PALESTRA DO DR. FERNANDO MANUEL MACHADO MENEZES, ILUSTRE PRESIDENTE
DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA REGIONAL DOS AÇORES , NO DECORRER
DO XV ENCONTRO DOS ANTIGOS ALUNOS DO LICEU NACIONAL DA HORTA,
NO DIA 11 DE OUTUBRO DE 2003, EM EAST-PROVIDENCE, RHODE ISLAND,
EUA.
Sua Excelência O Presidente da Assembleia
Legislativa Regional dos Açores
Dr. Fernando Manuel Machado Menezes
Caros membros da Comissão Organizadora do XV Encontro
dos Antigos Alunos do Liceu da Horta. Caros colegas e amigos de
todas as gerações que hoje aqui estão connosco:
As minhas primeiras palavras são, naturalmente, de profundo
agradecimento por me terem convidado para estar hoje aqui neste
maravilhoso convívio que é para mim também
uma honra e um grande prazer. Um grande prazer, em primeiro lugar,
para poder evocar aqui, um tempo muito especial que muito nos
marcou - o tempo do Liceu, e também um lugar que está
sempre no nosso coração - aquelas Ilhas perdidas
no Atlântico - Os Açores.
Grande prazer ainda, por encontrar aqui tão longe, tantos
amigos reunidos com o pretexto de celebrar a nossa memória
comum, a saudade da terra, as raízes e aquele tempo em
que despontávamos e começávamos a descobrir
a vida.
Estamos assim, muito longe daquelas ilhas, a fazer uma ponte
entre a América e os Açores, uma ponte que tem como
alicerces a nossa cultura, a nossa história, as nossas
raízes e a nossa memória colectiva.
E se há pontes construídas com latão e
ferro, que caiem por força da natureza ou pela destruição
bélica provocada pelos homens, esta ponte, que nos une,
não pode ser destruída, porque está assente
em alicerces de sentimentos muito mais fortes e consistentes.
É isto que chamamos Identidade, é isto que nos
distingue dos outros num mundo moderno e globalizado onde tudo
vai ficando cada vez mais igual.
Bem hajam por isso, por perseverarem aqui este sentimento e
esta identidade que é só nossa de ilhéus
temperados de sal e mar.
Caros colegas e amigos:
Ao longo destas vossas celebrações, foram certamente
muitos os vossos convidados de honra e todos certamente mais sábios
e eloquentes do que eu. Não sei o que disseram nessas ocasiões
e por isso corro o risco de repetir coisas já ditas. Quando
se evocam festas passadas isso pode sempre acontecer. Perdoem-me
por isso e concedam-me a indulgência de considerar as minhas
palavras com as de alguém que veio aqui sem outras preocupações
que não fosse o reencontro, o convívio, o abraço
fraterno. Resta-me, contudo, a esperança de estarem hoje
aqui presentes colegas e amigos que não participaram em
anteriores celebrações porque, para esses, tudo
o que eu disser é novidade.
Meus amigos:
O nosso Liceu da Horta foi criado por uma Lei de 1844 e foi
aberto ao ensino em 1851 ou seja, há 152 anos. Funcionava
mal e sem instalações próprias, nos baixos
do Governo Civil onde hoje a Repartição de Finanças
da Horta. Ensinava-se latim, francês e inglês, matemática
e geometria, física e química, história natural
e desenho. Em 1852 tinha cinco professores e alguns jovens, já
com barba, pois já se ia para o liceu com 18 ou 19 anos.
O primeiro reitor foi o advogado João de Bettencourt Vasconcelos
Correia e Ávila, o mesmo que fundou o Teatro Faialense
em 1853. Ainda em 1852, O Liceu encontrou instalações
mais adequadas em fronte ao Largo da República, onde se
situava o Convento da Glória e onde funcionou até
há bem pouco tempo a Escola das Raparigas da Matriz. Em
1882 e em virtude de cada vez maior escassez de espaço,
o Liceu passou a funcionar no Largo do Bispo D. Alexandre onde
depois viria a instalar-se a Legião Portuguesa e onde está
agora o Grémio Literário Artista Faialense. Em 1918
por Decreto foi dado o nome de Manuel Arriaga ao Liceu da Horta.
Com o terramoto de 31 de Agosto de 1926, o edifício do
Liceu ficou seriamente danificado e o Liceu teve de ser instalado
na Conceição no Palacete do Barão da Ribeirinha
onde se manteve até 1935. Este edifício não
existe pois foi ocupado durante o tempo da guerra e foi totalmente
destruído por uma explosão. Por esta altura havia
cerca de cem alunos no Liceu.
Em 1928, já no governo do Estado Novo sendo Presidente
o Marechal Carmona, deu-se um episódio curioso. Por decreto
do Governo, em Abril daquele ano, extinguiu-se o Liceu da Horta.
Porém, foi de tal ordem a movimentação das
forças vivas da Ilha que, nesse mesmo ano, em Julho, foi
de novo restabelecido o Liceu. Depois de 1935 após o prédio
onde estava instalado o Liceu ter sofrido uma série de
abalos sísmicos, o Liceu passou a funcionar no local actual
que pertencia à companhia de cabos submarinos, Eastern
Telegraph Company Limited.
É muito interessante a história do nosso Liceu
existindo um livro que merecia ser reeditado e que foi divulgado
em 1952 por ocasião dos cem anos do Liceu. Ali encontramos
o registo de todos os professores, dos reitores e de muitos alunos
que se revelaram figuras muito importantes para o nosso país,
desde logo, o primeiro Presidente da República, Dr. Manuel
de Arriaga.
Como sabemos, o nosso Liceu foi um importante berço de
ensino, de formação e cultura desde há 150
anos. Tal como nós, foram gerações e gerações
de professores e alunos que passaram por aqueles bancos, por aquelas
escadas e por aqueles pátios.
Por iniciativa da Associação dos Antigos Alunos
em breve vai sair um livro com a história do Liceu elaborado
pelo Dr. Carlos Labão. E, por falar na Associação
quero dizer-vos que entre os dias 24 a 26 de Setembro decorreram
na Universidade de Lisboa um colóquio designado, "O
Tempo de Manuel Arriaga", que contou com a presença
de filósofos, historiadores, professores universitários
e que foi um contributo notável para o estudo do pensamento
e obra desse nosso Manuel de Arriaga que nasceu na Horta na casa
que todos conhecem, na Rua do Arco - As Florinhas - onde foi a
Acção Católica e onde tantos de nós
jogávamos à bola.
Sem vos querer maçar mais com história dirvos-ei
apenas que Manuel de Arriaga, para além de ser o primeiro
Presidente da República, foi professor, reitor da Universidade
de Coimbra, advogado, Procurador Geral da República, deputado,
poeta e escritor. Para terem uma noção da importância
deste colóquio, ele foi patrocinado pelo Presidente da
República, pelo Presidente da Assembleia da República,
pelo Ministro da República, pela Assembleia Regional, pela
Câmara Municipal e pela Reitoria da Universidade de Lisboa.
E já agora informo também que foi aprovado pela
Assembleia da República a trasladação dos
restos mortais de Manuel de Arriaga para o Panteão Nacional.
Não me vou alongar muito em histórias mas deixo
aqui uma para que assim se possa compreender um pouco do perfil
desta pessoa. Note-se que, seu pai era um monarca e quando o filho
foi estudar para Coimbra e abraçou a causa republicana
o pai escreveu-lhe que se não abdicasse das ideias novas,
republicanas, ficaria sem a mesada. Manuel de Arriaga não
ficou impressionado ou atemorizado pelas ameças e respondeu
ao pai que continuava republicano. A partir daquele momento Manuel
de Arriaga começou a dar explicações para
custear os seus estudos. Era pois um homem realmente de fibra
pelo que ficou na História da Primeira República
Portuguesa.
Para vossa curiosidade posso vos dizer que quando me encontrava
em Lisboa por altura do lançamento de uma biografia sua,
a neta de Manuel de Arriaga, uma senhora com mais de noventa anos
de idade, chegou-se ao pé de mim e entregou-me um papal.
Olhei e, para meu espanto, era uma cópia do bilhete de
identidade de seu pai. Sabem qual era o número daquele
documento? Era o número um. remonta do tempo em que, em
Portugal, foi instituído o registo civil. Tenho-o zelosamente
guardado no meu gabinete de trabalho.
Caros colegas e amigos:
Posso dizer que sou da guarda de 60. Entrei para o Liceu em 1963
e ali estive até 1970, ano em que fui para Coimbra. Foram
sete anos que não se esquecem. É o tempo em que
começamos a despontar para a vida, em que começamos
a fazer amigos. É também o tempo em que começamos
a olhar para as raparigas de forma diferente. Nem tudo são
rosas nessa altura, pois surgem as dificuldades, talvez negativas
ou desgostos de amor mas a vida é assim e imposta entre
as boas recordações. Havia bons professores que
nos marcaram positivamente e havia outros de quem não se
gostava. Para mim e talvez também para vocês há
professores que não se podem esquecer; Dr. Benacús,
um grande pedagogo; Dr. Tomás da Rosa, um homem de invulgar
cultura; Dra. Manuela Monteiro, Dr. António Duarte, D.
Maria Fernanda Horta, D. Zoraida Saldanha; o padre Júlio
e o padre Correia. É claro que não se pode esquecer
o meu reitor de sempre, o Dr. Madruga um dos homens mais conservadores
que conheci.
Quem não se lembra daquelas ordens de serviço,
hoje completamente desajustadas, relativos à circulação
dos rapazes e raparigas pelas escadas e corredores para que não
houvesse o perigo de se encontrarem? A este propósito,
guardo religiosamente uma carta do reitor para o meu pai, ameaçando-me
de expulsão porque "o seu Filho foi encontrado em
jeito de namoro com uma aluna". Imaginem! Tratava-se da minha
mulher com quem estou casado há quase trinta anos!
Outros episódios interessantes aconteceram no meu tempo
e que hoje, se podem contar nas paredes, bandeiras colocadas no
mastro principal, etc., etc. Foram talvez para nós os primeiros
sinais de revolta. Recordo-me de uma greve que fizemos aí
pelo 6 ano e de ver, no Largo do Infante, à paisana para
disfarçar, os nossos amigos policias, pais dos nossos colegas,
que corriam para nós sem nos fazer qualquer mal, como o
senhor Valadares, o senhor Félix, o senhor André,
talvez o senhor Almeida, pai da Luísa, e mais alguns outros.
Bons homens que recordamos com saudade. Mas recordo, sobretudo,
aquele convívio, os jogos de futebol entre turmas, as fugidas
para o cais de St. Cruz quando o tempo começava a aquecer,
os teatros, as primeiras cigarradas no fim da rampa nos intervalos
das aulas e tantos outros momentos que preenchem a nossa memória.
Tenho também uma imagem muito nítida dos nossos
colegas que vinham do Pico, de S. Jorge, das Flores e do Corvo.
Sofriam mais do que nós pois saíam de casa muito
cedo. Para eles a minha homenagem. A este propósito não
resisto a ler-lhes um pequeno texto do Professor Fernando Melo:
Sozinho no Cais
Despedi-me de meus tios e primos com a leve sensação
de quem vai voltar.
Minha avó ficou de lágrima no olho e prometeu rezar
ao Senhor Santo António
Para me dar luz da inteligência. Minha madrinha encheu-me
de conselhos e
Ofereceu-me um lenço com um F bordado. Mas o que eu mais
senti foi o
Abraço que meu avô me deu, dizendo a sorrir: - "Aproveita
p'ra seres um
Home grande - grande como aquele Pico
" E ficou de bigode
a tremer,
tomado de comoção.
Pela manhã seguinte, muito cedo - ainda as estrelas piscavam
no céu -
Entrei com meu pai na camioneta da carreira. Não olhei
para trás, para o
Balcão de casa, para não ver minha mãe chorar
Mas
cerrei os dentes,
Pensei nas coisas bonitas que iria ver na cidade e consolei-me
com a ideia
De ser um rapaz crescido, estudante do liceu
Na Horta, andei com meu pai por casas de amigos e conhecidos da
família.
E todos ofereciam os seus préstimos, caso "eu necessitasse
de qualquer coisa
"
Era como se eu fosse uma "encomenda" preciosa, entregue
na cidade com todos os cuidados.
Um dia depois, vim ao cais despedir meu pai - a cara ainda pintada
da "festa dos caloiros". Ficámos frente a frente,
à beira da "escaleira" entre pessoas, sacos e
cabazes. Foi um abraço breve e sem palavras - e eu abalei
por ali fora, a correr, até ao gradeamento fronteiro, atrás
do qual me escondi a ver a agitação do embarque.
E quando a lancha se afastou do cais e começou a deslizar,
baía adiante, na viagem do Pico, as lágrimas rebentaram-me
dos olhos e caíram cara abaixo, maiores que pingos de chuva.
Qualquer coisa dentro de mim se quebrara, como se um mundo tivesse
acabado e outro se esboçasse à minha frente, cheio
de interrogações e incertezas...Um mundo que eu
teria de enfrentar.
E só em casa - na casa onde ficara hospedado - é
que as lágrimas me secaram, sobre as páginas dos
livros, ainda para mim desconhecidos.
E depois tinham ainda aquelas viagens terríveis na Espalamaca,
Calheta e as Velas para a Madalena, Calhau, S. Mateus
Era
o Gilberto com uma carroça a levar-lhe o envelope com o
dinheiro, o bolo de milho, o queijo, a linguiça e a batata
doce assada. Ainda não foi feita a homenagem devida a este
valente e grande homem que bem merece uma estátua em cima
dos cais da Madalena e da Horta.
Herói do canal, estou a vê-lo agarrado ao cabo
da lancha no porto da Madalena em dia de maresia. Era assim o
meu tempo, o nosso tempo do Liceu da Horta.
Caros amigos e colegas:
Vou terminar porque mais importante do que dissemos é
o convívio deste encontro de amigos. Não quero porém
faze-lo sem vos saudar, mais uma vez, pelo que fizeram nesta terra
que vos acolheu quando a nossa era madrasta e por procurarem manter
vivas as nossas raízes de portugueses e açorianos.
Perdoem-me pelo tempo que vos tomei. Antes de acabar não
resisto a ler-lhes uma curta passagem de um poema que, um antigo
reitor do Liceu da Horta, dedicou aos seus alunos em 1952.
Este reitor chamava-se Dr. Mourão Correia e dizia assim:
Eu sou o homem das Ilhas de Bruma
Vivo no meio das ondas alterosas
Sentinela vigilante do meu Mundo
Sob um céu de manchas vaporosas
Tenho ao redor de mim o mar profundo
Deixem-me viver e sonhar
Nas minhas Ilhas de Bruma
Deixem-me arquitectar
Nos rochedos junto ao mar
Os meus castelos de espuma
E o meu palácio encantado
Feito de Amor e Tormento,
Onde leio o significado
Do meu próprio sofrimento
E referindo-se aos alunos que emigraram, terminava assim:
E se o meu corpo embarcar
Para outro Mundo distante
A minha Alma há-de sangrar
Presa aos castelos de espuma
Que eu construí junto ao mar
Nas minhas Ilhas de Bruma!
Obrigado irmãos das Ilhas de Bruma!
Vai um abraço a todos.
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