CONVERSAS DA DIÁSPORA

- Com o Pioneiro António Moniz do Couto -

(Toronto, 21 de Setembro de 2003)

Por Adelina Pereira - Adiaspora.com

Adiaspora.com: Encontramo-nos na presença do Senhor António Moniz do Couto, um dos Pioneiros que embarcou na aventura da emigração logo nos seus primórdios. Quer-nos fornecer alguns dados pessoais como o seu nome completo e origem?

António Couto: Nasci em 1920 na Freguesia de Santo António do Nordeste, S. Miguel, Açores.

Adiaspora.com: Quer-nos contar um pouco como foi a sua vida nos Açores antes de emigrar para o Canadá?

António Couto: Sempre tive a ideia de arranjar um futuro. Fui militar durante 39 meses na Segunda Guerra Mundial, sempre nos Açores. Antes de ir assentar praça, fazia várias coisas de que eu gostava. Se fosse necessário um carpinteiro, trabalhava na carpintaria. Deitava mãos a tudo. Sempre tive vontade de progredir. Quando regressei da tropa, o meu pai já tinha falecido. Decidi que teria de resolver a minha vida por ali perto. Como, na altura, não consegui ir para mais longe, como era minha vontade, fui para a Ilha de Santa Maria. Fui um pouco à aventura. Em Santa Maria, fui para trabalhar no comércio por um mês. Mas enquanto lá estive, estava sempre preocupado, pois o que eu, na verdade, queria era arranjar uma outra saída profissional. Mas não tinha quaisquer conhecimentos em Santa Maria, o que dificultava um pouco as coisas. A minha ideia foi sempre conseguir um melhor futuro. Certo dia conheci um senhor da Ribeira Grande com quem comecei a conversar. Perguntou-me este qual o serviço que fazia. Respondi-lhe logo que estava como balconista num comércio, mas que não gostava muito daquele trabalho. Primeiramente, era por pouco tempo, e eu almejava um futuro melhor. Então o senhor perguntou-me: "Você não sabe fazer outra coisa?" ao qual respondi que sabia trabalhar de carpinteiro, e de qualquer outra coisa. O homem então disse-me: "Não te preocupes. Vou te resolver o problema. Vou te arranjar um futuro. Mas porque se vai embora." Expliquei que o meu contrato assim o determinava. "Vai agora, e espera que logo retornarei com alguma notícia." Acrescentei que não tinha dinheiro, mas este logo me despreocupou ao dizer-me que me emprestaria alguma ferramenta para poder começar a trabalhar.

Adiaspora.com: Como é lhe surgiu a ideia de emigrar?

António Couto: Sempre tive o sonho de emigrar para qualquer lado para arranjar melhor vida. Mas, na altura, o Brasil era a única saída em termos de emigração. Mas havia um problema. Eu não tinha qualquer família lá, e, por isso, não tinha quem me enviasse a carta de chamada que era preciso nesse tempo. Um senhor meu conhecido disse-me, certa vez, que tinha um senhora advogada no Brasil que possuía, por sua vez, outros conhecimentos, familiares seus, a quem poderia pedir que me enviasse a dita carta, e que poderia tratar lá de todo o meu processo de emigração. Não levou muito tempo que me foi garantido trabalho no Brasil como carpinteiro por um ano.

Adiaspora.com: Mas, afinal o que é que o levou a optar pelo Canadá?

António Couto: Eu já tinha toda a documentação pronta para ir para o Brasil, quando se descobriu que tinha aberto a emigração para o Canadá. O tal senhor perguntou-me se eu, de facto, queria ir para o Brasil. "Vou-lhe dizer", disse ele, " o Brasil pode ser bom ou não, mas a moeda é muito fraca e tem agora uma oportunidade de ir para o Canadá. Há, todavia, uma desvantagem. O idioma. Terá de o aprender. mas não pode levar muito tempo a decidir-se porque isto é para já." Decidi então tentar a minha sorte no Canadá. Diziam que era um país muito frio mas que a moeda era muito forte. Embora a língua fosse outra, eu não era tão ignorante que não a aprendesse. Nunca tive medo. Fui sempre destemido.

Adiaspora.com: Onde tratou da documentação para vir para o Canadá?

António Couto: Foi tudo em Ponta Delgada. Foi-me aprovado o meu requerimento e foi naquela altura que conheci o Senhor Ferreira da Costa, o funcionário que estava a guiar todo este processo. Estavam a pedir vinte pessoas. Queriam saber quais os seus ofícios, se eram agricultores, enfim, o que faziam. Os melhores foram seleccionados e enviados para a Junqueira em Lisboa. Houve muitos que foram eliminados. Fui o mais velho a ser seleccionado. Tinha eu então 33 anos de idade. Tratei logo de saber de como era com os dinheiros para a viagem. Na altura, tinha no Nordeste duas irmãs e um irmão. Mas vi logo que não havia grande problema. Houve até um senhor que se ofereceu para me emprestar algum dinheiro, caso necessitasse. Só depois de estar confirmada a minha ida é que informei os meus familiares das minhas intenções e, entre todos, lá arranjámos o dinheiro para a viagem. Afinal, não foi necessário recorrer aos de fora. Estivemos três semanas na Junqueira. Havia dois senhores que me meteram muita pena, pois não foram aprovados no exame médico e estavam na iminência de ter que regressar à terra. O funcionário a quem já me referi, prometeu arranjar-lhes uma alternativa. Foi-lhes então dada a oportunidade de emigrar para o Brasil com um contrato de um ano para um restaurante. Tiveram um fim feliz. Mais tarde, estive no Brasil e encontrei-me com eles. Estavam muito bem de vida, pois os seus patrões, por ter atingido uma idade avançada, acabaram por entregar os seus restaurantes aos dois.

Adiaspora.com: Ao grupo de açorianos destinado ao Canadá juntaram-se alguns continentais e madeirenses, e lá vieram no Saturnia que chegou ao porto de Halifax na noite do dia 13 de Maio de 1953. Mas só saíram do navio na manha seguinte?

António Couto: Sim. Só nos entregaram os nossos passaportes e dinheiro ao desembarcarmos. Queria aqui dizer que o Senhor Doutor Ferreira da Costa foi um santo. Explicou-nos tudo em pormenor. Constava-se, quando ainda estávamos no continente, que havia roubos. Mas ele disse-nos que não havia nenhum problema, pois iria juntar o nosso dinheiro e pô-lo no cofre do navio. À despedida disse-nos ainda que: "Daqui para lá, vocês é que sabem o que hão-de resolver. A questão do dinheiro já está resolvida. Daqui para lá, o futuro é vosso. Já fiz tudo que me era possível. Espero que, pelo menos, um dia me escrevam um postal com notícias vossas".

Adiaspora.com: Para onde foram depois de desembarcar? Pernoitaram em Halifax?

António Couto: Não. Fomos directamente para o comboio que nos levou para Montreal. Levámos dois dias de viagem. Em Montreal, fomos para a Imigração e lá, quando vinham as pessoas, os farmeiros (agricultores), nos ver, cada um de nós explicava o que sabia fazer.

Adiaspora.com: Já vinham com contrato para trabalhar na agricultura nas quintas?

António Couto: Sim. Já vínhamos contratados com o salário, na altura, de $150 por mês.

Adiaspora.com: Com comida e alojamento?

António Couto: Com comida também. Só que passei muita fome. Não havia suficiente de comer. Calhou de eu ficar perto de um senhor espanhol que tinha uma casa de pasto. Sempre que precisava, esse senhor levava-me comida, não só para mim mas para outros também.

Adiaspora.com: Depois da sua chegada a Montreal, veio o quinteiro buscá-lo para o levar para o farm (quinta)?

António Couto: Sim. Comecei a trabalhar logo no primeiro dia, imediatamente. O farmeiro explicou-me por gestos como é que devia trabalhar. Eu não sabia nada, mas estava sempre muito atento àquilo que me explicavam. Estive naquele farm três meses. O dono não tinha muito dinheiro e, ao fim deste tempo, disse-me que não tinha mais trabalho para mim e que teria de me ir embora. Levou-me novamente para a Imigração em Montreal, onde me informaram que, até ali, não tivera de pagar nada, mas que dali por diante a estada seria por minha conta. Ao fim de dois dias, veio uma pessoa chamar-me para trabalhar noutro farm. Quando lá cheguei, perguntou se eu sabia trabalhar num aviário que lá havia, ou se preferia a agricultura. Mas naquela altura, fiquei um pouco em dúvida, pois quando chegou às dez da noite, hora de regressar a casa para dormir, e vi aquilo, com uma escada para cima, e sinto as galinhas a fazer barulho, no lugar que me era destinado passar a noite, eu disse, na minha língua: "Aqui não fico. Vai me já levar à Imigração." Mas o farmeiro recusou-se. Tinha visto uma pessoa ali a apanhar uma camioneta e assim o fiz. Apanhei a camioneta, e como trazia o endereço da Imigração comigo, mostrei-a ao condutor e este lá me levou. Voltei mais uma vez para a Imigração em Montreal. Ao fim de um dia, apareceu outro quinteiro e fui trabalhar novamente para a agricultura. Mas, desta feita, fiquei lá seis meses. O farmeiro não era dos melhores, mas também não era dos piores. Como éramos jovens naquele tempo, necessitávamos de comer bem e nem sempre havia muito de comer. Eu trabalhava, no mínimo, treze horas por dia. Às sete da manhã, estava pronto para ir para o trabalho. Quando eram seis horas da tarde, regressávamos e comíamos - a comida nunca era muita. A comida era diferente daquela a que estávamos habituados. Contudo, nunca me passou pela cabeça regressar a Portugal. Sempre tive a ideia de avançar, custe o que custasse.

Adiaspora.com: Para onde foi após esses seis meses?

António Couto: Fui para outro farm onde estive mais três meses. Mas o dono deste farm tinha ideias muito diferentes das minhas. Quando lá cheguei informou-me que teria de trabalhar treze horas por dia. Aquilo confundiu-me um tanto ou quanto. De manhã, tinha uma refeição. Ao meio-dia tinha outra refeição. Ás seis horas era a última e, nessa altura, ainda tinha de regressar ao trabalho, pois aquilo eram três farms, e eu tinha de andar com os carros. Aproximei-me do patrão e disse-lhe: "Já comi ás seis horas, mas agora já estou com fome outra vez. Dê-me algum dinheiro para comprar alguma coisa de comer." "Isso é contigo. Quando receberes o teu dinheiro, faz com ele o que quiseres.": respondeu-me.

Adiaspora.com: Depois dessa sua vida nos farms, foi então para Labrador?

António Couto: Foi nessa altura que resolvi que teria de sair dali para fora. Não sabia falar francês, mas já andava, na altura, com um dicionário e prestava atenção ao que diziam em meu redor. Certo dia um senhor francês perguntou-me se queria ir com ele para Labrador de avião. Decidi, de uma hora para a outra, e lá fui. Tinha comigo uma mala de roupa e como era peso a mais no avião, deitei-a no lixo e fui-me embora. Quando cheguei lá, o francês tratou de descobrir onde podíamos arranjar trabalho. Fomos ambos trabalhar para a construção de habitações, no enchimento de fundações. Isto foi na construção da vila de Shefferfield. Tínhamos dias de 60 graus negativos em que não podíamos sair, nem para comer. Dormíamos em tendas e trabalhávamos debaixo de um tolde por causa do frio.

Adiaspora.com: Naquele lugar tão isolado acabou por sentir falta de companhia feminina?

António Couto: Quando vim para o Canadá não podia ter uma companheira comigo. Tinha de primeiro assegurar o meu futuro. Ao fim de três anos, regressei aos Açores para visitar os meus irmãos e para fazer a partilha de alguns haveres. Na altura, o meu irmão perguntou-me se tencionava regressar de vez. Respondi que não, que podia vir só de visita. Durante essa minha estada nos Açores, fui à festa da Vila do Nordeste, uma freguesia vizinha, onde vi a moça que viria a ser a minha esposa. Tentei saber se era comprometida, e fui informado que não o era. Fui falar com ela e disse-lhe que se me aceitasse, casaríamos num prazo de dois meses. Falámos pela primeira vez no dia 25 de Março de 1960, e casámos no dia 29 de Maio desse mesmo ano, em S. Miguel. A minha esposa chama-se Maria Odília da Mota Teves. Tivemos três filhos, Francisco Manuel, Tony e José Charles Christophe. O mais velho é advogado. Trabalha para o Ministério da Justiça. O segundo é farmacêutico e o mais novo, embora trabalhe actualmente como informático, é formado em Economia.

Adiaspora.com: Voltou então ao Canadá mas, deste feita, trouxe a sua esposa?

António Couto: Ela ficou lá. Como já estava grávida, ficou em casa dos pais. Durante cinco anos e meio, ia lá visitá-la todos os anos. Ficava lá um mês e depois regressava.

Adiaspora.com: Para onde foi trabalhar depois?

António Couto: Para a companhia mineira, Cartier Mining, na construção do aldeamento de Gagnon, no norte do Quebeque. Quando lá cheguei, havia poucas pessoas ali residentes, mas Gagnon cresceu rapidamente e depressa já éramos uns 4 ou 5 mil. Não havia quaisquer acessos rodoviários, só por via aérea e ferroviária.

Adiaspora.com: Quanto é que ganhava nessa altura em Gagnon?

António Couto: Cinco dólares à hora, o que já era bom dinheiro. Mas sempre que me era possível, fazia horas extras. No Inverno, a neve era de tal ordem que o comboio não passava. A neve era tanta que se tinha de limpar as margens da linha ferroviária com uma máquina própria. Apesar de não ter experiência, comecei logo a trabalhar como operador desta máquina.

Adiaspora.com: Ao fim de cinco anos, a sua esposa foi juntar-se a si naquelas paragens frias?

António Couto: Sim e nasceram lá mais dois filhos. Felizmente, fomos sempre um casal muito unido.

Adiaspora.com: Depois de Gagnon, para onde foi com a sua família?

António Couto: Mudámos, ao fim de algum tempo, para Port Cartier, sempre ao emprego da Cartier Mining, e para quem trabalhei durante 29 anos. Nesta altura, já trabalhava na área da mecânica, na manutenção de comboios. Reformei-me aos 67 anos de idade. Queriam que eu continuasse, mas decidi que era tempo de parar de trabalhar. Os meus filhos estavam dispersos a estudar em diversos lugares. Não podíamos continuar sozinhos os dois em Port Cartier, e decidi vir para Laval. Vendi a nossa casa em Port Cartier para estarmos mais próximos dos nossos filhos.

Adiaspora.com: Tem regressado a Portugal nestes últimos anos?

António Couto: Estive lá há quatro anos.

Adiaspora.com: O que acha de Portugal, dos Açores, nestes dias?

António Couto: Gosto muito. Mas nunca trocaria o Canadá pelos Açores. Gosto muito de ir de visita, mas o Canadá é, hoje, a minha terra. Pois tenho aqui os meus filhos, e tenho a minha vida toda cá.

Adiaspora.com: Acha que os Açores estão mais moderno e desenvolvidos?

António Couto: Está tudo muito melhor. Hoje, a gente de S. Miguel está rica. Está muito desenvolvido. Gosto imenso de ver. Antes a vida lá era muito difícil, era uma pobreza. Agrada-me ver que aquelas gentes hoje são felizes. Está tudo muito diferente. Mudou para melhor e espero que progrida cada vez mais.

Adiaspora.com: Este ano, decorrem por todo o Canadá homenagens a esse grupo de Pioneiros, os jovens valentes que saíram de Portugal no Saturnia à procura de vida e futuro melhor. Como se sente a ser homenageado desta forma?

António Couto: Orgulhoso e comovido ao ver como estou hoje e como era dantes. Lembro-me, ao receber estes tributos, dos que lá ficaram e daqueles que me ajudaram no percurso. As homenagens que se têm feito por todo o Canadá, é, afinal, não só um tributo à minha pessoa e aos outros pioneiros, mas também a todos os imigrantes que decidiram fazer do Canadá o seu novo país. Sinto-me orgulhoso por ver o que o Canadá era nos velhos tempos, e o que é nos dias de hoje, e quantos dos nossos conterrâneos hoje estão bem na vida. Temos agora, entre nós, doutores, advogados, e outros, o que me enche de muito orgulho. Experimentei algumas dificuldades quando vim para cá, mas agora a nossa gente está muito desenvolvida, tem progredido muito.

Adiaspora.com: O senhor António é, sem sombra de dúvida, um óptimo contador de estórias. Foi uma imensa honra e um prazer ouvi-lo. A equipe da Adiaspora.com está lhe muito grata pela atenção e amabilidade que nos dispensou, desejando-lhe, e aos seus familiares, muitas venturas para o futuro, e muitos anos de vida.


(Da esquerda para a direita) Afonso Tavares, Jaime Barbosa, António do Couto, Manuel Arruda, a Directora Regional das Comunidades, Dra. Alzira Serpa Silva, Manuel Vieira, João Martins,
Manuel Pavão e Armando Vieira.

Entrevista exclusiva de Adiaspora.com