NOVA ESCRITA DA (NOSSA) EXPERIÊNCIA TRANSNACIONAL:
AS GERAÇÕES SEGUINTES
Por Vamberto Freitas
Quase todos os primeiros
romances, pelo menos na tradição anglo-americana, são mais ou menos
autobiográficos. Hoje, mais do que nunca, os programas universitários ditos de escrita criativa reforçam essa ideia,
nem sempre pelas melhores razões artísticas. Mas se muita ficção dos nossos
dias está feita daquilo que uma revista denominou recentemente de me, myself and I, outra vem aparecendo com grande fôlego e
movimento geográfico e interior, um diálogo profundo com toda a tradição
literário-cultural desses mesmos países.
O Canadá, no entanto, tem sido o grande mosaico humano e artístico nem sempre
devidamente apreciado fora (e, até há poucos anos, dentro) das suas fronteiras.
Também este espaço em branco está a ser vivamente preenchido com os novos escritores
ou com aqueles já de nome feito e agora reconhecidos um pouco por toda a parte,
pois a longa hegemonia literária dos Estados Unidos e da Inglaterra está a
ceder à
movimentação das letras no restante
mundo de língua inglesa, aliás como o demonstram os mais variados nomes
premiados um pouco por toda a parte, e muito especialmente pelo Booker Prize,
da Grã-Bretanha, que inclui obras em língua inglesa de qualquer país do
Commonwealth. Por outro lado, o “diálogo” entre todos, especialmente no que
concerne as ditas literaturas metropolitanas e as que saíram e saem de áreas
tradicionalmente consideradas periféricas, e que, no caso presente de
literatura imigrante e/ou étnica, também diz respeito a nós portugueses
directamente. Quanto ao Canadá, país em foco neste meu trabalho, recordemos que
desde Robertson Davies a Mavis Gallant e Margaret Atwood que não se pode
ignorar mais a literatura canadiana contemporânea pelo universalismo adentro
dessa sua especificidade
geográfica e histórica — pelo seu poder evocativo de uma experiência diferente
da que estamos habituados com a do cânone literário dos Estados Unidos. Já há
algum tempo, o circunspecto The Daily
Globe and Mail de Toronto dedicava, na primeira página, um extenso artigo à
nova onda literária do país e à sua crescente aceitação na Europa, em que se
mencionava sobretudo a Alemanha. Uma das suas vozes aí citadas falava no
cansaço e previsibilidade da literatura do país gigante a sul do Canadá.
Michael Ondaatje é hoje um reconhecido escritor do Canadá desta
onda da nova ficção
mundial, particularmente
depois do sucesso do livro (que recebeu
o Booker Prize, da Inglaterra) e depois o filme O
Doente Inglês. Mais recentemente, outro autor canadiano seria premiado pelo
mesmo Booker Prize, Yann Martel, com o seu romance Life of Pi.
Seja como for,
outro fenómeno original adentro destas literaturas — a dos Estados Unidos e a
do Canadá — dirige-se também em especial a nós portugueses. Dois nomes (ambos
publicados em editoras prestigiadas) surgem neste momento com grande impacto: a
californiana Katherine Vaz (Saudade, Mariana e Fado & Outras Histórias) e Erika de Vasconcelos, nascida em
Montreal e residente em Toronto, com My
Darling Dead Ones (Meus
Queridos Mortos, na tradução portuguesa de João Francisco Carvalhais e de Maria José
Passos), o seu primeiro romance publicado em 1997. Sobre este fenómeno, já escrevi
noutra parte, mas permitam-me repetir aqui brevemente que, finalmente, se trata
da “nossa” presença nesse outro grande movimento literário de fim de um século
e princípio de outro nas grandes sociedades multiculturais, como os Estados
Unidos e o Canadá. Imigrantes e seus
descendentes, numa etapa histórica de maior integração no seio dessas
sociedades, penetraram em números crescentes nas universidades e o resultado é
esta ebulição criativa, em que os outrora marginalizados ou conspicuamente mal
representados na literatura dos seus países de acolhimento estão como que a
ripostar com grandeza e segurança, passando dessas margens para o centro cultural e literário das mesmas
sociedades.
Para melhor
percebermos o que à frente irei dizer acerca do romance My Darling Dead Ones, faço aqui um longo parênteses sobre Saudade, de Katherine
Vaz. Trata-se de uma narrativa que provavelmente irá tornar-se paradigmática
entre esta geração de escritores lusófonos residentes ou naturais de países
fora da nossa tradição linguística e estética. A voz (ou
vozes), algures entre o feminino e o feminista, faz em Saudade um constante chamamento tanto à mítica de uma comunidade de
origem fechada e depois precariamente aberta no seu novo mundo californiano
como a uma história ora universalizada ora reduzida às isoladas comunidades das
ilhas atlânticas. Perante a tradição e a inércia do grupo e os seus impulsos
irrequietos que sempre o levou a navegar, a protagonista de nome Clara vai
tomando consciência da sua individualidade, da sua força interior, fazendo da
sua mudez real e metafórica um mundo de belezas inesperadas, espalhando a sua
ira e ao mesmo tempo o seu amor entre os que lhe tentam fechar o seu destino ou
os que lhe devolvem a sua humanidade, a inteireza do seu ser. É uma narrativa
de desafios a todos os níveis, recorrendo desde a primeira página a um realismo
mágico que o catolicismo português e as suas crenças facilitam tanto para a
libertação como para o amesquinhamento das personagens, sendo uma das quais um
padre que lembra nitidamente uma criação de Eça de Queirós, aliás directamente
mencionado, ao lado de outras vozes portuguesas em Saudade, muito especialmente Fernando Pessoa. Nada é simples e nada
está simplificado neste romance. A autora leva o seu simbolismo particular e o simbolismo universalizado
a extremos que, segundo ela própria, requerem provavelmente sucessivas leituras, podendo mesmo ser lido por
partes como um longo poema em verso livre. Modernismo literário europeu,
realismo mágico,
poetização
vivencial e quotidiana da literatura norte-americana, desde Melville aos nossos
dias: trata-se naturalmente de uma narrativa polifónica, de vozes e tempos
cruzados, mas em que na última secção do livro a linearidade junta tudo e todos
em novas viagens de descoberta e viagens simultaneamente de regresso às origens
e, por assim dizer, ao futuro. Estranhamente, Saudade quebra com as ansiedades existenciais habituais na
literatura contemporânea e devolve às suas personagens centrais a alegria de
viver, as certezas profundamente vincadas da junção do passado-outro com o equilíbrio de vida possível
numa grande e as mais das vezes aterradora sociedade. Estes são mundos (re)criados
pelas forças interiores de cada um, por desejos e vontades deliberadas e
atávicas. A narrativa vem da memória histórica de Katherine Vaz e da sua
memória pessoal, familiar, de experiências vividas e/ou imaginadas. Saudade é, assim, um romance profundamente
americano, mas que um dia poderá vir a ser ensinado nas nossas universidades
como talvez sendo também um dos primeiros exemplos duma nova ou outra literatura portuguesa sem
fronteiras e sem complexos europeus, um romance da diáspora portuguesa (e mundial)
da segunda metade do século XX, peça fundamental do que também chamarei aqui de
nova ficção metropolitana/anti-metropolitana, referência artística às novas
realidades criadas pelos maciços movimentos de povos entre países e culturas.
Pense-se, neste
mesmo contexto, e agora no que na Europa nos diz respeito, no romance A Melancolia do Geógrafo, de Brigitte
Pauline-Neto, autora luso-francesa. Que estamos perante um novo fenómeno
literário “português”, não restam dúvidas, e creio mesmo tratar-se de um
fenómeno marcado por uma complexidade narrativa e abrangência temáticas pouco
habituais entre nós.
My Darling Dead Ones de Erika de Vasconcelos
— voltando ao livro em foco neste meu trabalho — é um desses romances que nos
apresenta decididamente um corte dos luso-descendentes no Canadá com o seu
histórico estatuto de silêncio: é um
romance talvez binacional, na medida em que se combina nas suas páginas
um historial pessoalizado e familiar com a busca artística de um lugar nas
novas geografias cosmopolitas ou universais da nossa época. Abrange três
gerações, sendo a história contada na primeira e terceira pessoas, é feito de
memórias, de diários inventados ou simplesmente recontados pela narradora, da
vida quotidiana vivida em Portugal pelos seus progenitores, e depois no Canadá
pelos pais e amigos e pela própria protagonista, de nome Fiona, já
completamente pertencente a, e integrada no seu novo mundo. É a história, uma vez mais, de três
gerações, três tempos históricos, vistos aqui na rapidez com que o século vinte
se metamorfoseou. A sua estrutura narrativa caminha e recua simultaneamente por
esses tempos e lugares, mas o leitor acompanha a transformação interior da
narradora-protagonista, chegando com ela à redescoberta e reinvenção de si própria. É marca fundamental desta literatura (a nova ficção mundial, como há anos a intitulou a Time) questionar ou
sentir a ausência de lealdades definitivas ou a mística da nacionalidade: a minha pátria, aqui, não é tanto a
língua, seja ela qual for, mas o complexo historial das múltiplas geografias
transnacionais, digamos, íntimas e mais
vastamente culturais a que pertencem estes seres. Inês de Castro serve, em My Darling Dead Ones, de mito e de
metáfora: de nacionalidades definitivas só poderá vir morte e dor; como que a
dizer, ou a representar, o ser humano está para além de todas as fronteiras.
Camões é também convocado como que a testemunhar a história dos portugueses
desde a modernidade renascentista: o movimento e o equilíbrio possíveis entre
vários mundos que o indivíduo chama a si como seus, ou então a condenação desse mesmo indivíduo a
viver a incompletude imposta, uma vez mais, pelas fronteiras já sem sentido e
sem razão. No desdobramento de personalidades e acasos que vai sofrendo a
protagonista ao longo da narrativa, Pessoa é outro dos nomes proeminentes e
universalizados da nossa literatura de que a autora está consciente durante
diferentes momentos da sua história. Erika de Vasconcelos obriga o leitor a
dar-se conta de que a superfície da história está cimentada em outras tradições
e destinos. É um assumir inteira e descomplexadamente o passado português.
Estamos – provavelmente, repita-se - a
ver nascer uma tradição-outra na “nossa” literatura da diáspora ou, passe a
expressão, nação-outra que “criámos” no continente norte-americano — ou nos foi
“criada”— durante a segunda metade deste século. A segurança com que estes nomes aparecem na ribalta
literária dos seus países é que poderá ser surpreendente para alguns de nós.
“Vim pelas
fontes em forma de quadrifólios, gotejando em pátios — diz a
narradora-protagonista nas últimas páginas da sua narrativa, durante uma outra
visita a Portugal, em que acaba no
Cemitério dos Prazeres de Lisboa perante mais evidências do seu agora, passe a
ironia, recuperado passado. [Vim] Pelas pedras suaves das calçadas, gastas pelo
caminhar de séculos. Pelo sabor do açúcar na boca, de manhã na praia. Por
velhos em carroças puxadas por cavalos, que me chamam menina, e outros
homens, cujos olhos e bocas percorrem o meu corpo de cima abaixo: como as
crianças, não têm vergonha do seu desejo. Vim por reis e rainhas encerrados em
túmulos e cães magros a roerem ossos de galinha em mercados ao ar livre e
pétalas de rosa nos degraus das igrejas. Vim pelo mar sempre presente e pelos
precipícios que dizem: Olha, vais escolher morrer hoje? Vê como é fácil cair!
Pela enorme estátua de Cristo cuja cabeça se curva sobre a cidade, neste país
de pedra e de velhos santos”.
My Darling Dead Ones é ainda uma
narrativa que interpenetra com a
mítica e história portuguesas — um
certo (e paradoxal) romantismo (como já foi mencionado em referência a Saudade de Katherine Vaz) mais ou menos
optimista das gerações que vivem o cosmopolitismo dos grandes espaços e das
grandes cidades do novo mundo, quais Mecas desde sempre desejadas por todos os
grupos nacionais descontentes, eventualmente progenitores das gerações
seguintes, essas que herdam também a memória essencial ao seu equilíbrio na
usual devastação da vida pós-moderna. É esta, parece, a outra arte do nosso
tempo: um imparável movimento geográfico dos seus protagonistas, violenta
ebulição interior, vidas continuamente desfeitas e reconstituídas, lealdades
múltiplas e parecendo como que apátridas, raiva e carinho sentidos nos caminhos
de descoberta e de resposta ao primordial questionamento de cada ser consciente
da sua existência no mosaico humano do nosso tempo — quem sou eu? De onde vim?
Como poderei agarrar a felicidade possível onde predomina a náusea generalizada e a sensação de que tudo quanto pensávamos conhecer e nos
foi legado está a chegar ao fim? Como recuperar a parte de mim que o Novo Mundo ignora ou reprime? Como
conjugar dentro de mim todos os seres que me habitam, todas as histórias que me
fizeram o ser humano distinto que sou?
Este romance de
Erika de Vasconcelos contém tudo isso nas suas quase duzentas páginas
simultaneamente de leveza (à Italo Calvino) e de dureza escondida por baixo de
uma superfície narrativa só aparentemente banal (lembrando o minimalismo
dos contos do falecido Raymond Carver, ou de alguns romances de Ann Beattie,
ou, mais precisamente ainda, de quase toda a escrita de Bharati Mukherjee. A ficção de My Darling Dead Ones é vigorosamente
feita dessas múltiplas e contraditórias linguagens: realismo quotidiano e
emotividade poética, historial pessoal e familiar e míticas nacionais,
desconfiança no presente e vaga esperança nos dias e tempos que se seguem. Por
outras palavras, a heteronímia da contemporaneidade, o desdobramento dos seres
que habitam Fiona, esta narradora das histórias dos seus mortos e dos vivos em
seu redor, todos eles responsáveis pelos chamamentos e apelos na reconstituição da sua vida despedaçada.
Curiosamente, Erika de Vasconcelos diria numa entrevista à revista
luso-canadiana Silva Magazine poucas
semanas após a saída deste seu romance: “Não se trata - Meus Queridos Mortos
– de uma história imigrante propriamente dita (...). O livro é sobre Fiona, que
é uma portuguesa de segunda geração a descobrir as suas raízes através dos seus
antepassados. O romance é sobre o encontro dessa mesma geração com o seu
passado”. Mas, ao dirigir-se a toda a temática que envolve
essa descoberta do passado noutro país que não o seu, o romance torna-se, ipso facto, também numa história que tem
a emigração por vector todo poderoso, assim como toda a experiência conflitual
entre as primeiras e demais gerações, a questão do etnicismo não poderá
ser diluída aqui por vontade da própria autora ou ainda pelo que ela
possivelmente tencionava que fosse este romance. As interpretações poderão e
deverão sempre ser múltiplas, o que não reduz a discursividade deste livro, mas
até alarga e aprofunda o seu alcance entre um maior número de leitores, dentro
e fora do Canadá. My Darling Dead Ones tem ainda essa outra afinidade
com a nova ficção mundial: a ironia,
digamos assim, da recusa em ser-se abatido pelo peso da alienação e
desenraizamento dos seres humanos em sociedades à deriva, a ironia do riso como
combate civilizado ao que poderia ser uma perda de identidade histórica e
social, a recusa da vida reduzida a um
qualquer caricato baile de máscaras, a ironia do riso, finalmente, como
contraponto à banalização do ser humano ainda consciente da sua inviolável
integridade e liberdade.
My Darling Dead Ones é inteiramente um romance
canadiano. No já referido artigo analítico do The Globe and Mail, Erika de Vasconcelos é mencionada com destaque como
sendo uma das novas escritoras canadianas que também estão a receber grande
atenção noutros países europeus, incluindo agora Portugal, como já foi aqui
dito. O factor novidade, no entanto, vai além da sua demarcada geografia
nacional, mesmo que historicamente não tenha sido fácil aos canadianos
anglófonos essa distinção, confundindo-se muitas vezes, aos olhos de outros (na arte, como em quase todo o resto) com os
seus poderosos vizinhos no outro lado da fronteira. No campo temático, já muito se tem escrito nos últimos anos sobre
esta literatura — desde os seus contornos ideológicos em Canadian Literature: Surrender or Revolution, de Robin
Mathews, a Second Words: Selected
Critical Prose, de Margaret
Atwood; não esqueçamos aqui que um dos mais influentes teóricos da literatura
do nosso século é também canadiano (e que escreveu sobre essa literatura),
Northrop Frye.
Com a publicação
de My Darling Dead Ones, Erika de Vasconcelos integra-se na
literatura nacional canadiana, mas provocando (tal como Katherine Vaz com Saudade) uma outra pergunta, que me
parece inteiramente legítima: até que ponto estas novas literaturas
pós-coloniais e também associadas à experiência imigrante e/ou étnica em toda a
parte (não esqueçamos Rushdie e todos os seus colegas desde Londres a Nova
Iorque e Toronto) poderão ser aceites
como literaturas transnacionais ligadas pela sua temática, pelas múltiplas intertextualidades
e até por uma estética já bem demarcada (o uso, por exemplo, do bilinguismo ou
de expressões-outras) a tradições específicas que as queiram também reclamar
como suas, neste caso a literatura
canadiana e portuguesa? My Darling Dead Ones traz uma capa que
de imediato avisa o eventual leitor —
é feita de um cromatismo melancólico, de velhas cartas e postais escritas em
português, originadas em, e enviadas
para Portugal. Mais ainda, a propósito do binacionalismo do romance,
veja-se uma apreciação crítica na contracapa, retirada de uma publicação
canadiana: “What is especially wonderful about My Darling Dead Ones is the abundance of life teeming through its
pages: the Portuguese landscape of hilly, yellow-stuccoed houses is palpable;
Magdalena’s flat in Lisbon invites exploration of its quaint clutter; one
sniffs the scent earth as Leninha creates a back room of hostas and calla
lilies in her suburban Montreal garden. Here is a complex and sumptuous
world... ”.
Exactamente. My Darling Dead Ones é a representação
do nosso prolongamento humano e cultural na América do Norte: sem que sejam
aqui o imigrante e seus descendentes os referentes do nosso miserabilismo, sem
remorsos do passado e sem culpabilização política de um país que raramente
soube tratar justamente do seu tecido social e económico. My Darling Dead Ones é um título
mais ou menos irónico, pois trata-se sem dúvida de um romance, finalmente, de
gente que vive viva, intimamente sabedora do que a trouxe até ao presente, até
à sua atribulada modernidade. A narradora-protagonista de Erika de Vasconcelos
reinventa-se na sua ficção, e, nesse seu percurso devolve-nos a todos, no
Canadá ou em Portugal, memórias e vivências mútuas incontornáveis.