RAZOES QUE LEVAM À EMIGRAÇÃO E AO REGRESSO
- Intervenção de Álamo
Oliveira no II Encontro dos Serviços Sociais -
(Toronto, 22-24 de Setembro de 2002)
As novas gerações já descuidam conhecer
os porquês que enformam as nossas comunidades de emigrantes.
Em primeiro lugar, porque a palavra emigrante já não
se refere ao movimento das pessoas quem saindo dos Açores,
se foram fixar no estrangeiro. Depois, porque começamos
a falar de um acontecido sobre o qual já passam várias
gerações. Finalmente, porque os Açores são,
agora, receptores de estrangeiros com o estatuto de emigrantes.
Actualmente, os jovens açorianos têm dificuldade
em perceber as causas que empurraram, durante séculos,
milhares de pessoas para fora das ilhas, e que foram fixar-se
em terras longínquas, povoadas por gentes que falavam línguas
estranhas, com sistemas políticos e vivências culturais
muito diferentes das suas. De facto, um jovem não entenderá
muito bem o que foi isso de emigrar para o Brasil no século
XVIII, por decreto real; como, no século XIX, as barcas
baleeiras serviram de disfarce para fugas que terminavam na Costa
Lese dos Estados Unidos; como já no século XX (décadas
de 50 e 70), partiu dos Açores quase metade da população
com destino à América, Bermuda e Canadá.
As novas gerações descuidam conhecer que, se era
necessária uma dose considerável de aventureirismo,
ela era alimentada por uma situação de pobreza incontornável.
Vivia-se em ilhas que o mar isolava, governadas por um ostracismo
que tocava as raias da prepotência. Com as fronteiras naturalmente
fechadas, partir das ilhas era um desejo rico para gente pobre.
As crises sísmicas, com a sua força destruidora,
davam azo a uma demissão de consciência política,
proporcionando a partida a quantos perdiam haveres e a esperança
de sobreviver no meio das ruínas. A par desta situação
e tal como acontecera primeiro com o Brasil, os açorianos
serviram para pontuais soluções de falta de mão-de-obra
em países como a América e Canadá, cujas
políticas de crescimento económico passavam pela
aceitação de trabalhadores indiferenciados.
As novas gerações desconhecem que os emigrantes
açorianos começaram por comer o pão que o
diabo amassou; que o seu sucesso económico nem sempre correspondeu
à felicidade; que ganhando conforto, perderam identidade;
que nem sempre a própria realização económica
lhes foi fiel; que a sua dedicação ao trabalho nem
sempre foi recompensada de forma justa; que o frágil grau
cultural que possuíam os emparedou no desconhecimento político
e cultural do país para onde emigraram; que os seus filhos,
na adolescência da sua personalidade, andam a procurara
saber quem são; que muitos se sentem como gente de lugar
nenhum.
Por isso, as novas gerações se admiram que os emigrados
que visitam os Açores façam comparações
entre os passado e o presente, descrevendo um tempo e um lugar
inconcebíveis ou tidos como surrealistas. De facto, não
passa pela cabeça das novas gerações que
milhares de açorianos trabalhavam e passavam fome; que
sobreviveram faltando à escola, entrando no mercado de
trabalho sem tempo para serem crianças; que adoeciam e
não se tratavam porque não tinham dinheiro; que
nasceram, viveram e morreram sem imaginarem o tamanho do Mundo;
que não tiveram direito ao sonho, nem sequer a vaguear
esperanças à D. Quixote e Sancho Pança. Por
causa disto tudo se emigrou.
Já não há o encantamento das sacas de encomendas,
nem dos dólares acompanhados de carta, nem das emoções
ditadas pela visita da saudade. Hoje, essas visitas tornaram-se
verdadeiro intercâmbio. Viaja-se nos dois sentidos. E isto
as novas gerações não desconhecem.
Que, porventura, perdeu expressão foi a saudade, uma vez
que aumentaram, de ambos os lados, as possibilidades de reencontro
nos momentos de maior significado familiar e cultural. De ano
para, cresce o número de eventos que têm, como preocupação,
reavivar o que identifica, cultural e socialmente, as comunidades
açorianas, aproximando-as das sua raízes, ajudando-as
a apaziguar aculturações inevitáveis e aumentar-lhes
os afectos. Nos últimos 30 Anos, tem-se procurado sair
da situação penosa do esquecimento - esquecimento
que deu origem ao abandono. Nos anos mais difíceis, os
emigrantes açorianos estiveram entregues a si próprios,
solidarizando-se dentro das suas possibilidades. Numa luta sem
tréguas, foram trabalhando para sobreviver, resolvendo
as dificuldades de adaptação, ajudando os familiares
que restavam nas ilhas e ainda pescando tempos para erguer inúmeras
associações, nas quais têm vindo a desenvolver
as suas iniciativas culturais.
De há 30 anos para cá, foi reconhecida, pela população
e pelos governantes dos Açores, a importância das
comunidades radicadas no estrangeiro. Foi um reconhecimento óbvio,
ditado pelos princípios autonómico, que teve, como
primeiro objectivo, fazer emergir a unidade, através da
conquista da auto-estima e da implementação de um
projecto de desenvolvimento global dos Açores. Este objectivo
passou pelo auto-conhecimento do povo açoriano, o qual
só faria sentido com a inclusão das comunidades.
Desde o começo regime autonómico que o povo dos
Açores só poder ser entendido como tal se, aos residentes
se juntar os que estão espalhados pelo resto do mundo.
Foi, assim, que os contactos junto das comunidades, por parte
das pessoas ligadas aos serviços governamentais criados
para o efeito, vieram reanimar muito do passivo que começava
a ceder ao desinteresse e a sensibilizar segundas e terceiras
gerações para o reencontro com as raízes.
Pelo intercâmbio que se vem a verificar, através
de uma cooperação solidária, tem sido possível
aproximar as comunidades entre si e com os Açores. Estamos
todos mais perto e conhecemo-nos melhor - o que também
quer dizer que nos amamos mais.
Ora, isto foi possível não só com a prática
de uma política de aproximação, mas também
pelo reconhecido desenvolvimento económico e cultural que
vem a acontecer nos Açores, o que provocou um evidente
encurtecer de distâncias.
O desenvolvimento dos Açores acabou por provocar regressos,
melhor dizendo, mais regressos. Há porquês como o
apelo das raízes, mas há outras razões a
pesar nessa decisão.
Na primeira linha dos regressados, estão os reformados,
que vêem a sua pensão mais rentável numa terra
com um custo mais acessível, acrescida de uma prática
de solidariedade mais afectuosa, embora, neste aspecto, alguns
destes regressados venham a sofrer alguma desilusão. Se
regressaram a pensar numa velhice assistida por parentes, amigos
e vizinhos, isso já não é possível.
Mas fugiram, pelo menos, de um lar de idosos ao da solidão
de uma casa, postos na rua duma cidade que, por ser grande, nunca
se conheceu bem, que é regida por uma organização
social não apreendida e que fala uma língua substantivamente
estranha.
Outros regressados vêm com dinheiros amealhados, que investem
em áreas que lhes parecem rentáveis, acumulando
experiências profissionais e sem sofrerem competições
desenfreadas. A dispersão e pequenez das ilhas desvendam
a existência de actividades económicas proporcionadoras
de algum sucesso e sem correrem grandes riscos de falência.
Regressam também os inadaptados: os que emigraram mas
que, por razões diversas, não encontraram a sua
"terra prometida". Regressam por lhes ter faltado um
pouco de sorte, uma espécie de golpe d'asa. O seu regresso
não faz história, mas ganharam uma experiência
de vida que lhes dá uma mais valia no futuro na reavaliação
das potencialidades da terra de origem.
Finalmente, regressam os designados repatriados. Regressam como
retrato do insucesso social - insucesso que não se sabe
a quem imputar responsabilidades. A ignorância e o comodismo
inconsciente têm contribuído para que estes casos
aconteçam. De todos os regressantes, estes são os
únicos não voluntários. Mas tem havido uma
solidariedade sem reservas para que eles se integrem, depressa
e bem, na sociedade açoriana. Porém, não
tem sido tarefa fácil. Muito se tem investido na reconciliação
de impotências e de revoltas interiores, de sequelas geradas
por comportamentos desviantes. É que os valores culturais
de que são portadores resistem bastante àqueles
que a sociedade açoriana opta e defende.
Estão alterados os significados de emigrar e regressar.
Hoje, são verbos transitivos pluridireccionais. Inserem-se,
sem receios, na gramática da língua global. As bolsas
de resistência, que eventualmente existam, serão
absorvidas segundo preceitos naturais. E, para esta absorção,
reconhece-se que as instituições de vocação
social e cultural, sediadas junto das nossas comunidades, têm
um papel importante a desenvolver: informar os direitos e os deveres
político-sociais; os processo de acesso aos meios de educação;
ao mercado de trabalho, etc...
A interacção é que faz emergir apetências
para o conhecimento dos valores culturais. Não basta que
tais valores sejam transmitidos em sequência geracional.
É necessário que as portas estejam abertas a gentes
com outras culturas. Porque é neste intercâmbio que
passa a dinâmica de um enriquecimento mútuo. Os valores
culturais têm que sensibilizar não só a gerações
directas como aquelas com quem, naturalmente, se vão cruzando,
Se emigrar foi um processo de melhoramento económico, que
obrigou à opção de um espaço diferente
a nível cultural e social, o regresso não acontece
marcado pelas mesmas circunstâncias. Todos se sentem como
sendo de qualquer lugar, mesmo que o coração contradiga,
em pormenor, a universalidade deste sentimento. No fundo, as ambições
de cada um podem ter um peso decisivo. Por isso, o partir e o
regressar é só um acto de vontade.
As despedidas no cais e no aeroporto nunca mais serão
quadros de uma vivência acossada pela miséria; as
sacas de encomendas já não vestem a pobreza; as
visitas de saudade já não ostentam a magia dos sucessos
rápidos. Tudo isto fará parte da nossa memória
colectiva, residindo, em desespero de causa, nalguma ficção
literária. Apenas. Mesmo assim, a gratidão permanece.
Os Açores são o que são pelos açorianos
que ficaram, mas também pelos que partiram. Hoje, falar
dos Açores, como terra de partidas e de chegadas, implica
aceitar, sem reservas, a sua universal dimensão humana.
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