CONVERSAS DA DIÁSPORA
- Com o Pioneiro José Botelho da Silva
-
(Santa Cruz da Lagoa, S. Miguel, Açores,
16 de Novembro de 2003)
Por José Ferreira - Adiaspora.com
O Pioneiro José B. da Silva no seu estabelecimento
na Lagoa, S. Miguel.
Tivemos, por ocasião da nossa recente deslocação
aos Açores, integrados na comitiva da comunicação
social luso-canadiana que efectuou a cobertura jornalística
da homenagem prestada pelo Governo Regional dos Açores
aos Pioneiros de Primeira Imigração Oficial Portuguesa
para o Canadá, a honra de termos conhecido e conversado
com um dos Pioneiros que optaram pelo regresso à terra
natal, o Senhor José Botelho da Silva. Não obstante
terem transcorrido cinquenta anos desde que encetou a sua aventura
por aquelas terras frias e intemperadas da América do Norte,
a sua memória lúcida guarda bem vivo os rostos dos
companheiros de viagem, as vivências e imagens que ali recolhera.
Parte, após as provas e inspecções médicas
preliminares efectuadas em Ponta Delgada, na companhia de outros
19 açorianos no barco Lima para Lisboa, onde durante
uma estada de três semanas na Junqueira, é novamente
submetido a novo processo de selecção, desta feita
obedecendo aos critérios da equipa médica canadiana
deslocada a Portugal para angariar mão-de-obra portuguesa
para as explorações agrícolas na região
de Montreal no Quebeque. A iniciativa partira do acordo bilateral
anteriormente estabelecido entre os estados português e
canadiano. Na Junqueira, presenciou a eliminação
de dois elementos açorianos que, por motivos de saúde,
não ficaram apurados, tendo posteriormente lhes sido dada
a oportunidade de emigrar para o Brasil, onde, segundo conseguimos
apurar, a sorte lhes sorriu e singraram na vida.
Fala-nos da travessia transatlântica no paquete Saturnia
que aportou Halifax, em 13 de Maio de 1953, após oito dias
no mar, já noite dentro. Recorda-se vivamente do desembarque
no dia seguinte, a passagem pela Imigração e a viagem
árdua e longa de dois dias e uma noite, num velho e vagaroso
comboio, a caminho da cidade francófona de Montreal, onde
o grupo de Pioneiros foi recebido pelo Cônsul Português,
um tal sacerdote brasileiro de nome Almeida. Aí, findas
as devidas providências burocráticas na Imigração,
viu o grupo dispersar-se pelos chamados farms ou quintas
dos arredores da cidade.
A José Botelho da Silva coube prestar serviço numa
exploração agrícola na companhia de um outro
Pioneiro, Evaristo Almeida.
José B. da Silva: Fizemos a viagem de Montreal
para o farm (quinta) na carrocçaria de um camião.
Fomos para Saint Leonard, uma região que era só
terras de cultivo onde fomos muito bem recebidos aquando da nossa
chegada à casa do quinteiro que tinha mulher e duas bonitas
filhas. Ao ver as jovens, e como jovem que era, o meu comentário
ao meu colega foi: "Evaristo, estamos bem. Pelo menos há
mulheres bonitas aqui!" O quinteiro alojou-nos num quarto
na sua própria casa. No dia seguinte, chamou-nos ao trabalho
ainda manhãzinha cedo. Era quase de noite. E assim foi
durante quase um ano. Trabalhávamos todos dias até
tarde, mas os filhos e filhas do patrão também o
faziam. Todas as noites, a garagem era lavada. Aquilo era tudo
muito asseado. O tempo foi passando até que o Evaristo,
certo dia, me perguntou se eu estava a namorar. Respondi-lhe que
não mas, na verdade, estava de namoro com a rapariga que
hoje é a minha mulher. Mas eu era "macaco" e
chegou-se ao ponto da filha mais nova do patrão querer
casar comigo. Ficávamos lado a lado na mesa, pois nós
comíamos à mesa com o patrão e sua família.
Tratavam-nos da melhor maneira possível. Comíamos
a mesma comida que eles. Com o decorrer do tempo, cheguei ao ponto
de dia pensar nas terras e no trabalho enquanto de noite pensava
na jovem que, entretanto, ia se aproximando de mim. Pensei: "Isto
não está certo. Vou-me embora!" Disse ao meu
colega: "Evaristo, vou-me embora daqui!" Daí
uns tempos resolvemos pedir um aumento de salário ao patrão,
pedido que foi recusado. Ao dizermos que assim viríamos
embora, o patrão ripostou que éramos obrigados a
trabalhar para ele durante um ano. Respondi-lhe que íamos
embora e que se este não quisesse telefonar para a Imigração,
eu telefonaria para o meu pai nos Açores. Assim, fizemos
as malas e apanhámos a camioneta para Montreal. Quando
chegámos à cidade, andámos pelas ruas a perguntar
onde havia trabalho. Até houve um polícia que nos
enganou! Perguntámos onde ficava um certo endereço
de um local em que se dizia haver trabalho. Indicou-nos o caminho
errado. Andámos e andámos e nunca mais lá
chegámos. Um polícia! Viu logo que éramos
imigrantes. Havia lá quem não gostasse dos imigrantes.
Depois, pedimos orientações a um velhote que nos
disse: "O! isso é lá adiante!" Fomos novamente
enganados. Finalmente, conseguimos dar com o lugar onde fomos
recebidos por pessoa simpaticíssima e a quem dissemos que
queríamos ir para a mata cortar madeira. Este informou-nos
que dois irmãos franceses, Maurício e Michel Benoit,
tinham trabalho para nós na lavoura. "Vão,
sim senhor": disse-nos, "Primeiro vão com este
homem trabalhar no amanho das terras durante três semanas
ou um mês e quando regressarem terão trabalho nas
matas." Desta feita, fomos ganhar $75 mas antes de terminarem
as três semanas, o patrão velho fui lá ter
com o irmão e pediu que regressássemos com ele a
ganhar o mesmo dinheiro porque quando começa a cair a geada,
tudo morre. Mas recusámos e pedimos que nos levassem de
novo para onde nos tinham ido buscar. Quando lá chegámos,
o patrão deu as melhores referências do nosso desempenho.
Nessa altura, já falávamos um pouco de francês,
o suficiente para entendermos o que nos diziam. O mesmo simpático
indivíduo que nos tinha arranjado o trabalho informou-nos
que, desta feita, havia vagas na vila de Saint Denis. Recusei
e lembrei-lhe que nos tinha prometido arranjar emprego no corte
de madeiras nas matas. E assim, mandou-nos apanhar o comboio naquela
mesma noite. Após um longa viagem que perdurou toda a noite,
sempre dentro da Província do Quebeque, chegámos
ao nosso destino. Permanecemos lá por volta de dois meses
a cortar madeira. No fim, a companhia comunicou-nos que já
não necessitava de mais madeira. Aquela madeira, após
o se corte, era largada nos rios congelados e quando chegava o
verão, ao descongelar o rio, era transportados pela corrente
até à fábrica. Regressei então a Montreal
onde trabalhei o restante Inverno numa fábrica dessas,
também como numa fábrica de loiça de alumínio.
Mas não ganhava muito e tinha a ideia de ir trabalhar para
as linhas ferroviárias de Seven Islands. Acabei por arranjar
colocação num armazém onde ganhava muito
bem. Na altura, já não me encontrava na companhia
do Evaristo, mas sim de um rapaz da Ribeira Grande de nome Guilherme
que compartilhava um quarto comigo. Certo dia disse-lhe: "Hoje
vou percorrer Montreal em busca de trabalho" porque na altura
havia uma espécie de agência a que os portugueses
afluíam para arranjar trabalho através de seus inspectores.
Tínhamos lá ido várias vezes mas sempre sem
qualquer êxito. "Queres que vá contigo?",
sugeriu o Guilherme pois o rapaz não sabia falar francês.
Corremos tudo e sem qualquer sorte até encontrarmos um
grande armazém. Entrámos e procurei o chefe. "É
aquele ali", indicou um dos funcionários. Aproximei-me
do homem que de logo inquiriu do que precisava ao que respondi:
"Trabalho". "São portugueses, não
são?" perguntou ele. "Somos" "Peço
desculpa, mas estamos na época de Inverno", continuou
o chefe, " O Rio St. Lawrence já está congelado
e não há serviço." Saímos e quando
já estávamos no topo da rua, ouvimos uns gritos
e assobios. Voltámos ao armazém onde nos disseram
que o boss (chefe, encarregado ou patrão) queria
falar connosco. "Sempre há trabalho para vós!",
disse-nos o chefe desta feita. Como viu-nos vestidos nos nossos
melhores fatinhos, disse que poderíamos começar
imediatamente ou apresentarmos ao serviço na manhã
seguinte. Optámos por iniciar o trabalho logo naquela hora.
Após uma ligeira refeição tomada nos arredores,
fomos instruídos a dirigir-nos para a doca onde teríamos
de carregar sacas de café, e de outras coisas para os camiões.
Mas que sacas grandes! Estávamos a trabalhar há
já um bom bocado quando o boss veio ter connosco.
"Vocês estão a deixar isto tudo mal.":
ele repreendeu. "Então porquê?": perguntei-lhe.
"Porque estão a carregar dois carros enquanto os outros
carregam somente um!" A partir daí trabalhávamos
mais lentamente mas acabávamos por fazer sempre mais do
que os outros. O meu companheiro, o Guilherme, ficou a trabalhar
dentro do armazém enquanto me foi atribuído o cargo
de ajudante do camião que fazia a distribuição
de mercadorias de pequeno porte na cidade de Montreal. Ao fim
de três semanas, o patrão veio ao nosso encontro.
"Tenho muita pena de vós, mas o rio está congelado
e já não há mais trabalho. Quando o rio descongelar,
voltem cá pois terão serviço." Neste
interregno, soube que a troco de $20 ou $50, arranjavam trabalho
nas minas de ferro em Seven Islands no norte da Província
do Quebeque. Assim o fizemos e partimos para aquela região.
Entretanto, arranjei colocação numa companhia de
moulin, ou seja uma unidade fabril de transformação
de madeira em pasta de papel, que havia na zona, mas acabei por
desistir pois a remuneração não era muita
e eu continuava a alimentar a ideia de ir para Seven Islands.
A fábrica de pasta de papel situava-se um pouco mais a
norte, à beira de um rio. A madeira vinha rio abaixo e
havia uma rede submersa nas águas que a travava. Havia
uma calha na água que transportava os troncos à
fábrica. Depois, parti para Seven Islands, acompanhado
de meu irmão e um rapaz de Rabo-de-Peixe, onde arranjámos
emprego nas linhas de ferro desta companhia mineira, tendo sido
submetidos a uma inspecção médica no hospital
local. Meu irmão e eu ficamos apurados mas o rapaz de Rabo-de-Peixe
foi diagnosticado com problemas de apendicite e ficou internado
por conta da companhia para ser submetido a uma intervenção
cirúrgica. O meu irmão acabou por ser colocado num
ramal das linhas de ferro enquanto eu o fora noutro. No meu ramal,
havia muitos trabalhadores portugueses do continente. Ficávamos
por lá uma semana sem regressar à base. As condições
de vida não eram muito boas e a comida algo escassa. Houve
uma altura em que um grupo de operários continentais desesperaram
e ameaçaram matar o boss (capataz ou encarregado).
Claro, foram todos despedidos e jamais puderam regressaram à
companhia. Depois deste episódio, voltei a tentar a minha
sorte na agência de emprego a que atrás me referia.
Estava cheia todos dias. Fui lá vezes sem fim. Havia um
restaurante italiano ali perto que frequentava onde vendiam refeições
de esparguete do qual gostava. Comecei a meter conversa com os
outros frequentadores, um dos quais, certa vez, me disse que seria
difícil arranjarmos trabalho dessa forma. "Conheces
o chefe da agência?" (Era um homem que estava sempre
sozinho num gabinete.) perguntou-me. "Vai a casa dele e leva-lhe
uma "ajuda", qualquer coisinha para a sua." Naquela
mesma noite, meu irmão, o rapazinho rabo-peixense e eu
fomos à casa do chefe da agência. Ao receber-me,
perguntou o que me levara ali. "Senhor, já andou na
agência há tanto tempo sem ninguém me dirigir
a palavra. Quero trabalhar, se possível para companhia
das minas de ferro." "Está difícil".
Combinei com os meus companheiros oferecer-lhe $50 por cada um
de nós. O homem não quis pegar no dinheiro. Insisti
que este não era pagamento mas sim uma oferta e coloquei-lhe
o dinheiro em cima da mesa e ele assim acabou por nos mandar apresentarmos
na agência no dia seguinte. Ia dando zaragata com os outros
candidatos a emprego, pois até ali não aparecera
trabalho nenhum e subitamente já havia para nós!
Acabei por arranjar emprego nessa companhia mineira onde parecia
não prestar para coisa alguma até à hora
em que anunciei que vinha embora. Então, os bossas
(encarregados) já não queriam que saísse,
nem me dar os papéis para ir ao escritório para
receber o meu último salário. Afirmaram que se algum
dia decidisse regressar ao Canadá, poderia sempre contar
com um emprego na companhia. O meu boss, que era francês,
disse-me: "Porque está sempre a pensar na Europa?
Compreendo as dificuldades pelas quais passamos. Não te
vás embora! Tens cá casa. A companhia paga-te o
aluguer." Mas não quis. Então regressei aos
Açores em 1958. Casei. Na altura, o meu pai estava doente.
Ia eu para cima da confissão na igreja, e o meu pai para
baixo num carro a caminho do hospital. Vim cá enterrar
o meu pai pois acabou por falecer quando eu estava de lua-de-mel.
Voltei ao Canadá por mais três anos onde trabalhei
de novo na mesma companhia mineira. Os patrões não
queriam deixar-me voltar aos Açores mas sim que chamasse
a minha esposa para o Canadá, o que não quis fazer.
Passou-se muito naquele Canadá. Passou-se, Meu Deus! A
minha função naquela empresa era electricista de
alta tensão. Ás vezes, um homem estava deitado em
casa com vento (gelado, Meu Deus) e neve com dez metros de altura.
Aquilo tudo branco! Não se via nada preto! Era tudo branco!
Pois estávamos praticamente no Labrador. Já estava
tão farto daquilo. Ás vezes, estava deitado na cama
e o boss batia à porta às onze horas, meia-noite,
uma da manhã. "Da Silva, vamos embora! A mina tal
está sem luz!" Lá nos vestíamos com
podíamos e saímos alumiados por uma lanterna. Depois,
tínhamos de detectar qual o ramal afectado. Isto tudo num
frio medonho. Por vezes, a árvores caíam com o peso
da neve e ficavam submersas. Quando calhávamos de tropeçar
numa, tínhamos que gatinhar na neve até alcançar
terreno plano! Era demais. Chegou a uma certa altura que eu disse
"Vou-me embora de vez! Vou-me embora de vez! O que já
sofri nesta terra! Jamais voltarei!". Quando finalmente o
avião sobrevoou a cidade de Montreal, olhei para trás
e disse: "Adeus Canadá que aqui não volto mais!",
tal foram os sofrimentos pelos quais passei. Ao todo, estive cerca
de nove anos no Canadá. Voltei para a Lagoa e jurei nunca
mais regressar àquele país. Todavia, tenho lá
cunhados e já me tentaram convencer a fazê-lo, mas
a jura que fiz é para se cumprir!
José B. da Silva despede-se da nossa
equipa. Lagoa, S. Miguel.
Adiaspora.com agradece a hospitalidade e simpatia com
que o Sr. José Botelho da Silva nos recebeu na Lagoa e
por este depoimento recheado de sofrimentos, mas também
de humor com que o narrador nos deliciou. Presentemente, o Sr.
José da Silva reside na Lagoa, S. Miguel, onde se encontra
estabelecido, na companhia de sua esposa, Inocência Carolina
Martins, e de seus filhos.
Entrevista exclusiva de Adiaspora.com
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