Intervenção do Prof. Diniz
Borges
Ser dum lugar-Ser de muitos lugares:
Aculturação, Integração e Assimilação
nos Estados Unidos
Há vários anos, a revista Time
publicou uma edição especial dedicada ao multiculturalismo
nos Estados Unidos. A capa era composta, essencialmente, por uma
mulher mestiça com a manchete: O Rosto da América.
A moça era, simultaneamente, familiar e exótica.
Com um sorriso plácido, e uma feição ambígua,
estávamos perante alguém que se poderá encontrar
num Los Angeles, Nova Iorque, ou mesmo Toronto, do amanhã-uma
curiosa mescla da Ásia, do Médio Oriente, da África,
do Mediterrâneo, e da América Latina, com traços
anglo-saxónicos. Porém, o modelo da Time
não era uma pessoa verdadeira, mas sim uma composição
cibernética. A imagem havia sido criada por um computador,
através da metamorfose, de homens e mulheres, provenientes
de várias raças e grupos étnicos. Tal como
foi então explicado pelos editores da Time, estávamos
perante uma previsão dos frutos que emergirão da
sociedade multicultural que, quer o poder queira quer não,
começa a despontar no continente norte-americano.
A capa da revista cativava uma verdade essencial
da América no princípio do novo milénio.
Os Estados Unidos são, cada vez mais, um país diversificado,
uma sociedade híbrida, uma nação de fronteiras
imprecisas e de bizarros extremos. Nunca antes, na história
da humanidade, houve uma sociedade tão diversa, e nunca
tantas tradições, crenças e valores haviam
integrado uma só cultura. Entretanto e apesar de todas
as vulgaridades ditas e debatidas sobre o melting pot,
o mosaico humano, as coligações arco-íris,
e as preocupações com o chamado "acastanhamento"
da América, a miscigenação, pelo menos na
sua plenitude, isto é: como cruzamento aberto, e descomplexado,
entre raças e culturas diferentes, especialmente em vida
conjugal, continua a ser no, Main Street, um tabu. É
que, tão recente, como na década de 1980, ainda
haviam leis em vários estados da união proibindo
os casamentos multirraciais. A sociedade, conduzida pela propaganda
estadista prefere uma assimilação ao American
Way of Life, mitologia que ainda está por definir.
Historicamente, as vivências dos grupos
étnicos nos Estados Unidos principiam pela separação:
ou seja, pouca participação do emigrante na nova
cultura e uma manutenção quase rigorosa da cultura
de origem; metamorfoseando-se aos poucos na integração:
a participação na nova cultura e a manutenção
de alguns aspectos da cultura de origem, os quais por vezes já
sofrem da aculturação proveniente do mainstream;
e concluindo, quase sempre, numa assimilação, o
tal extremo da aculturação, em que os descendentes
dos imigrantes participam activamente na nova cultura, com pouquíssimas
ou nenhumas referências à cultura dos seus antepassados,
acabando por perderem elementos fundamentais dessa mesma civilização.
Daí que os grupos étnicos nos Estados Unidos, raríssimamente,
tenham ficado pela aculturação e a mesma seja, infelizmente,
apenas um mero passo para a assimilação. É
que apesar de ainda se verificar alguns vestígios da cultura
de origem, especialmente no campo gastronómico, não
se tem registado, na vasta maioria dos casos, uma verdadeira interligação,
um intercâmbio genuíno, entre as várias culturas.
Dir-se-á, sem exagero, que na multiplicidade dos grupos
étnicos que têm existido nos Estados Unidos, registou-se,
quase sempre, a inevitável absorção pelo
grupo, ou grupos, dominantes, acontecendo quase sempre a fatal
perda de identidade.
Como se sabe, os imigrantes, incluindo os açorianos, começam
pelo tal processo de separação acima referido. Daí
que tenham surgido, um pouco por toda a nação americana,
os tais guetos sociais, onde manter o elemento da cultura de origem
era, e em alguns casos ainda é, o mais importante. No nosso
caso o que se sabia e se celebrava nas ilhas foi recriado nas
comunidades açor-americanas para sobrevivência, para
se dizer, como afirmou algures o poeta Álamo Oliveira:
que em terra de ninguém também se é gente.
Os imigrantes açorianos, à semelhança
dos seus homólogos de outras partes do globo, conservaram
muitos elementos da sua cultura e, excepcionalmente, participavam
na cultura dominante. Com a passagem dos anos, e com a assimilação
dos filhos, veio, mesmo até para os imigrantes, a integração.
É que agora, e para além das recriações
da sua terra, da manutenção dos elementos da sua
cultura popular, das suas festas ao Divino, dos bodos de leite,
das procissões, das matanças do porco e das danças
do Carnaval, os imigrantes, particularmente os que saíram
dos Açores na juventude, ou principio da vida adulta, começaram,
através dos filhos, a participar, embora primitivamente,
na cultura dominante, designadamente, através da escola
e das actividades extracurriculares dos filhos. Já se vai
aos jogos de beisebol, ao recital de ballet, às
representações de teatro juvenil e aos "pot-lucks"
de fim de ano lectivo. E aí está presente o nosso
intercâmbio de culturas, limitado, no nosso caso, à
massa sovada, à linguiça, ou às malassadas.
Mais tarde, já com a segunda, e sucessivas gerações,
a integração passa a assimilação total.
Já não estão presentes as guloseimas portuguesas,
e essa participação no quotidiano do "mainstream",
não é um aparte ou um apêndice. É sim
parte integral de uma vivência toda ela modulada pela cultura
dominante. E até mesmo a gastronomia sofre. Na Califórnia,
por exemplo, apenas a primeira geração ainda come
bacalhau na noite da consoada, as outras gerações
já preferem o peru, o presunto ou o frango assado. É
que assimilação, sem diluição, especialmente
para gente que veio com altos índices de analfabetismo,
com necessidades económicas, é praticamente impossível.
Um passo para a assimilação é, seguramente,
um passo fora da cultura de origem. Ser totalmente bicultural
nos Estados Unidos, pertencer de pleno direito a duas. ou mais
culturas, acontece apenas numa percentagem extremamente reduzida
de emigrantes, incluindo açorianos. É uma elite
cultural que em termos numéricos pode não ultrapassar
os dez por cento. A vasta maioria da nossa gente, fica mais americana
do que portuguesa.
E o que acontece com a comunidade portuguesa
nos Estados Unidos é sintomático do que aconteceu
com outros grupos étnicos. Como exemplo, olhemos, brevemente,
à história dos italianos nos States. Antes
de 1880 haviam emigrado para os Estados Unidos cerca de 80 mil
italianos. Entre 1880 e 1900 cerca de 800 mil, e entre 1900 e
1920 cerca de 3 milhões. Perto de 80% vieram do sul da
Itália, de zonas rurais, onde proliferava uma agricultura
arcaica e muita pobreza. A grande maioria estabeleceu-se na zona
de Nova Iorque. Hoje, uma vastíssima percentagem dos americanos
de descendência italiana ainda vive a menos de 200 milhas
de Manhattan. Moravam em "Little Italies", tal como
a nossa gente ainda faz em certas zonas dos Estados Unidos onde
também foram criados os "Little Portugal's."
Os emigrantes italianos não confiavam nas instituições
americanas, tal como não haviam acreditado nas instituições
do poder no seu país de origem.
À Semelhança dos nossos primeiros emigrantes açorianos,
também os italianos desconfiavam das escolas. Eram poucos
os que acabavam o ensino secundário. E toda a comunidade
mantinha-se fiel ao provérbio italiano "tolo é
aquele que torna os seus filhos melhores do que ele." Os
rapazes trabalhavam e as raparigas ficavam em casa, não
fossem acabar por destruir a honra da família casando com
um americano ou com alguém de outro grupo étnico,
para eles quase todos inferiores. Criaram as suas sociedades fraternais
e estavam mais interessados em erguer estátuas a Colombo,
Verdi e Garibaldi, do que em investir na educação
dos seus rebentos.
Levaram anos para participar na vida cívica e política
do país. Para eles, o estado era: "lo stato ladro"
-o estado ladrão. Os republicanos eram dominados pelos
ianques e os democratas pelos irlandeses. O primeiro, e, indubitavelmente,
o mais famoso político de origem italiana, o antigo presidente
da Câmara de Nova Iorque Fiorello LaGuardia, tinha sangue
judeu e a maioria do apoio veio da comunidade judaica. Foi apenas
em 1950, 30 anos depois de extinguir-se a grande onda de emigração
da Itália, que o primeiro italiano foi eleito para líder
do poderoso aparelho político-partidário Tamany
Hall.
Porém, a comunidade italiana também
começou o seu processo de assimilação. Nos
fins da década de 1930, quando o sociólogo William
Whyte observou os gangs italianos na zona norte da cidade de Bóston,
distinguiu entre os "rapazes da esquina" e os "rapazes
da faculdade" membros de "gangs" que estudavam
juntos na busca da mobilidade social. Com a segunda guerra mundial
e uma grande percentagem de filhos de emigrantes a fazerem parte
do famoso exército multiétnico dos Estados Unidos,
os descendentes de italianos, apesar de sofrerem do estereótipo:
"homens do crime organizado e de negócios sombrios",
tornaram-se políticos de todos os quadrantes e de todas
as esferas, exemplo de Ferdinand Pecora e Mario Cuomo, entre outros;
dirigentes de grandes companhias americanas, como Lee Iacocca
da Ford e da Chrysler; artistas e celebridades como Frank Sinatra
e Joe DiMaggio. No fim dos anos de 1980, a comunidade de origem
italiana estava completamente assimilada e parte integrante do
American Way of Life. Levou cerca de 100 anos.
Com os açorianos o mesmo acontece. Apesar
dos nossos números serem insignificantes, em comparação
com essas comunidades, pouco a pouco ficamos assimilados ao mainstream
americano. Dos nomes que ouvimos, que vemos, e lemos na comunicação
social, desde músicos a desportistas, todos estão
totalmente integrados no mundo estadunidense. Os que não
estão acabam por abrilhantar casamentos, aniversários
e festas de santos populares nos nossos salões ou a jogar
para o clube local de uma liga amadora. Na política, cada
vez mais são os luso-descendentes que descobrem esse mundo,
enquanto que os emigrantes continuam, infelizmente, mais preocupados
com o último mexerico da associação do bairro.
Ainda são pouquíssimos os descendentes de portugueses
neste mundo tão importante e decisivo como o da política.
Se bem que a nível nacional este mundo passe cada vez mais
por ser-se milionário, atributo que nem todos os açor-americanos
têm, não nos esqueçamos que não é
apenas em Washington que as decisões são feitas,
mas também nas câmaras municipais das pequenas vilas
e cidades, nas direcções escolares, nas comissões
de planeamento, entre outros.
Na comunidade de origem italiana dos Estados Unidos, a grande
onda de emigração quedou nos anos de 1920, e a sua
ascensão, que infelizmente só aconteceu com a tal
inevitável assimilação, ocorreu na década
de 1980. Se o mesmo acontecer com a nossa comunidade, a qual teve
o seu apogeu da emigração dos Açores entre
1965 e 1975, teremos de esperar mais 30 anos. Até lá,
parece que estamos apenas dispostos a falar de, a sonhar com,
uma assimilação sem diluição.
E para finalizar permitam-me contar-vos um caso pontual de dois
contemporâneos meus, dois patrícios das minhas ilhas:
o Daniel e o Frederico. Ambos vieram com os seus pais dos Açores
tinham cerca de 12 anos. Ambos frequentaram as escolas americanas,
a primária e a secundária. Ambos tocaram na filarmónica
portuguesa, frequentaram as escolas comunitárias, jogaram
futebol na equipa local. Entretanto, e ao terminarem os estudos
secundários, os seus destinos jamais se cruzaram. Frederico
optou por ficar na comunidade portuguesa local, Daniel decidiu
expandir os seus horizontes, deixando a pequena e pacata comunidade
onde vivia. Aos 18 anos Frederico foi para o mundo do trabalho,
era necessário ter um carro novo para impressionar as moças
portuguesas na festa de Nossa Senhora de Fátima. Daniel,
com o seu carro velhinho, foi para a faculdade: tinha um sonho,
quimérico, para muitos dos seus colegas e mais disparatado
para os amigos dos pais: queria ser advogado. O Frederico, Fred
para os seus amigos, depois de entrar no mercado de trabalho,
penetrou o mundo do associativismo português. Foi membro
de várias organizações sociais e comissões
de festas e um indivíduo muito falado, extremamente popular,
nos meios comunitários. O Daniel continuou na faculdade,
esquecido para a maioria dos seus conterrâneos. O tempo
foi passando e onde estão hoje estes dois amigos, vinte
e tal anos depois de terem ido por caminhos separados, estradas
com incontáveis aculturações e assimilações?
O Daniel é, evidentemente, um advogado.
Voltou à zona onde foi criado e exerce a sua profissão
junto do multiculturalismo americano. Continua amante da música
e toca numa orquestra sinfónica da sua zona. Gosta do teatro,
tendo que fazer frequentes deslocações a San Francisco
e Los Angeles. Aprecia as artes plásticas e a sua firma
apoia várias galerias. É raro participar na vida
comunitária. Quando o convidam, diz que, infelizmente,
não tem tempo, a sua vida profissional não o permite.
Numa exposição de arte promovida durante uma das
edições do simpósio Filamentos da Herança
Atlântica ficou maravilhado com a qualidade dos nossos
artistas plásticos açorianos. Já regressou
aos Açores, aliás, já lá fez férias
algumas vezes. Gosta das suas ilhas e gosta muito de Lisboa, mas
também gosta de viajar pelo mundo. Está totalmente
integrado na sociedade americana. A comunidade portuguesa, embora
à sua beira, é um lugar distante e remoto. Aprecia
o mundo norte-americano, e participa nele.
O Frederico, por seu turno, ficou na comunidade, integrou-se
na agro-pecuária e tem um negócio de serviços.
Tem casa grande e carro luxuoso. Já foi presidente de quatro
festas portuguesas, fez parte de várias direcções,
tocou na filarmónica local durante muitos anos. As filhas
já foram rainhas das festas do Espírito Santo. O
seu mundo é a comunidade local. Também ele gosta
da sua terra e lá tem ido várias vezes. Nunca foi
a Lisboa. Gosta de passar os seus dias de descanso, na sua ilha,
a ver uma tourada. Tem as filhas à beira do fim do ensino
secundário e não compreende porque, pelo menos uma,
insiste em ir estudar para longe. Mas acabará por aceitar.
Estas duas vidas são paradigmas de muitas outras nas nossas
comunidades no estado da Califórnia e em outras partes
onde vive gente oriunda das nossas ilhas. Quis partilhar a história,
sem fazer juízos, ou recriminações. Acho
que é apenas um exemplo claro e inequívoco dos processos
de aculturação, assimilação e integração
que se vive, quotidianamente, no mundo açor-americano.
De encadeamentos que há muito existem e, raramente são
trazidos à flor da pele, mas que são importantes
temas de debate e, obviamente, de estudo. E que fique claro que
nos Estados Unidos todos os grupos étnicos, mais cedo ou
mais tarde, adaptam a mitologia americana. Mas essa mitologia,
apesar das lutas, constantemente, enfurecidas pelos segregacionistas
e pelos puristas, acabará, mais cedo ou mais tarde por
pertencer ao mestiço. O ser humano que abarca vários
mundos, várias culturas e poderá, mutuamente, sem
complexos, vivê-los e explicá-los.
Diniz Borges
Texto Apresentado no aniversário da Adiaspora.com
em Toronto, no Canadá.
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