas actividades ligadas à exploração da terra nas grandes quintas. Os que optaram por exercer actividade nas cidades seriam os mais descontentes, pelo desconhecimento da Língua, pela falta de especialização e pela escassez de trabalho nalguns períodos de Inverno – em geral dedicavam-se a trabalhos pesados não especializados. E, ainda que com salários incomparavelmente mais elevados do que os que auferiam em Portugal, com um nível de vida muito superior, o certo é que talvez, pelo menos no início, o emigrante “sabia quanto viria a ganhar, mas não fazia ideia alguma de quanto teria de gastar” e daí algum descontentamento. Os contratos estipulavam, para os trabalhadores agrícolas o salário médio mensal de 50 dólares (1500$00).
Os que trabalhavam para os caminhos?de?ferro auferiam 90 cêntimos por hora, ou seja, 5,6 dólares por dia num período de 7 horas de trabalho normal. Para além destas, poderia ocorrer trabalho extraordinário, mas pago como uma hora normal. Os trabalhadores teriam direito a uma semana de férias anuais. A companhia fornecia a roupa de cama, pela importância de 15 dólares, que seriam devolvidos no fim de um contrato superior a um ano. Os seguros de saúde e de acidentes de trabalho seriam pagos pela companhia, mas o empregado pagava 65 dólares para obter a cobertura durante um ano. O alojamento e alimentação seriam fornecidos, a troco de 2,4 dólares diários, pela companhia, além de lhes ser descontado o imposto sobre o rendimento. Além disso, o empregado pagava, ainda, um seguro contra o desemprego, correspondente a 48 cêntimos por semana. Nalgumas regiões, ainda era descontado, mensalmente, 1,5 dólares para assistência médica.
É difícil, naturalmente, comparar o esforço de trabalho e o rendimento obtido quer por uns, quer por outros. E o mesmo acontece com a possibilidade de cálculo da poupança mensal obtida, com vista à remessa para a família. O que é certo, porém, é que já em 1954 se referia na imprensa local a chegada dos “dólares” canadianos, muito mais valiosos do que os “pesos” argentinos e do que os “cruzeiros” brasileiros.
E se, como vimos, no ano de 1955 não se verificou qualquer embarque de açorianos para o Canadá, o facto é que nos anos seguintes, quase até ao fim do século XX, muitas dezenas de milhar de insulanos viram nas paragens canadenses novos horizontes de esperança em atingir um futuro digno que parecia arredado destas nove ilhas atlânticas.