ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA FEMININA:
DE GIL VICENTE À ACTUALIDADE

Maria João Dodman

Incorporar o tema feminino neste evento hoje é importante e necessário. Porque, e por um lado, falar de questões femininas é sempre produtivo devido ao simples facto de que nós, as mulheres, passámos muitos séculos em silêncio, pelo menos nos documentos oficiais, e sempre sujeitas ao escrutínio masculino. Por este motivo é importante não só olhar em direcção ao futuro mas também ao passado, pois de onde viemos é tão importante como para onde vamos. As mulheres do século XXI tem a seu cargo a responsabilidade de manter viva as nossas origens, as nossas lutas, e especialmente as nossas heroínas, que ao largo de tantos séculos tem lutado pela igualdade. Por outro lado, falar de Gil Vicente serve dois propósito relevantes; primeiro, porque, assim como Camões, Gil Vicente elevou a nossa literatura, sendo admirado por muitos dos seus contemporâneos portugueses e estrangeiros. Hoje, considerado como o pai do teatro português, este dramaturgo oferece-nos um verdadeiro documento histórico. Gil Vicente conta-nos muitas coisas; entre elas os problemas económicos e sociais que tanto afligiam a nossa sociedade do século XVI.

A minha relação com Gil Vicente começou há alguns anos quando decidi dedicar-lhe a minha tese de mestrado na qual me propus examinar o papel da mulher nas suas 44 obras. Foi ao indagar nas páginas das suas comédias e nas fontes históricas sobre o tema, que por primeira vez, percebi que a mulher nunca aceitou o estatuto inferior em que insistiam os moralistas da época. De facto, em Gil Vicente a mulher tem voz, Às vezes rebela-se abertamente, mas também usa mil e uma artimanhas para conseguir os seus objectivos. Por último, e assim como já lhes disse que nós as mulheres temos um dever, devo-lhes lembrar que as lutas da mulher não esteve perto de acabar. E que este não é um problema exclusivo da mulher portuguesa, mas mundial. Por isso, o meu propósito de hoje é deixar-lhes com um pouco de consciência histórica e literária, e espero poder incitá-los a todos aqui presentes a participarem de maneira mais séria nos muitos debates sobre a mulher que ocorrem diariamente.

Os documentos históricos eliminam a participaçno da mulher de todos os âmbitos sociais, políticos e económicos. O lugar da mulher era o ambiente doméstico, cuidar da casa, dos filhos, e as obrigaçtes religiosas. Os historiadores concordam que a mulher era desprezada (Fernandez Alvarez, 445-5). Os moralistas da época empregavam com frequLncia a palavra silLncio para definir o papel feminino. Até se chegava a dizer que a mulher devia aprender calada, porque num princípio, foi a voz dela que enganou Adão. Por isso, como a mulher era considerada um “animal” doente, de juízo incerto, não lhe ficava bem que falara, nem que ensinara os seus poucos e limitados conhecimentos a ninguém. O dever feminino era ser ajudante do marido. Os moralistas usavam a religião para justificar as suas atitudes misóginas. Mas, não era suficiente o facto da mulher ser um produto da costela de Adão, haviam também tratados científicos (e digo científicos segundo o pensamento da época pois como sabemos hoje, a ciLncia desses tempos ironicamente, tinha poucos e muitas vezes carecia de princípios científicos) que asseguravam que nós éramos realmente um ser defectivo. Uma obra que influenciou este tipo de atitude foi O Exame de ingénuo do médico espanhol Huarte de San Juan.Este, afirmava-se que a mulher era inconstante, inclinada ao mal e que só servia para a reproducão biológica. Este critério científico e religioso estava em vigor por toda a Europa. O certo era que todas as mulheres eram filhas de Eva, responsáveis pelo pecado original. Por outro lado engendradas no útero por meio de uma semente fria e húmida, estas estavam destinadas a serem lentas, produtos de uma concepção inferior.

Em Portugal, parece que a situação da mulher era ainda, se é possível imaginar, pior. Afirmava-se que a mulher era um ser perverso. Para mais denegrir a condição feminina, estipulou-se uma relação entre mulher e mula, porque estes animais (mulher e mula) garantiam os moralistas eram os únicos que tinham sexo durante a gravidez (António Manuel Espanha 50-60). Por isso não era surpreendente que a educação da mulher fosse muito limitada. Devido ás incapacidades do intelecto feminino, a mulher só aprendia assuntos religiosos. E, ainda este tipo de formação só foi possível em grande parte, devido aos caprichos da Contrarreforma pois as mulheres como mães tinham a incumbência de ensinar Bs suas filhas que eventualmente seriam elas também mães, a palavra de Deus. Lá de vez em quando, aparecia uma mulher que mostrava ser inteligente. Rapidamente os moralistas explicavam que estas eram aberrações da natureza, casos raros, fora do normal. Até gestos, que hoje em dia consideramos inocentes e que fazem parte do nosso dia-a-dia, eram vistos como uma afronta Bs boas condutas. Por exemplo, não se aconselhava que a mulher se pintasse porque o único embelezamento que a mulher necessitava era “o santo temor a Deus”. Claro que a situação da mulher pobre era ainda pior que aquela de famílias nobres. No entanto, nenhuma delas devia questionar a ordem estabelecida, e incluso as princesas eram umas meras “mulherzinhas”, sem força, poder ou autoridade.

No mundo do trabalho a mulher, embora trabalhasse tanto ou mais que o homem, elas não existiam como membros participantes na economia do país. É importante não esquecer de que elas, além do trabalho no campo, eram também responsáveis pelas muitas obrigaçtes domésticas. De facto, num esquema da organização das profissões de Évora feito por Oliveira Marques, as mulheres ocupam as camadas inferiores. No entanto sabemos que elas trabalhavam fora do lar, especialmente durante a era das conquistas marítimas que levou grandes números de homens a novos mundos. A única diferença entre mulheres e homens era que como elas eram fisicamente mais fracas, deviam também receber um salário fraco. Na legislação afonsina, o lugar da mulher é entre otros grupos marginados: locos, traidores, etc.

Durante estes séculos turbulentos, os estrangeiros admiravam-se quando visitavam Portugal porque as mulheres conservavam-se fechadas em casa. Chega-se a dizer num livro de um francês cujo título é As Delícias de Espanha e Portugal que as portuguesas só saíam 3 vezes na vida: para o baptismo, para o casamento e para o seu próprio funeral. Noutro livro de 1610 a Discrição do Reino de Portugal, conta-se que quase não se viam mulheres nas ruas de Lisboa, devido as facto que os portugueses eram tão zelosos que conseguiam mantê-las enclausuradas.
Gil Vicente conhecia bem as lutas da mulher no seculo XVI, mas também estava consciente de que elas não se limitavam a aceitar estes parâmetros. O que as suas heroínas têm é voz e opinião. Por meio das mulheres vicentinas, entramos nesse mundo cheio de contradições. É um mundo de mulheres: pastoras, ciganas, moças de feira. Todas elas a falarem, a participarem, e a lamentarem. Isabel da farsa Quem tem farelos não quer seguir a vida da mãe. Ela quer pintar os lábios, sair ao mundo. Inês Pereira da farsa do seu mesmo nome vai ainda mais longe. Ela diz o seguinte:

Eu hei-de buscar maneira
de algum outro aviamento...

Coitada! Assi hei-d’estar
encerrada nesta casa
como panela sem asa,
que sempre está num lugar?

e assim hão de ser logrados
dois dias amargurados
que eu posso durar viva?

E assi hei-d’estar cativa
em poder de desfiados?

[...] Esta vida é mais que morta.
Sou eu coruja ou corujo,
ou sou algum caramujo
que não sai senão à porta? (Vicente 83-84)

O aviamento que ela encontra para resolver a sua vida cativa é casar-se. No entanto, Inês escolhe mal e casa-se com um escudeiro que à semelhança dos parâmetros estabelecidos, diz-lhe que [...]

Vós não haveis de falar
com homem nem mulher que seja;
nem somente ir à igreja
não vos quero leixar.

Já vos preguei as janelas,
porque vos não ponhais nelas;
estareis assi encerrada,
nesta casa tão fechada,
como freira de Odivelas.

Depois da morte deste, ela decide melhor e casa-se com Pero Marques, homem muito simplório porque:

Quero tomar por esposo
quem se tenha por ditoso
de cada vez que me veja.

Por usar de siso mero
asno que me leve quero,
e não cavalo folão.

Antes lebre que leão;
antes lavrador que Nero. (124)

A Inés mostra-nos o que mais tarde confirma Maria Isabel Rodrigues Ferreira no seu estudo “Tipos femininos em Gil Vicente: um olhar pela sociedade das descobertas” que “as mulheres observam mas que não são figuras pálidas nem pasivas” (128).

Passando à actualidade, como estamos então hoje em dia? Bem, as atrocidades mundiais não são menores: na Índia queimam-se mulheres com frequLncia; estas morrem ou são condenadas a viver marginadas porque as famílias muitas vezes as rejeitam. Em muitos países ainda se pratica a circuncisão feminina sem o mínimo de anestesia ou limpeza. A violência doméstica chega a atingir os 80 por cento em alguns países na Ásia e na América do Sul. No mundo do trabalho a mulher ainda é vítima de muitas desigualdades. Um estudo levado a cabo no Brasil o ano passado pelo Sindicato dos Trabalhadores de Educação de Alagoas provou que a mulher é responsável por 42 por cento da população obreira brasileira. No entanto, leva uma vida de sacrifício, sujeita a racismo e a discriminação.

Então que podemos nós fazer na nossa comunidade? Temos de continuar a educar a nossa comunidade, especialmente as gerações futuras a não aceitar certos estereótipos. Em muitas ocasiões, a imagem que outras culturas tem da mulher portuguesa é que ela cozinha bem e é óptima dona de casa. O que isto nos revela é simplesmente falta de educação. O nosso dever é educar também essas outras culturas. E, sem ser necessário regressar ao século de Gil Vicente, embora seja útil que todos aprendam sobre a grandiosidade da nossa literatura, basta olhar para os muitos exemplos na nossa comunidade de mulheres que são membros activos, mas que também têm-se destacado como mulheres modernas que diariamente lutam contra a mesma mentalidade arcaica que atacavam as heroínas vicentinas. Lembremo-nos que no século XVI o nosso país foi pátria de mulheres importantes. E aqui estou a falar da dona Luísa Sigea que serviu na corte portuguesa durante aquela época. Sigea foi uma mulher respeitada no círculo humanista e igualmente admirada pela sua devoção ás artes e à literatura. Lembremo-nos também da rainha Dona Leonor, esposa de dom João II, figura notável pelo seu envolvimento em questões literárias e femininas.

A crescente presença da mulher e as suas reivindicações em todos os campos é um facto inevitável mas também necessário. Por isso, e para concluir deixo-os com a palavra de ordem de hoje que para a mulheres é PARTICIPAÇÃO. Todo e qualquer esforço é valioso. Deste modo, o que todos temos que fazer, mulheres e homens, é destruir os modelos existentes de masculinidade e feminidade. Sim, é verdade que tem havido muitas mudanças positivas. Não obstante, em várias ocasiões ainda podemos ouvir as palavras imortais de uma das moças vicentinas:

porque em tudo o que fazemos

há mister manhas assaz

segundo o mundo que temos. (Floresta de Enganos 84)


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