VIGÁRIO GERAL DA DIOCESE DE ANGRA


Pe. Hélder Fonseca Mendes

Memórias e Saudades de um Império do Espírito

Cada ano que passa a Irmandade do Espírito Santo organiza-se, o Império abre, cumpre a sua dinâmica ritual e a festa faz-se. Há um respeito sagrado pela memória dos antepassados que legaram esta nobre tradição, vive-se um presente de bondade e misericórdia, e sonha –se com saudades do Império que está embora intuindo poder ser outro – onde não haja miséria nem lágrimas, nem dor nem luto, mas paz, amor e alegria quando baste.
Quando o império se prepara para abrir, os residentes e vizinhos voltam à doçura do alfimino da sua infância, da massa sovada fresca da juventude, fazem memória fiel do Império que receberam dos seus pais, e guardam saudades que cabem no sonho do Império que está por fazer.
Na tradição cristã há fórmulas de oração dirigidas ao Espírito Santo, como os cânticos Veni Creator, Sancte Spiritus que entraram na religiosidade: Espírito Santo – Deus, misericórdia. Pede-se o que se não tem, e inclusivamente que venha o contrário do que há: endireitar o que está mal, lavar o que esta manchado, etc.
Este projecto, a que o Evangelho chama de Reino de Deus, realiza-se na secular tradição Pentecostal açoriana. Nela cabem restos pré-cristãos, como em qualquer forma de religiosidade popular, mas também abunda o reflexo do rosto de Cristo que envia o Espírito Santo e, sobretudo, deixa rastos de indubitável valor humano e cristão. Acarinhando estas festas e preservando-as, guarda-se o melhor da alma açoriana.
É na noite de Páscoa, quando os sinos das Igrejas repicam, anunciando com aleluias o Ressucitado, que os foguetes dos Impérios começam a estalejar – tais línguas de fogo – anunciando o derramamento do Santo Espírito. Na radiosa aurora desse Dia, o Domingo de Primavera, enquanto se faz a procissão da consolação do Sacramento Santíssimo aos enfermos, é hasteada a bandeira do Divino Paráclito no mastro chamado de real, no Terreiro ou na Praça. O Espírito do Ressuscitado é o Espírito nos Impérios a anunciar os dons da paz e do perdão, da alegria e da justiça sob a sua soberania. Não há melhor império que assegure a liberdade dos seus servos que o do Espírito, onde até se chamam de irmãos, de devoção e de pelouro, zeladores e procuradores.
Para além da dimensão caritativa das festas: recolha de donativos para se distribuir esmolas e fazer o bodo, há a dimensão organizativa com a sua hierarquia própria e ainda a dimensão ritual com simbolismo próprio a dizer-nos que é o Senhor Espírito Santo quem exerce a soberania sobre o povo. Isto é, onde há o Espírito de Deus não há tirania, prepotência, totalitarismo ou injustiça. Sempre há caridade. O Império é de todos, de ricos e pobres, mas preferencialmente dos pequenos, dos desvalidos, dos inocentes, dos insatisfeitos. A chamada função que o império oferece é sobretudo para os aparentemente disfuncionais nos impérios de outros senhores.
O Espírito dificilmente se representa. Não é Pai nem é Filho. É o Espírito Santo, Deus de misericórdia. Já nos evangelhos aparece como uma pomba, sob a forma de línguas de fogo. Nunca é tal qual o que se vê. No que se vê, Ele está sempre para além. É sempre menos e inadequado o que se vê. Também na cultura e religiosidade açorianas está presente sob a forma de império, de coroa, de ceptro, de bastão, de bandeira, de menino e de pobre. Porque o vestiu de prata e flores, foguetes e arraias, alfinim e massa sovada, carne, pão e vinho é o que o Espírito Santo é conhecido por todos os açorianos, enquanto é ignorado noutras paragens. A fé pura é sempre inculturada e talvez por isso nunca seja pura.
Nem o artista nem o cientista podem falar directamente do Espírito Santo. Fazem-no modestamente por aproximações, símbolos, gestos e imagens. Tal como quando se fala do Amor. É nesta perspectiva que devemos ver a simbólica do Império. Sem medo dos iconoclastas.
Podemos encontrar uma inspiração remota, do profundo carácter espiritual e bíblico, para a construção dos edifícios chamados de impérios no Livro de Ezequiel 48, 30-35 quando se fala das doze portas e janelas. O império nunca está montado ao nível do solo, o que pode significar o seu lugar de elevação, fonte e protecção às “inundações”desse mundo. Usa-se escadas para a comunicação. No mesmo sentido. O Livro do Apocalipse 21, 10-16 sobre a Jerusalém messiânica volta a falar de uma muralha grossa e alta, com doze portas, três para cada lado, com doze pilares. A cidade havia de ser quadrangular, com o comprimento igual à largura. Estariam estes textos nas mentes dos arquitectos populares açorianos?
A coroa significa a consagração de uma pessoa. Devido a situar-se no cimo do corpo, implica não só os valores da cabeça crescente para o alto. Como o sinal de perfeição é circular, sem princípio nem fim; por ela participa-se da natureza celeste, une no coroado o que está debaixo e o que está por cima dele; é promessa de vida imortal; significa dignidade, poder, realeza. Luminosidade, participação em forças superiores, está relacionada com o corno (pela elevação, poder e iluminação) e com a mitra (dos bispos e dos foliões).
AS coroas do Espírito Santo, na sua maioria construídas de prata batida, lavrada havendo também as de casquinha e latão, contêm vários signos paráclitos. Há-as de vários tamanhos. Aparece, com quatro imperiais (hastes ou braços), cinco e actualmente com seis, com o aro em relevo. No cimo, uma pomba de asas abertas pousada sobre uma esfera simbolizando o globo terrestre. Na iconografia do padroeiro da catedral açoriana há um idêntico globo terrestre na mão do Salvador do Mundo, tal “único imperador que tem, deveras, o Globo mundo em sua mão” (Fernando Pessoa).
Nas coroas mais antigas, a pomba é substituída pela cruz latina. Podem ser enfeitadas com flores em tecido de cambraia, normalmente, toda branca ou, eventualmente, com flores coloridas, imagens do Espírito Santo da alegria.
Das casas dos fidalgos, que as possuíam primeiro, passaram as coroas para o povo, não sendo propriedade de um indivíduo mas de uma irmandade, cuja sede era o Império. Além dos impérios, podem ver-se cores em pedra de cantaria (Ramo Grande, Terceira) e nas louças, como marca de posse de uma irmandade, ou no arroz doce, contornadas com canela. Têm o seu trono próprio no império e na casa do Imperador. Na dinâmica do Império do Espírito a coroa não traz a pretensão do poder, mas o formidável prazer de dar, a responsabilidade de repartir, o esforço de preparar para os outros. Parecem ser estas as funções de quem governa ou serve com justiça. O mordomo é aquele que serve o império do Espírito na pessoa dos irmãos. Serve-se uma ou duas vezes na vida: quando se é solteiro com a ajuda dos pais, quando casado com a ajuda da mulher. Assim se fazem os imperadores e as imperatrizes.
O bastão sustém a marcha do pastor, do peregrino e do ancião; é sinal de autoridade; serve para fazer justiça e edificar a ordem. Cada ordem profissional tem o seu bastonário e cada irmandade tem o seu bastão; é sinal de defesa, guia, governo e sustento; é usado pelo bispo como símbolo do pastor do povo que lhe está confiado, bom como por romeiros e caminheiros; com ele se faz justiça, usado por provedores e vereadores, ao Império chegam os briadores que dão a briança. Nas primitivas descrições das coroações faz-se referência às canas que os irmãos levavam nos cortejos a acompanhar a coroa. Está ainda associado aos milagres do Espírito, na extinção do fogo de vulcões, que termina onde o bastão pode chegar levado por mão humana.
O ceptro, como símbolo da soberania, poder, autoridade intelectual, espiritual e social, aparece na vida militar e judicial; é símbolo da legítima autoridade. Também a Jesus no teatro da paixão se coloca uma cana na mão, como burla. Na coroação, mesmo nas crianças, o ceptro aparece como prolongamento do braço; o braço humano estende-se para além dos seus limites; ultrapassa o próprio corpo, assim como Deus “prolonga nos homens o poder do seu braço”. Na iconografia cristã, os soberanos declarados santos levam o ceptro como atributo da sua condição, tal como a coroa, próxima das auréolas e dos resplendores. Os ceptros usados no culto popular são como uma pequena vara do mesmo material da coroa que acompanham, de 35 a 40 centímetros com a pomba colocada na extremidade mais delgada. Nele é costume amarra-se um laço comprido de fita branca ou encarnada.
A bandeira tem um sentido de distintivo, de pertença e identidade. Cada sociedade organizada tem as suas insígnias próprias, que se colocam normalmente numa cúspide, representando uma determinada presença. A bandeira é símbolo de protecção, concedida ou implorada. Merece todo o respeito e o afecto de quem com ela se identifica. O alferes ou portador da bandeira do Espírito levanta-a por cima da cabeça, sobre o ombro, ficando superior à altura do corpo humano. Adejada pelo vento é sinal de liberdade, lança um apelo às coisas do alto, à contemplação, cria um vínculo entre o alto e o baixo. Nas casas particulares, as bandeiras significam que uma família tem o Espírito santo para adorar e glorificar (velar). Nos cortejos, indicam que o povo guiado e governado pelo Espírito está a caminho: na transladação da coroa ou no cortejo da coroação.
O ritual e simbólica do Império não é uma mímica para ridicularizar quem quer que seja ou para destituir poderes legítimos, apesar da crítica social que os festejos em si mesmo podem trazer, o que nos parece saudável. Tudo é feito com muita seriedade, sem respeitos humanos nem vergonhas ou falsas imitações de presunção ou provocação, respeitando os papéis de todos os intervenientes nos festejos, nomeadamente os ministros da Igreja, a quem sempre foi reservado o acto da coroação.
Assim é a tradição imperial nos Açores. Sem apropriações indevidas. Com propriedades e lideranças demarcadas.
O Espírito Santo manifesta ser do seu agrado a prestação de tal culto, como vemos por inúmeros testemunhos e abundantes narrações de milagres, inclusivamente em comunidades conventuais, onde as religiosas faziam estas práticas rituais, como prova da sua devoção, sob pena de acontecimentos adversos à normalidade da vida segura e pacífica. Os milagres atribuídos ao Divino Peráclito querem claramente mostrar que o Espírito Santo quer ser adorado com a festa do Império, pela razão de nela se incluir as esmolas e jantar aos pobres.
A comunidade que vive a prática do culto do Espírito é um modelo indirecto de crítica social que pode oferecer ao conjunto da sociedade estímulos de pensamentos e impulsos sugestivos. A realidade do Império do Espírito Santo é relevante pelos apelos que faz; a memória espiritual que se mantém viva, como alias, é função própria do Espírito – Paráclito, recordar (avivar) tudo quanto Cristo disse e ensinou; a evocação simbólica do modo de entender o serviço em termos de simplicidade e inocência; a partilha dos bens com os pobres e marginalizados da sociedade, onde a pobreza não é sinónimo de carência, mas de partilha, multiplicação e abundância. Estas festas proclamam a dignidade de todo o homem, sobretudo das crianças e dos pobres.
As festas do Divino Paráclito têm sentido como reacção à despersonalização e desenraizamento trazidos pela globalização, ao assistirmos a um movimento de procura e defesa das raízes culturais e religiosas mais profundas das nossas identidades. Por isso dizem tanto à emigração. O Espírito presente na História e no Mundo está especialmente presente na Igreja. Estas festas nos Açores nasceram no seio da Igreja, são levadas a efeito por crentes e comunidades cristãs, nas ilhas e na diáspora. Não há fundamentos para afirmar a sua origem pagã, a não ser a pretensão de justificar um neopaganismo de cariz secularista, o que levaria então ao seu desenraizamento natural.
O melhor proveito cultural destas festas é a sua transição para a vida, como seja o exercício da justiça e do poder, o menino e a inocência, a bondade e a partilha. Assim, as festas do Espírito Santo podem levar a um processo de conversão e mudança, na ordem religiosa moral e intelectual, que não se contente com a superfície, a aparência, o culto externo que não transforma nem faz escola. Na sua simplicidade, estas festas constituem uma resistência crítica e profética ao poder político e ao poder económico, e são como que uma reserva histórica do pensamento utópico poético.
O culto e festas do Espírito Santo, tal como são praticados nos Açores, podem servir de pedagogia moral na perspectiva do dom e da justiça. Enquanto outras manifestações de carácter popular estão muito associadas à penitência e à dimensão individual do sujeito, no culto do Espírito Santos as promessas não se pagam com sacrifícios no templo ou a caminho dele, nem com intimismos, mas graça e alegria são fruto do que se dá, do que se partilha e do que se recebe, sonhando assim com um mundo de abundância e de justiça, sinal messiânico do Reino de Deus sob a presença e soberania do Espírito.
O sistema do dom dá importância às relações sociais da comunidade; o pecado acontece quando se rompem as relações fraternas e a graça chega quando estas relações se promovem e refazem. O importante é que a abundância e a riqueza cheguem a todos, como sinal de bênção, partilha, justiça, comunhão, para que não haja pobres; ensina a receber o que se não tem e a dar o que o outro necessita; é de carácter comunitário, deixa espaço à misericórdia. O culto é para celebrar e saborear as maravilhas, alegrias, bênções e dons de Deus, experimentados entre o povo. O pecado é a ingratidão para com Deus e/ou irmãos; o perdão vem pela reconciliação com Deus e com os outros.
É possível distinguir a prática do Império do Espírito Santo da prática dos poderosos deste mundo. Assim, a nível económico, a prática do Império do Espírito Santo é de dom, comunicação com o pobre, sobre-abundância; enquanto a do Império do poder é de acumulação e riqueza que gera exclusão, dívida e escassez; a nível político, a prática do Império do Espírito Santo é diaconia, igualdade, poder verdadeiro, enquanto a prática do império dos poderosos é de dominação, divisão, violência, poder mentiroso; a nível ético-social, a prática do Império do Espírito é de liberdade, trabalho, amor fraterno, vida, do reino de Deus, do homem novo, enquanto a do império deste mundo dá-se em termos paralisantes e egoístas.
Na medida em que a soberania de Deus se exerce, sob a designação de império, acontece misericórdia e solidariedade com os débeis, recuperação amorosa e privilegiada das vítimas. Dá-se uma novidade radical na realidade social, a sua inversão, e abre-se um horizonte até então insuspeito. A mudança passa por reconverter a selecção dos fortes (império no sentido negativo) em solidariedade com os débeis (Império do Espírito). Nesta lógica, o que antes era disfuncional – crianças, pobres, doentes, estrangeiros, é chamado a ocupar os primeiros lugares, diríamos nós a tomar o Império e a servi-lo.
O Espírito Santo é o pai dos pobres e distribuidor da riqueza. O sinal dos tempos messiânicos e a eliminação da pobreza na comunidade que se abre ao Espírito e a distribuição da riqueza de dons e bens. O culto do Espírito Santo confirma esta profecia. Deste culto, há consequências comunitárias e sociais de tal alcance, a ponte de ele ter produzido, e dever produzir, frutos nos campos da saúde e da economia, da missão e das obras de misericórdia, na dádiva na justiça, na partilha e na vida fraterna.
Assim se serve os homens e glorifica a Deus, no império do Espírito Santo.

 

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