CONVERSAS DA DIÁSPORA

- Com o Pioneiro Manuel Arruda -

(Toronto, 4 de Novembro de 2003)

Por Adelina Pereira - Adiaspora.com


O Pioneiro Manuel Arruda na companhia de João Martins,
funcionário da Direcção Regional das Comunidades - Açores.

Adiaspora.com: Temos o prazer de ter connosco o Sr. Manuel Arruda, um dos Pioneiros que embarcaram no Saturnia para terras do Canadá em 1953.

Manuel Arruda: Chegámos a Halifax a 14 de Maio de 1953.

Adiaspora.com: O Sr. Manuel quer-nos informar quanto ao local e a data do seu nascimento?

Manuel Arruda: Sou natural da Freguesia dos Remédios da Bretanha, S. Miguel, onde nasci no dia 17 de Fevereiro de 1929.

Adiaspora.com: Quer-nos falar um pouco sobre a sua viagem?

Manuel Arruda: Primeiro, seguimos de S. Miguel para Lisboa no barco Lima. Estivemos hospedados na Junqueira durante três semanas até sermos inspeccionados pelos médicos canadianos. Fiquei apurado e saí de Lisboa no Saturnia no dia 8 de Maio de 1953 com chegada a Halifax no dia 13 de Maio à meia-noite, mas só desembarcamos no dia 14.

Adiaspora.com: Pode falar-nos um pouco da sua vida antes de emigrar para o Canadá?

Manuel Arruda: Quando emigrei ainda era solteiro. Tinha 24 anos de idade. Em S. Miguel trabalhava por nossa conta. Tínhamos uma moagem onde se fazia farinha de milho para o pão. A moagem pertencia ao meu pai e ao meu tio. Mas o meu pai faleceu em 1941 aos 43 anos de idade nessa mesma moagem. Caiu para dentro das correntes e partiu a coluna. Fiquei então a trabalhar com o meu tio e o meu primo. Comecei por levar a minha vida ali.

Adiaspora.com: O que o levou a decidir emigrar para o Canadá? Na altura, conhecia algo sobre este país?

Manuel Arruda: O país era pouco falado mas depois abriu a emigração. Primeiro, falaram em contratos para lavradores mas não chegou a ir avante. Depois, abriu este concurso. O inspector Ferreira da Costa foi lá escolher os candidatos. Soube desta oportunidade de emigração através do Regedor da Freguesia. Submeti o meu nome e ao fim de duas ou três semanas recebi um convite para comparecer em Ponta Delgada na Casa de Saúde para ser inspeccionado e prestar provas escritas e orais em português. O objectivo era seleccionar 20 homens. Escolheram os que tinham a quarta classe e solteiros. Não queriam casados. Nessa altura, fiquei apurado para integrar este grupo de vinte rapazes.

Adiaspora.com: Disse-nos que então trabalhava no negócio familiar. Como reagiu a sua família à sua decisão de partir?

Manuel Arruda: O meu pai deixou 14 filhos e ainda nasceu um outro depois do seu falecimento. A vida era complicada mas depois foi-me dada esta oportunidade de vir para o Canadá a ganhar $55 por mês, trabalhando 8 horas, cama e mesa e $0.50 por cada hora extra. Mas nada disso encontrei quando aqui cheguei. O maior obstáculo foi conseguir o dinheiro para vir porque o Ferreira da Costa disse à partida que tínhamos de arranjar 15 contos, o que era muito dinheiro naquele tempo e a minha mãe não o tinha. Como a nossa vida era uma tanto ou quanto atrapalhada com tantos irmãos, decidi aventurar-me. Houve umas pessoas que serviram de meus fiadores no banco para que pudesse levantar essa quantia. Depois, mais tarde, quando cá cheguei, ia enviando dinheiro à minha mãe para pagamento da prestação do empréstimo.

Adiaspora.com: Como imaginava então o Canadá?

Manuel Arruda: Lá andávamos sempre descalços. No trabalho andava de galochas. Mas imaginava o que um homem calçado poderia fazer. Era meio homem. Pensava eu: "Isso deve ser serviço de não matar ninguém!" Afinal, não foi aquilo que pensava.

Adiaspora.com: Antes de partir para o Canadá, tinha conhecimento de algum português que já cá estivesse?

Manuel Arruda: Não. Tinha era tios nos Estados Unidos. Escrevi-lhes e deram-me uma mãozinha aqui.

Adiaspora.com: Quer falar-nos de como foi a travessia transatlântica no Saturnia?

Manuel Arruda: Gostei da viagem. Foram cinco dias de barco de Lisboa a Halifax. Não faltou comida e havia divertimentos. No dia 13, antes de desembarcarmos, o capelão do barco chamou todos os portugueses à capela para irmos cantar à Nossa Senhora de Fátima.

Adiaspora.com: O que sucedeu após o vosso desembarque no dia 14?

Manuel Arruda: Meteram-nos num comboio para Montreal onde fomos distribuídos pelos farms (quintas) dos arredores. A viagem durou dois dias e uma noite. As carruagens eram antigas e quando saímos de manhã, as nossas caras e camisas estavam negras do fumo largado pelo comboio. Parecia que estávamos em África! À chegada a Montreal fomos levados para a Imigração onde fomos distribuídos, uns para um lado, outros para outro. Veio um indivíduo de Cherbourg que levou os seis homens que pertenciam ao Concelho de Ponta Delgada. Empregou-me, e mais dois, tendo abandonado os outros três na Estação dos Caminhos-de-Ferro de Cherbourg e que até chegaram a ser presos. Eram dois das Feteiras e o Vasco Aguiar da Fajã. Entretanto, chegou a polícia que pediu os passaportes donde viu que eram imigrantes portugueses. Fizeram um apelo na rádio para ver se havia alguém que falasse português para desenrascar aqueles homens. Apareceu um padre que esteve no Brasil uns anos e que falava algum português. O Vasco acabou por ir trabalhar para esse padre que também conseguiu emprego para os outros dois homens. Vim a saber disto mais tarde quando um inspector e o Cônsul Português em Montreal, o Padre Almeida, nos foram visitar aos farms. Quando estiveram no meu farm, deram-me o número de telefone da quinta onde se encontrava o José Martins e fizeram o mesmo com ele. Um dia, fui chamado ao telefone pelos meus patrões. Era o José Martins. Perguntei-lhe como soube contactar-me. Afinal, foram os patrões que entraram em contacto um com o outro. Combinámos e acabámos por fugir os dois ao fim de 15 dias para Montreal. Dissemos aos patrões que íamos regressar a Portugal.

Adiaspora.com: O que levou os dois a decidir deixar as quintas onde se encontravam?

Manuel Arruda: Se eu estava mal, o José ainda estava pior! O trabalho era duro. Trabalhava-se de sol a sol. A comida que nos davam não nos sustentava. Estávamos habituados ao pão de milho. Íamos almoçar e apresentavam-nos duas fatiazinhas de pão, um ovinho estrelado, ou um bocadinho de carne fria da freezer (congelador) e eis-nos de regresso ao trabalho! Puseram o José a abrir os alicerces de uma casa ou de um barn (palheiro). O homem tinha as mãos todas arrebentadas. O meu problema era que não me davam comida suficiente, pois sendo novo não tinha medo do trabalho! E assim aconteceu que, ao fim de 15 dias, regressámos juntos a Montreal. O filho do meu patrão foi-nos levar a estação e comprou-nos os bilhetes. Quando chegámos à estação de Montreal ficamos a olhar um para o outro. E agora para onde vamos? Não sabíamos falar francês. Entretanto, não sei como, na estação o José avistou uma pessoa que tinha estado connosco quando chegámos pela primeira vez. Perguntámos se podíamos dormir na estação ao que o homem respondeu que não e pediu-nos os passaportes. Depois disse-nos: "Vou ajudar-vos." Foi a nossa salvação.


Os Pioneiros Manuel Arruda e Manuel Pavão em convívio com o
Presidente do Governo Regional dos Açores, Dr. Carlos César.

Adiaspora.com: Era funcionário da estação?

Manuel Arruda: Era. Não sei como ali apareceu mas tinha estado connosco quando saímos para Cherbourg. Sugeriu que fossemos para um hotel mas respondemos que não tínhamos dinheiro para tal, pois o patrão tinha me dado $16. Eu ainda tinha cento e poucos dólares dos 15 contos que o Sr. Inspector Ferreira da Costa me entregara. O homem telefonou para uma pensão que cobrava cerca de $3 por noite. Indicou-nos o caminho, dizendo que nos aguardavam lá e mandou-nos apresentar pelas 8 horas da manhã seguinte na Imigração onde viria ao nosso encontro. Quando chegámos à pensão, vimos que ali havia só negros. Não dormimos toda a noite com medo, pois não estávamos habituados à gente negra. Na manhã seguinte, lá viemos com as malas de arrasto pela rua. Naquele tempo a viagem de táxi custava 50 cêntimos. Pelo caminho encontrámos um polícia a quem mostrámos o endereço da Imigração e que nos informou que era ainda mais abaixo. Quando lá chegamos, sentamo-nos a olhar um para o outro. O José avistou de novo o tal funcionário da estação e foi ter com ele. Este pediu-nos os passaportes e mandou-nos sentar. Estivemos horas à espera. Pelo fim do dia, já ao anoitecer, ouvimos uma voz chamando "José Martins. Manuel Arruda." Era uma funcionária espanhola da Imigração. Fomos ao encontro dela. A senhora telefonou para o Cônsul Português, o Padre Almeida, para falarmos com ele. Dissemos ao Cônsul que queríamos trabalhar os dois no mesmo farm ou então regressaríamos a Portugal. Finalmente, apareceu um farmeiro (quinteiro) de Riviera Prairie que fica cerca de 15 milhas de Montreal. Levou-nos os dois. Aí já gostei de estar. Ao fim de um mês ou dois, o José Martins partiu para os Estados Unidos e fiquei lá sozinho. Mantive-me nesse farm até Novembro, altura em que pedi um aumento de salário ou me iria embora. Nessa altura já estava em contacto com o Manuel Vieira, pois tinha escrito para Portugal donde me mandaram o seu contacto. Estava em Montreal.

Adiaspora.com: Quer então dizer que o Sr. Manuel Arruda e o Sr. Manuel Vieira são amigos de longa data?

Manuel Arruda: Sim. Estivemos na tropa juntos em 1950. Tornamo-nos amigos no barco e ainda hoje continuamos amigos. Sempre juntos. Como estava a dizer, permaneci nesse farm até ao mês de Novembro. Ali já fui bem tratado e a comida era boa. Parávamos de trabalhar às sete da noite. Regressávamos a casa para rezar o terço de joelhos. O patrão era muito religioso. O leite produzido naquele farm destinava-se a um orfanato. Depois, decidi pedir-lhe mais dinheiro mas já tinha a morada do Manuel Vieira em Montreal. O filho do patrão disse-me que se pudesse até me dava um aumento, mas que não era ele quem decidia. Era o pai que não me quis dar mais do que $65 que era o que estava a ganhar. Resolvi vir para Montreal ao encontro do meu amigo Manuel Vieira que na altura estava a trabalhar num restaurante a lavar loiça. Quando lá cheguei, fui tirar a carteira de trabalho mas não consegui nada. Telefonei para os Estados Unidos para um tio da minha então namorada (hoje minha esposa), o António Arruda, que era proprietário de uma fábrica de peixe. Havia um português em Galt (hoje Cambridge) a quem fornecia. Este português estava radicado em Galt há já 32 anos e fornecia comida para minks (vison). Quando telefonei para o tio da minha namorada, o homem, por coincidência, estava nos Estados Unidos. Esse homem tinha nascido na América, em Fall River, filho de pais açorianos de Santa Maria. Quando regressou ao Canadá, foi a Montreal, em Dezembro de 1953, e trouxe-me para Galt (Cambridge). Naquela região havia, nesses tempos, muita criação de minks (vison). Ali, já me senti mais à vontade apesar do homem falar tanto português como eu inglês. Trabalhei com ele até Agosto de 1954. Nessa altura, o Manuel Vieira já se encontrava em Toronto. Resolvi juntar-me a ele novamente. Cheguei a Toronto em Agosto de 1954 onde encontrei o Manuel a trabalhar na copa de um restaurante na Yonge Street. Visto ser uma outra província, tive de requer nova carteira de trabalho. Andei até Outubro do mesmo ano sem emprego. Na altura, estávamos alojados numa casa perto de Bellview nas cercanias da Rua Augusta onde pagávamos $5 por semana por um quarto num terceiro andar. Éramos dez homens naquele quarto, todos portugueses pois chegaram mais 900 imigrantes em Março de 1954, entre os quais um meu irmão e um meu cunhado e que foram ter comigo a Galt. Quando de lá saí para Toronto, o meu irmão ficou em Galt onde acabou por casar. O meu cunhado veio comigo para Toronto. Acabei por arranjar colocação no Colégio S. José na University e Wellesley por intermédio do Cônsul Português em Toronto que era uma senhora francesa. Fui para lá lavar loiça. Foi a melhor coisa que podia ter encontrado! Ali ganhava $80 por mês mas pagava $20 de alojamento. Sobrava-me $60. Quando arranjei este emprego, escrevi logo para o meu irmão mais velho a perguntar se este queria vir para o Canadá. Fiz-lhe a carta de chamada e ele acabou por vir, pois o Colégio arranjou-lhe a carta de trabalho e emprego na limpeza. Aí encontrei o Canadá! A partir dali, mandei chamar a minha família toda.

Ao fim de três anos, em 1956, fui casar aos Açores. Quando regressei trouxe a minha esposa, Odília, que também foi trabalhar para o Colégio. Cederam-nos uma casa nos próprios terrenos do Colégio. Mais tarde, quando a minha esposa engravidou, tivemos de sair. Arranjei um emprego na Nilson, uma fábrica de chocolates na Gladstone Avenue, onde trabalhei 33 anos. Comprei uma casinha no 17 Lakeview em 1962. Ia a pé de casa para o trabalho e assim fiz a minha vida. Criei seis filhos. A minha esposa nunca trabalhou a não ser nos primeiros tempos no Colégio.

Adiaspora.com: Quais foram os maiores obstáculos que encontrou aqui quando chegou?

Manuel Arruda: O maior obstáculo foi a língua. O trabalho? Bem, temos de trabalhar de qualquer maneira. Os meus primeiros patrões eram franceses mas a língua que queria aprender era o inglês. Estava eu ainda no farm em Riveira Prairie quando um meu tio veio visitar-me da América. Trouxe-me um livro que tinha o inglês tal e qual se fala. Agarrei-me ao livro, pois, com o tempo, aquilo que eu dizia também sabia escrevê-lo. Hoje, sou capaz de preencher os impressos Income Tax (Imposto de Rendimento) sem ter frequentado a escola inglesa. A minha escola foi aquele livro.

Adiaspora.com: Sente algum arrependimento em ter emigrado para o Canadá?

Manuel Arruda: Não. Foi a melhor aventura que nos apareceu em Portugal.

Adiaspora.com: Na sua opinião, o que é necessário para se progredir nesta terra?

Manuel Arruda: Se não soubermos poupar um pouco para o futuro não vamos a lado nenhum. Por exemplo, comprei esta casinha por $12, 500, mas já tinha $4,000 de uma outra que tinha comprado em sociedade com um meu cunhado e um primo, a quem acabei por vender a minha parte. Dei $4,000 de entrada. Fiquei a pagar $75 por mês. Aluguei o andar de cima com três quartos, cozinha e casa de banho. O dinheirinho que o rendeiro me dava era exactamente a mortgage (prestação do empréstimo bancário). Do meu trabalhinho na fábrica pagava as despesas e criei os meus filhos.

Adiaspora.com: A cidade de Toronto que veio encontrar naquele tempo assemelhava-se em alguma coisa aos Açores?

Manuel Arruda: Praticamente. Quando aqui chegámos, da Eglinton Avenue para cima era tudo farms. O edifício mais alto de Toronto quando cá cheguei era o York Hotel. Depois é que a cidade começou a desenvolver. Estes prédios foram todos construídos depois. Lembra-me de ir às Quedas do Niagara na Queen Elizabeth e de haver nem uma única casa em toda aquela estrada! Foi uma volta amargurada, mas valeu a pena!

Adiaspora.com: Este ano, decorrem por todo o país as comemorações dos 50 Anos da Imigração Oficial Portuguesa para o Canadá. O que pensa desta vaga de homenagens aos nossos Pioneiros? Como se sente perante isto?

Manuel Arruda: Têm nos prestado muita atenção e acho bem porque passámos muito para abrir as portas do Canadá para os outros açorianos que nos seguiram. A emigração para o Canadá foi um grande benefício para Portugal. Agradeço tudo o que nos têm feito. Sinto-me orgulhoso.

Adiaspora.com: Quer deixar uma mensagem aos nossos jovens?

Manuel Arruda: Segundo tenho visto e lido nos jornais, acho que os nossos jovens estão a trabalhar bem. Já os acho bastante adiantados. Estão a progredir. Já temos gente a trabalhar para o governo e espero que os jovens continuem porque o Canadá é um país de futuro. É um orgulho saber que temos portugueses a trabalhar no governo. Coragem! P'rá frente! E quantos mais tivermos, melhor será para a nossa comunidade! Sinto-me orgulhoso quando sei que há um português a concorrer para o governo.

Adiaspora.com: Alguma vez regressou aos Açores?

Manuel Arruda: Fui lá três vezes. Em 1956 fui casar. Em 1978, quando fiz 25 anos de Canadá. Levei a Banda do Senhor Santo Cristo à Terceira e a S. Miguel. Fui em 1990 à ordenação de um meu sobrinho.

Adiaspora.com: Como é que encontrou os Açores?

Manuel Arruda: Aquando de minha viagem em 1990 notei uma grande diferença e, segundo vejo na televisão, aquilo está fantástico! Vamos a ver se o Nosso Senhor nos dá saúde para irmos lá ver aquilo outra vez.

Adiaspora.com: Parece-nos que muito em breve terá oportunidade de voltar, desta feita na companhia dos outros Pioneiros açorianos que o acompanharam no Saturnia. Adiaspora.com agradece a sua disponibilidade e até uma próxima.

Manuel Arruda: Não pare! Não pare de abrir os olhos do mundo para o Canadá!


(Da esquerda para a direita) Afonso Tavares, Jaime Barbosa, António do Couto, Manuel Arruda, a Directora Regional das Comunidades, Dra. Alzira Serpa Silva, Manuel Vieira, João Martins,
Manuel Pavão e Armando Vieira.

Entrevista exclusiva de Adiaspora.com