NOVA ESCRITA DA (NOSSA) EXPERIÊNCIA TRANSNACIONAL:

 

AS GERAÇÕES SEGUINTES

 

Por Vamberto Freitas

 

Quase todos os primeiros romances, pelo menos na tradição anglo-americana, são mais ou menos autobiográficos. Hoje, mais do que nunca, os programas universitários ditos de escrita criativa reforçam essa ideia, nem sempre pelas melhores razões artísticas. Mas se muita ficção dos nossos dias está feita daquilo que uma revista denominou recentemente de me, myself and I, outra vem aparecendo com grande fôlego e movimento geográfico e interior, um diálogo profundo com toda a tradição literário-cultural desses mesmos países.[1] O Canadá, no entanto, tem sido o grande mosaico humano e artístico nem sempre devidamente apreciado fora (e, até há poucos anos, dentro) das suas fronteiras. Também este espaço em branco está a ser vivamente preenchido com os novos escritores ou com aqueles já de nome feito e agora reconhecidos um pouco por toda a parte, pois a longa hegemonia literária dos Estados Unidos e da Inglaterra está a ceder à movimentação das letras  no restante mundo de língua inglesa, aliás como o demonstram os mais variados nomes premiados um pouco por toda a parte, e muito especialmente pelo Booker Prize, da Grã-Bretanha, que inclui obras em língua inglesa de qualquer país do Commonwealth. Por outro lado, o “diálogo” entre todos, especialmente no que concerne as ditas literaturas metropolitanas e as que saíram e saem de áreas tradicionalmente consideradas periféricas, e que, no caso presente de literatura imigrante e/ou étnica, também diz respeito a nós portugueses directamente. Quanto ao Canadá, país em foco neste meu trabalho, recordemos que desde Robertson Davies a Mavis Gallant e Margaret Atwood que não se pode ignorar mais a literatura canadiana contemporânea pelo universalismo adentro dessa sua especificidade geográfica e histórica — pelo seu poder evocativo de uma experiência diferente da que estamos habituados com a do cânone literário dos Estados Unidos. Já há algum tempo, o circunspecto The Daily Globe and Mail de Toronto dedicava, na primeira página, um extenso artigo à nova onda literária do país e à sua crescente aceitação na Europa, em que se mencionava sobretudo a Alemanha. Uma das suas vozes aí citadas falava no cansaço e previsibilidade da literatura do país gigante a sul do Canadá. Michael Ondaatje é hoje um reconhecido escritor do Canadá  desta  onda da nova ficção mundial, particularmente depois do sucesso do  livro (que recebeu o Booker Prize, da Inglaterra) e depois o  filme O Doente Inglês. Mais recentemente, outro autor canadiano seria premiado pelo mesmo Booker Prize, Yann Martel, com o seu romance Life of Pi.[2]

 

Seja como for, outro fenómeno original adentro destas literaturas — a dos Estados Unidos e a do Canadá — dirige-se também em especial a nós portugueses. Dois nomes (ambos publicados em editoras prestigiadas) surgem neste momento com grande impacto: a californiana Katherine Vaz (Saudade, Mariana e Fado & Outras Histórias) e Erika de Vasconcelos, nascida em Montreal e residente em Toronto, com My Darling Dead Ones[3] (Meus Queridos Mortos,[4] na tradução portuguesa de João Francisco Carvalhais e de Maria José Passos), o seu primeiro romance publicado em 1997. Sobre este fenómeno, já escrevi noutra parte, mas permitam-me repetir aqui brevemente que, finalmente, se trata da “nossa” presença nesse outro grande movimento literário de fim de um século e princípio de outro nas grandes sociedades multiculturais, como os Estados Unidos e o Canadá.  Imigrantes e seus descendentes, numa etapa histórica de maior integração no seio dessas sociedades, penetraram em números crescentes nas universidades e o resultado é esta ebulição criativa, em que os outrora marginalizados ou conspicuamente mal representados na literatura dos seus países de acolhimento estão como que a ripostar com grandeza e segurança, passando dessas margens para o centro cultural e literário das mesmas sociedades.

 

Para melhor percebermos o que à frente irei dizer acerca do romance My Darling Dead Ones, faço aqui um longo parênteses sobre Saudade,[5] de Katherine Vaz. Trata-se de uma narrativa que provavelmente irá tornar-se paradigmática entre esta geração de escritores lusófonos residentes ou naturais de países fora da nossa tradição linguística e estética.[6] A voz (ou vozes), algures entre o feminino e o feminista, faz em Saudade um constante chamamento tanto à mítica de uma comunidade de origem fechada e depois precariamente aberta no seu novo mundo californiano como a uma história ora universalizada ora reduzida às isoladas comunidades das ilhas atlânticas. Perante a tradição e a inércia do grupo e os seus impulsos irrequietos que sempre o levou a navegar, a protagonista de nome Clara vai tomando consciência da sua individualidade, da sua força interior, fazendo da sua mudez real e metafórica um mundo de belezas inesperadas, espalhando a sua ira e ao mesmo tempo o seu amor entre os que lhe tentam fechar o seu destino ou os que lhe devolvem a sua humanidade, a inteireza do seu ser. É uma narrativa de desafios a todos os níveis, recorrendo desde a primeira página a um realismo mágico que o catolicismo português e as suas crenças facilitam tanto para a libertação como para o amesquinhamento das personagens, sendo uma das quais um padre que lembra nitidamente uma criação de Eça de Queirós, aliás directamente mencionado, ao lado de outras vozes portuguesas em Saudade, muito especialmente Fernando Pessoa. Nada é simples e nada está simplificado neste romance. A autora leva o seu simbolismo particular e o simbolismo universalizado a extremos que, segundo ela própria, requerem provavelmente sucessivas leituras, podendo mesmo ser lido por partes como um longo poema em verso livre. Modernismo literário europeu, realismo mágico,

poetização vivencial e quotidiana da literatura norte-americana, desde Melville aos nossos dias: trata-se naturalmente de uma narrativa polifónica, de vozes e tempos cruzados, mas em que na última secção do livro a linearidade junta tudo e todos em novas viagens de descoberta e viagens simultaneamente de regresso às origens e, por assim dizer, ao futuro. Estranhamente, Saudade quebra com as ansiedades existenciais habituais na literatura contemporânea e devolve às suas personagens centrais a alegria de viver, as certezas profundamente vincadas da junção do passado-outro com o equilíbrio de vida possível numa grande e as mais das vezes aterradora sociedade. Estes são mundos (re)criados pelas forças interiores de cada um, por desejos e vontades deliberadas e atávicas. A narrativa vem da memória histórica de Katherine Vaz e da sua memória pessoal, familiar, de experiências vividas e/ou imaginadas. Saudade é, assim, um romance profundamente americano, mas que um dia poderá vir a ser ensinado nas nossas universidades como talvez sendo também um dos primeiros exemplos duma nova ou outra literatura portuguesa sem fronteiras e sem complexos europeus, um romance da diáspora portuguesa (e mundial) da segunda metade do século XX, peça fundamental do que também chamarei aqui de nova ficção metropolitana/anti-metropolitana, referência artística às novas realidades criadas pelos maciços movimentos de povos entre países e culturas.

 

Pense-se, neste mesmo contexto, e agora no que na Europa nos diz respeito, no romance A Melancolia do Geógrafo,[7] de Brigitte Pauline-Neto, autora luso-francesa. Que estamos perante um novo fenómeno literário “português”, não restam dúvidas, e creio mesmo tratar-se de um fenómeno marcado por uma complexidade narrativa e abrangência temáticas pouco habituais entre nós.

 

My Darling Dead Ones de Erika de Vasconcelos — voltando ao livro em foco neste meu trabalho — é um desses romances que nos apresenta decididamente um corte dos luso-descendentes no Canadá com o seu histórico estatuto de silêncio: é um  romance talvez binacional, na medida em que se combina nas suas páginas um historial pessoalizado e familiar com a busca artística de um lugar nas novas geografias cosmopolitas ou universais da nossa época. Abrange três gerações, sendo a história contada na primeira e terceira pessoas, é feito de memórias, de diários inventados ou simplesmente recontados pela narradora, da vida quotidiana vivida em Portugal pelos seus progenitores, e depois no Canadá pelos pais e amigos e pela própria protagonista, de nome Fiona, já completamente pertencente a, e integrada no seu novo mundo.  É a história, uma vez mais, de três gerações, três tempos históricos, vistos aqui na rapidez com que o século vinte se metamorfoseou. A sua estrutura narrativa caminha e recua simultaneamente por esses tempos e lugares, mas o leitor acompanha a transformação interior da narradora-protagonista, chegando com ela à redescoberta e reinvenção  de si própria.  É marca fundamental desta literatura (a nova ficção mundial, como há anos a intitulou a Time[8]) questionar ou sentir a ausência de lealdades definitivas ou a mística da nacionalidade: a minha pátria, aqui, não é tanto a língua, seja ela qual for, mas o complexo historial das múltiplas geografias transnacionais, digamos,  íntimas e mais vastamente culturais a que pertencem estes seres. Inês de Castro serve, em My Darling Dead Ones, de mito e de metáfora: de nacionalidades definitivas só poderá vir morte e dor; como que a dizer, ou a representar, o ser humano está para além de todas as fronteiras. Camões é também convocado como que a testemunhar a história dos portugueses desde a modernidade renascentista: o movimento e o equilíbrio possíveis entre vários mundos que o indivíduo chama a si como seus, ou  então a condenação desse mesmo indivíduo a viver a incompletude imposta, uma vez mais, pelas fronteiras já sem sentido e sem razão. No desdobramento de personalidades e acasos que vai sofrendo a protagonista ao longo da narrativa, Pessoa é outro dos nomes proeminentes e universalizados da nossa literatura de que a autora está consciente durante diferentes momentos da sua história. Erika de Vasconcelos obriga o leitor a dar-se conta de que a superfície da história está cimentada em outras tradições e destinos. É um assumir inteira e descomplexadamente o passado português. Estamos – provavelmente, repita-se -  a ver nascer uma tradição-outra na “nossa” literatura da diáspora ou, passe a expressão, nação-outra que “criámos” no continente norte-americano — ou nos foi “criada”— durante a segunda metade deste século. A segurança com  que estes nomes aparecem na ribalta literária dos seus países é que poderá ser surpreendente para alguns de nós.

 

“Vim pelas fontes em forma de quadrifólios, gotejando em pátios — diz a narradora-protagonista nas últimas páginas da sua narrativa, durante uma outra visita a Portugal,  em que acaba no Cemitério dos Prazeres de Lisboa perante mais evidências do seu agora, passe a ironia, recuperado passado. [Vim] Pelas pedras suaves das calçadas, gastas pelo caminhar de séculos. Pelo sabor do açúcar na boca, de manhã na praia. Por velhos em carroças puxadas por cavalos, que me chamam menina, e outros homens, cujos olhos e bocas percorrem o meu corpo de cima abaixo: como as crianças, não têm vergonha do seu desejo. Vim por reis e rainhas encerrados em túmulos e cães magros a roerem ossos de galinha em mercados ao ar livre e pétalas de rosa nos degraus das igrejas. Vim pelo mar sempre presente e pelos precipícios que dizem: Olha, vais escolher morrer hoje? Vê como é fácil cair! Pela enorme estátua de Cristo cuja cabeça se curva sobre a cidade, neste país de pedra e de velhos santos”.[9]

 

My Darling Dead Ones é ainda uma narrativa  que interpenetra com a mítica  e história portuguesas — um certo (e paradoxal) romantismo (como já foi mencionado em referência a Saudade de Katherine Vaz) mais ou menos optimista das gerações que vivem o cosmopolitismo dos grandes espaços e das grandes cidades do novo mundo, quais Mecas desde sempre desejadas por todos os grupos nacionais descontentes, eventualmente progenitores das gerações seguintes, essas que herdam também a memória essencial ao seu equilíbrio na usual devastação da vida pós-moderna. É esta, parece, a outra arte do nosso tempo: um imparável movimento geográfico dos seus protagonistas, violenta ebulição interior, vidas continuamente desfeitas e reconstituídas, lealdades múltiplas e parecendo como que apátridas, raiva e carinho sentidos nos caminhos de descoberta e de resposta ao primordial questionamento de cada ser consciente da sua existência no mosaico humano do nosso tempo — quem sou eu? De onde vim? Como poderei agarrar a felicidade possível onde predomina a náusea generalizada e a sensação de que tudo quanto pensávamos conhecer e nos foi legado está a chegar ao fim? Como recuperar a parte de mim  que o Novo Mundo ignora ou reprime? Como conjugar dentro de mim todos os seres que me habitam, todas as histórias que me fizeram o ser humano distinto que sou? 

 

Este romance de Erika de Vasconcelos contém tudo isso nas suas quase duzentas páginas simultaneamente de leveza (à Italo Calvino) e de dureza escondida por baixo de uma superfície narrativa só aparentemente banal (lembrando o minimalismo dos contos do falecido Raymond Carver, ou de alguns romances de Ann Beattie, ou, mais precisamente ainda, de quase toda a escrita de Bharati Mukherjee.[10] A ficção de My Darling Dead Ones é vigorosamente feita dessas múltiplas e contraditórias linguagens: realismo quotidiano e emotividade poética, historial pessoal e familiar e míticas nacionais, desconfiança no presente e vaga esperança nos dias e tempos que se seguem. Por outras palavras, a heteronímia da contemporaneidade, o desdobramento dos seres que habitam Fiona, esta narradora das histórias dos seus mortos e dos vivos em seu redor, todos eles responsáveis pelos chamamentos e apelos  na reconstituição da sua vida despedaçada. Curiosamente, Erika de Vasconcelos diria numa entrevista à revista luso-canadiana Silva Magazine poucas semanas após a saída deste seu romance: “Não se trata - Meus Queridos Mortos – de uma história imigrante propriamente dita (...). O livro é sobre Fiona, que é uma portuguesa de segunda geração a descobrir as suas raízes através dos seus antepassados. O romance é sobre o encontro dessa mesma geração com o seu passado”.[11] Mas,  ao dirigir-se a toda a temática que envolve essa descoberta do passado noutro país que não o seu, o romance torna-se, ipso facto, também numa história que tem a emigração por vector todo poderoso, assim como toda a experiência conflitual entre as primeiras e demais gerações, a questão do etnicismo não poderá ser diluída aqui por vontade da própria autora ou ainda pelo que ela possivelmente tencionava que fosse este romance. As interpretações poderão e deverão sempre ser múltiplas, o que não reduz a discursividade deste livro, mas até alarga e aprofunda o seu alcance entre um maior número de leitores, dentro e fora do Canadá. My Darling Dead Ones tem ainda essa outra afinidade com a nova ficção mundial: a ironia, digamos assim, da recusa em ser-se abatido pelo peso da alienação e desenraizamento dos seres humanos em sociedades à deriva, a ironia do riso como combate civilizado ao que poderia ser uma perda de identidade histórica e social,  a recusa da vida reduzida a um qualquer caricato baile de máscaras, a ironia do riso, finalmente, como contraponto à banalização do ser humano ainda consciente da sua inviolável integridade e liberdade.

 

My Darling Dead Ones é inteiramente um romance canadiano. No já referido artigo analítico do The Globe and Mail, Erika de Vasconcelos é mencionada com destaque como sendo uma das novas escritoras canadianas que também estão a receber grande atenção noutros países europeus, incluindo agora Portugal, como já foi aqui dito. O factor novidade, no entanto, vai além da sua demarcada geografia nacional, mesmo que historicamente não tenha sido fácil aos canadianos anglófonos essa distinção, confundindo-se muitas vezes, aos olhos de outros  (na arte, como em quase todo o resto) com os seus poderosos vizinhos no outro lado da fronteira.  No campo temático, já muito se tem escrito nos últimos anos sobre esta literatura — desde os seus contornos ideológicos em Canadian Literature: Surrender or Revolution,[12] de Robin Mathews, a Second Words: Selected Critical Prose,[13] de Margaret Atwood; não esqueçamos aqui que um dos mais influentes teóricos da literatura do nosso século é também canadiano (e que escreveu sobre essa literatura), Northrop Frye. 

 

Com a publicação de My Darling Dead Ones, Erika de Vasconcelos integra-se na literatura nacional canadiana, mas provocando (tal como Katherine Vaz com Saudade) uma outra pergunta, que me parece inteiramente legítima: até que ponto estas novas literaturas pós-coloniais e também associadas à experiência imigrante e/ou étnica em toda a parte (não esqueçamos Rushdie e todos os seus colegas desde Londres a Nova Iorque e Toronto) poderão  ser aceites como literaturas transnacionais ligadas pela sua temática, pelas múltiplas intertextualidades e até por uma estética já bem demarcada (o uso, por exemplo, do bilinguismo ou de expressões-outras) a tradições específicas que as queiram também reclamar como suas,  neste caso a literatura canadiana e portuguesa? My Darling Dead Ones traz uma capa que de imediato avisa o eventual leitor — é feita de um cromatismo melancólico, de velhas cartas e postais escritas em português, originadas em,  e enviadas para Portugal. Mais ainda, a propósito do binacionalismo do romance, veja-se uma apreciação crítica na contracapa, retirada de uma publicação canadiana: “What is especially wonderful about My Darling Dead Ones is the abundance of life teeming through its pages: the Portuguese landscape of hilly, yellow-stuccoed houses is palpable; Magdalena’s flat in Lisbon invites exploration of its quaint clutter; one sniffs the scent earth as Leninha creates a back room of hostas and calla lilies in her suburban Montreal garden. Here is a complex and sumptuous world... ”.[14]

 

Exactamente. My Darling Dead Ones é a representação do nosso prolongamento humano e cultural na América do Norte: sem que sejam aqui o imigrante e seus descendentes os referentes do nosso miserabilismo, sem remorsos do passado e sem culpabilização política de um país que raramente soube tratar justamente do seu tecido social e económico. My Darling Dead Ones[15] é um título mais ou menos irónico, pois trata-se sem dúvida de um romance, finalmente, de gente que vive viva, intimamente sabedora do que a trouxe até ao presente, até à sua atribulada modernidade. A narradora-protagonista de Erika de Vasconcelos reinventa-se na sua ficção, e, nesse seu percurso devolve-nos a todos, no Canadá ou em Portugal, memórias e vivências mútuas incontornáveis.

 



[1]No que diz respeito a autobiografia e ficção, os trabalhos são inúmeros, mas em relação à “literatura diaspórica” dos nossos dias, recomendo Gilbert H. Muller, New Strangers in Paradise: The Immigrant Experience and Contemporary American Fiction, Lexington, The University Press of Kentucky, 1999. Curiosamente, a recente conferência em Paris sob o título de Whither Theory/Où va la Théorie?, que teve lugar na Universidade de Paris X – Nanterre, a 21 de Junho de  2003, abordou as mais variadas questões neste campo de estudos literários e culturais, mas creio valer a pena citar aqui um breve passo de Hèlène Aji no seu relatório sobre as principais apresentações que lá se fizeram: “(...) The conference performed the very function of theory, which lies not im dogmatic statements or preconceptions but in the confrontation of the multiplicity of options to conceptualise reading. As Laurent Milesi had done in one of the workshops by stressing the unavoidable links between the autobiographical and the critical, and as Mathieu Duplay did in his paper on Emerson as a theoretician and the persistence of theorical stances over time, Grabes showed how theory was meant to produce ever-renewed questions and uncertainties rather than answers and certainties”, in The European English Messenger, Volume XII/2, Autumn 2003, p.75. Quero com isto sugerir que os elementos “mais ou menos”  autobiográficos numa obra, de que falo neste texto, seja ela criativa ou crítica, em nada diminui o seu alcance “universalista” ou, melhor dito neste caso, “transnacional”.

[2]Yann Martel, Life of Pi, Toronto, Random House of Canada, 2002. Este mais recente acontecimento na literatura canadiana levaria, aliás, um colunista literário do The Globe and Mail (October 29, 2002) Dennis Ley Johnson, a escrever um comentário algo irónico, intitulado “Can Do Canlit”. Escreve ele num dado passo: “ (...) Martel’s victory now gives all pause to realize something, something that leaves this resident of what some Europeans call ‘that strangely snow-barren wasteland south of Canada’ decidedly envious. That is, they’ve got a hell of a healthy book culture in Canada, a lively literary landscape that’s a mix of male and female, young and old, and various ethnic backgrounds and that’s much more diverse than the current homogenized scene of the reputed melting pot”.

[3]Erika de Vasconcelos, My Darling Dead Ones, Toronto, Alfred A. Knopf Canada, 1997. Entretanto surgiu também no Canadá (Calgary) Paulo da Costa, com o seu  The Scent of a Lie, Calgary, Ekstasis, 2002. Foi premiado pelo Commonwealth Prize for Best First Book, em 2003. Esta sua obra não trata propriamente a experiência imigrante ou étnica portuguesa no Canadá, mas Paulo da Costa é neste momento outro reconhecido escritor luso-canadiano. Numa recensão ao romance de Paulo da Costa, escrevi: “Alguns dos melhores autores “imigrantes” do mundo anglo-saxónico vêm, nas palavras do ensaísta Pico Iyer, temperando vivamente, através da convivência de tradições linguísticas e culturais várias, as novas literaturas sem fronteira, como, por exemplo, Salman Rushdie e Bharati Mukherjee, entre outros. Como que dizer: estas são páginas de coração português em corpo ou forma-outra” (“Sobre The Scent of a Lie de Paulo da Costa” in SAAL-Suplemento Açoriano de Artes e Letras,  n. 5, Julho de 2003).

[4]Erika De Vasconcelos,  Meus Queridos Mortos (tradição de João Francisco Carvalhais e Maria José Passos) Lisboa, Gradiva, 1998.

[5]Katherine Vaz, Saudade, New York, St. Martin’s Press, 1994. Publicado em Portugal naturalmente com o mesmo título (Porto, ASA, 1999, na tradução de Alberto Gomes).

[6]Sobre Saudade, escrevi num primeiro ensaio: “A narrativa vem da memória histórica de Katherine Vaz (não esqueçamos que antes do narrador existe o autor) e da sua memória pessoal, familiar, de experiências vividas e/ou imaginadas. Saudade é, assim, um romance profundamente americano mas que já está a ser ensinado nalgumas das nossas universidades como talvez sendo um dos primeiros exemplos duma nova ou outra literatura portuguesa sem fronteiras e sem complexos europeus, um romance da Diáspora portuguesa (e mundial) da segunda metade deste século” (“Saudade, de Katherine Vaz: Arte e Memória” in Vamberto Freitas, Mar Cavado: da Literatura Açoriana e de Outras Narrativas, Lisboa, Edições Salamandra, 1997).

[7]Brigitte Pauline-Neto, A Melancolia do Geógrafo, Porto, ASA, 1995. Nota bibliográfica do Instituto Camões (Lisboa): “Nos dois romances de Brigitte Pauline-Neto (A Melancolia do Geógrafo e O Conhecimento da Flor (Porto, ASA, 1996) deparamos com uma escrita extremamente sensível e muito atenta quer à subtileza psicológica das personagens, quer às atmosferas onde evolui a narrativa. Depois de uma espécie de epopeia que subvertia até certo ponto o romance tradicional, o seu segundo livro retrata-nos o estranho percurso de uma menina desde o instante do seu nascimento até ao princípio da adolescência, fase em que a protagonista parece romper definitivamente com a sua inocência”. Ainda da mesma fonte: “Brigitte Pauline-Netto nasceu em 1953 em Paris. De origem portuguesa, a sua família é oriunda de Loulé, pelo lado materno, e está radicada em França desde os 20 anos (...) Foi jornalista do Libération durante os anos 80, editando as secções de Arte e Espectáculos, passando depois a chefe de redacção da revista Vogue”.

[8]Pico Iyer, “The Empire Writes Back”, Time, February 8, 1993. Escreve Pico Iyer a dada altura no referido ensaio: “The centers of this new frontierless kind of writing are the growing capitals of multicultural life, such as London, Toronto and to a lesser extent, New York, but the form is rising up wherever cultures jangle. And all these places are witnessing a transformation of the very canon of English literature: where not long ago a student of the modern English novel would probably have been weaned on Graham Green, Evelyn Waugh and Aldoux Husley, now he will more likely be taught Rushdie and Okri and Mo – which is fitting in an England where many students first language is Cantonese or Urdu (...). Most of all, they make a virtue of their hyphnated status. Instead of falling through the cracks, they hope, through their Janus-faced perspective, to straddle different worlds, and pick and choose from all traditions”.

[9]Erika de Vasconcelos, Meus Queridos Mortos, Lisboa, Gradiva, 1998, pp. 204-205.

[10]Bharati Mukherjee foi um dos primeiros autores americanos vindos de outra tradição literária e cultural (Índia, neste caso) a receber o grande prémio literário do seu país de adopção, o National Book Critics Circle Award, em 1988. Amiga de Katherine Vaz, estas afinidades electivas também nos devem dizer algo sobre visões da experiência étnica e/ou imigrante, temáticas comuns e leituras mútuas. Numa recensão ao seu mais recente romance, Desirable Daughters (New York, Hyperion, 2002), afirmei que: “Desirable Daughters é um outro texto que, partindo de tradições que nos são alheias, retrata sobretudo a experiência comum a todos os que na América refizeram a sua vida e rescreveram a sua história. Longe de ser tão-só um romance indo-americano, é um romance totalmente americano, logo falando em directo através de todas as barreiras que só à primeira vista nos separam. Deve ser isto o que alguns ainda teimam em denominar de ‘universalismo’, ou a experiência comum de toda a humanidade nas suas infindáveis contingências”. (“Outras Visões da Experiência Imigrante”, SAAL-Suplemento Açoriano de Artes e Letras, n. 4, Junho de 2003).

[11]“The New Canadian Fiction”, Silva Magazine, Fall 1997, Volume 1, Issue 3, pp.28-29. O original lê: “I didn’t really go into that because that’s not what the book [My Darling Dead Ones] is about. It’s not an immigrant story. The book is not about Leninha, the book is about Fiona who is not an immigrant. She is second generation Portuguese who is discovering her roots via her ancestors. The book is about that generation’s access to the past. And Leninha’s character [a mãe da protagonista, e uma imigrante de primeira geração] is sort of an intermediary between the two generations. I wanted her story to be deliberately thin and it would have been a completely different kind of novel if I had written the story of Leninha’s struggle”. Numa outra entrevista concedida a Carmen Carvalho e publicada na revista luso-canadiana da net, Satúrnia (e que consultei a 5.12.2003), Erika de Vasconcelos afirmaria, em palavras aqui reformuladas pela própria entrevistadora, que: “Não tendo contacto regular com comunidade portuguesa, os seus conhecimentos dos costumes, língua e geografia de Portugal vêm-lhe do convívio com a família de cá (Canadá) e de lá, no seu caso em Portugal continental. Que os seus conhecimentos são sólidos tanto como o seu amor às raízes, isso está bem patente no seu primeiro livro (My Darling Dead Ones). Quando lhe perguntei se sentia ‘responsabilidade’ de escrever sobre os seus antepassados ou sobre Portugal, ela respondeu que não era nesse sentido que incluía elementos culturais portugueses nas suas novelas. Ela escreve aquilo que a sua inspiração lhe dita através do que vê, ouve, lê e presencia. O seu trabalho é feito na base de muito estudo e pesquisa (...).

[12]Robin Mathews, Canadian Literature: Surrender or Revolution, Toronto, Steel Rail Educational Publishing, 1978.

[13]Margaret Atwood, Second Words: Selected Critical Prose, Toronto, House of Anansi Press Limited, 1982. Dirigindo-se à questão da “invisibildade” da literatura canadiana (Second Words, p. 402), Atwood escreveu no ensaio (1981) “Northtrop Frye Observed”, referindo-se aos anos 60: “Toronto was not the multi-restauranted glitter city it is today, entranced by its own trendy reflection, but Hogtown, the place Montrealers made joke about. It had one repertory theatre, no ballet company, and hardly any decent brie. Canadian authors were invisible to the general public, ghettoized in the Canadiana section by booksellers, along with the cookbooks on 101 Things To Do With Maple Sugar, and considered oxymorons by snobbish young would-be writers like myself, who thought we had to run away to England in order to let our genius fully flower. On the average, there were about five novels by Canadians published in Canada per year, and sales were doing very well if they reached a thousand copies. There were two advantages to this state of affairs. The first was that if you published anything of a serious literary nature, anything at all, you would get reviewed somewhere, and you would be read by the hard-core Canadian Literature audience, which had a shifting population of about two hundred. The second was that women were not discriminated against. T announce that you wanted to be a writer did not produce a gender-specific response. Nobody said, ‘You can’t do that because you’re a girl’. They did not tell you you were up against Shakespeare and Melville. Instead they said, ‘A what’’”

[14]Da contracapa de My Darling Dead Ones, que cita a  revista (canadiana) Quill & Quire. Escreveria ainda o Saint John Telegraph-Journal sobre este romance: “When writers set out on this oft-trodden turf, they should all do it with this kind of uncompromising confidence. My Darling Dead Ones is written with the linguistic sensitivity of the exile (...). A distinctively accomplished first novel. Tilling language in much the same way that her characters till the earth, de Vasconcelos has nurtured a most life-affirming narrative of death”.

[15] O segundo romance de Erika de Vasconcelos, Between the Stillnes and the Grove, foi publicado em 2000, também pela Alfred A. Knopf Canada. Tudo indica que faz parte de uma trilogia in progress, pois toma como ponto de partida uma das personagens não-portuguesas de Meus Queridos Mortos, e desenvolve toda uma narrativa, também de imigração, mas agora em Portugal. É provavelmente o primeiro romance “português” a referenciar a experiência do outro no nosso país. A protagonista deste romance chama-se Dzovig e vem da Arménia a fins dos anos 80. Erika de Vasconcelos inclui em Between the Stilness and the Grove uma bibliografia de consulta, na qual ocupa um lugar de grande destaque Fernando Pessoa, particularmente com O Livro do Desassossego (The Book of Disquiet, na tradução Margaret Jull Costa (London, Serpent’s Tail, 1991). O jornal canadiano The Toronto Star afirmaria a propósito de Between the Stilness and the Grove: “Throughout, the warmth, the generosity and weary wisdom of Veciche’s first-person confessional narration envelops the reader, the flow of her memories intimate and laden with emotion and sensual detail”.